Desde há
cerca de um mês que os média escrevem
e nos falam sobre o anúncio feito pelo Governo da criação do cheque-ensino e, por essa via, segundo dizem, sobre
a possibilidade dada às famílias de passarem a poder escolher o estabelecimento
onde querem que seja ministrado o ensino dos seus
filhos. A ideia começou por se apresentar como uma possibilidade, mas há poucos
dias, na sequência de uma decisão governamental sobre o assunto, que de seguida
foi enviada para a Assembleia da República para apreciação, o que era uma possibilidade,
tornou-se uma realidade.
O fundamento
da decisão é o de que, com o cheque na mão, as famílias têm possibilidade de
escolher entre o que consideram bom e o que consideram mau, optando pelo Projeto Educativo que consideram melhor para os seus filhos incitando, também, desse modo, os estabelecimentos a
fornecer serviços de maior qualidade, para poder captar os melhores clientes.
A argumentação
parece clara e transparente, mas só parece!
Ela só seria verdadeira
se:
- Quer os que procuram os
serviços de educação, quer os que os oferecem, fossem agentes e
estabelecimentos em número infinito, de modo a que nenhum tivesse poder para
influenciar o comportamento do mercado;
- Os produtos e serviços existentes
no mercado fossem perfeitamente homogéneos;
- Os agentes tivessem acesso a
toda a informação que fosse considerada relevante para poder tomar as suas
decisões;
- A entrada
e a saída do mercado, tanto os que procuram os produtos e serviços de educação,
como os que os oferecem, fosse perfeitamente flexível.
Na realidade
da vida nenhum destes pressupostos é verificável. Para além disso, apenas, se
se verificassem “todos e não apenas alguns” é que poderíamos dizer que as
famílias, veriam, através do acesso ao cheque-ensino, um aumento da sua
liberdade de escolha e os estabelecimentos, teriam incentivos para aumentarem a
qualidade do ensino.
O
funcionamento do mercado de concorrência (perfeita) tal como acima descrito,
nunca existiu, não existe e nunca existirá. Trata-se de uma completa miragem,
pela qual se deixam encadear os economistas e os políticos de inspiração liberal. Acreditam que os seus sonhos são a realidade e nesse seu inebriamento
procuram envolver toda a sociedade.
Este
argumentário não passa de um completo embuste. Com a iniciativa do cheque-ensino o poder de escolha das famílias terá
idêntica evolução ao poder de decisão em muitas outras áreas constituintes da
sua sobrevivência.
São
conhecidas as consequências da liberalização das políticas económicas e sociais
que invocam a superioridade da privatização de bens e serviços públicos (ver aqui o post anterior de Manuela Silva) e da livre tomada de opções
individuais. Enunciam-se abaixo algumas dessas consequências.
Com o cheque-ensino a liberdade com que as famílias se
confrontam será a mesma que já tiveram quando se confrontaram com o destino
do seu emprego, a emigração, o acesso aos serviços de saúde, o acesso à
justiça, o usufruto de bens culturais, o acesso à habitação, a estabilidade das
situações de reforma, a diminuição da competitividade do país e do seu
progresso, etc.
Feito este
enquadramento é agora mais fácil verificar que o mundo que nos prometem não
passa de uma crença transposta do sonho da concorrência perfeita para um mundo
que nunca o poderá acolher.
O ensino
público foi uma maravilhosa invenção política, verificada numa época em que só
tinha acesso ao ensino quem tinha possibilidade de pagar a entrada em escolas
de elite ou os serviços de perceptores privados. Nesse tempo não havia ensino
público, apenas ensino privado, mas existiam, também, exércitos de iletrados,
cujas qualificações não lhes permitia senão ser parte de enormes massas de
escravos, com consequências sobre a vida das pessoas e sobre o progresso das
sociedades, que hoje já dificilmente imaginamos.
Então, quando
em matéria de ensino havia, apenas, iniciativa privada, ninguém viu
manifestarem-se preocupações com a ausência de liberdade de escolha, pelas
famílias, dos estabelecimentos de ensino para os seus filhos. Do mesmo modo,
teria sido demasiado caricato afirmar que essa liberdade existia. Claro que
existia, mas apenas para aqueles que tinham a carteira recheada.
E hoje, o que
temos? Temos dois sistemas de ensino, o público e o privado. O sistema de
ensino público, que é financiado pelo Estado, tem por vocação disponibilizar a
todas as famílias, em termos de qualidade e acessibilidade, um serviço de
ensino de que um número significativo de famílias não poderiam beneficiar caso
o sistema público não existisse.
O sistema
privado encontra a sua fundamentação na iniciativa privada e na obtenção de
lucros como razão de sustentabilidade. Os melhores clientes são os que melhor
podem pagar, i.e., as famílias com maior nível de recursos. Diz-se, agora, que
com o cheque-ensino o que se pretende é,
precisamente, proporcionar às famílias de menores recursos a possibilidade de
acesso a um ensino de maior qualidade, que não existiria na sua ausência.
Mas será que
as coisas se passam exatamente assim? De novo cá estamos perante o confronto
entre o sonho liberal e a realidade. Não são poucas as questões que decorrem
desse confronto.
Mas porque é
que o ensino nos estabelecimentos de iniciativa privada há-de possuir melhor
qualidade que o que é ministrado nas escolas públicas? Esta convicção resulta
da crença de que vai haver concorrência entre escolas públicas e escolas
privadas e que a concorrência promoverá a imolação da qualidade. Atrás, já
mostramos abundantemente que os pressupostos da concorrência não se verificam
nos mercados e por isso, também não se verificam neste.
O cheque-ensino tem o pressuposto de que, a partir
do momento em que existe, as famílias passam a ter igualdade de condições para poder
aceder ao ensino privado e ao ensino público. Infelizmente, estamos longe de
ver tal acontecer. As situações económicas, sociais e culturais condicionam o
comportamento das famílias, pelo que o que está mais longe de ser adquirido é a
existência de condições de decisão idênticas para todas as famílias. Basta pensar,
por ex., no que poderá acontecer se uma família de reduzidos recursos não tem
possibilidade de suportar os custos de transporte para que o seu filho se possa
deslocar para ir frequentar a escola privada de qualidade, mas que se encontra demasiado
afastada da sua residência. Não frequenta!
Na medida em
que não basta existir o cheque para que possa existir mobilidade perfeita dos
alunos (as famílias mais ricas podem, sempre, suportar do seu bolso as despesas
de transporte) e como os estabelecimentos privados não se vão localizar junto
de cada família ou comunidade, o cheque educação mais não é do que uma
transferência dos impostos pagos por todos para benefício das famílias mais
ricas. Mais, como os cofres do Estado se encontram exauridos, o financiamento do
cheque-ensino vai ser conseguido mediante a diminuição do financiamento das
escolas públicas e, consequentemente, da qualidade do ensino que aí é
ministrado.
Muitas outras
dimensões do cheque ensino são relevantes, como por ex., a inevitabilidade da
seleção à entrada (os pais podem escolher as escolas, mas as escolas podem
escolher os alunos!), o soit disant
apoio às classes médias, o aumento da autonomia das escolas, a segmentação
institucionalizada de escolas para ricos e de escolas para pobres, a
fragilização do estatuto dos professores, os resultados da experiência
existente em outros países, etc. Não tenho já possibilidade de abordar estas
questões no âmbito deste post.
Esta
iniciativa do cheque-ensino é mais uma arma na destruição do Estado, do Estado
Social. Trata-se de aniquilar tudo o que possa assemelhar-se a serviço-público,
que, como se sabe, tem como vocação criar condições de acessibilidade idênticas
para toda a população. Neste turbilhão de iniciativas, já se encontra anunciada
a privatização dos CTT e não nos surpreendamos se, a seguir vier a criação do
cheque-ensino para o ensino superior, sobretudo, tendo em conta a aparente
crise em que se encontram os estabelecimentos de ensino superior privado. Mas
será que as mais importantes instituições de ensino superior privado necessitam
do cheque ensino para poderem sobreviver (vide
a campanha de descontos recentemente lançada)?
O cheque não
é um instrumento de libertação; está-se transformando, antes, num poderoso meio
de maior escravização de todos os que possuem menores rendimentos e patrimónios.
