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06 novembro 2015

Os frutos dos nossos sacrifícios – Quais são?



Numa manifestação de grande preocupação – não fosse acontecer que as medidas restritivas adoptadas no passado caíssem no final de 2015 – depressa o Governo aprovou legislação para as manter no próximo ano.

Assim, mais uma vez se insiste na ideia da austeridade como único caminho para sair da crise, numa obstinação cega perante o que, na verdade, têm sido as consequências dramáticas da sua aplicação.

Apesar dos quatro anos já vividos continua a ser usado o argumento da excepção para não respeitar direitos fundamentais e difunde-se a ideia falsa de que se fosse posta em causa a austeridade os resultados seriam catastróficos e teriam sido em vão os sacrifícios feitos.

É particularmente grave que se procure alimentar a confusão, na opinião pública, entre uma desejável condução prudente das políticas públicas com a sistemática desvalorização daquilo que mais se espera de uma governação responsável, ou seja, a promoção do bem estar e da coesão social, assim como  a sustentabilidade do desenvolvimento futuro.

Repetidamente  tem sido chamada a atenção para indicadores preocupantes que apontam para que o impacto a longo prazo da austeridade pode vir a revelar-se muito maior do que alguns querem fazer crer: uma população activa a ser erodida pela emigração, o desinvestimento na educação e na saúde, o desemprego persistente a nível elevado com grande peso do desemprego de longo prazo e do desemprego jovem, um sector empresarial público entregue a privados sem as cautelas devidas, um sector empresarial privado em crise, altamente endividado.

Uma sementeira como esta não pode vir a dar bons frutos, a não ser na imaginação de alguns, mas continua a ser defendida por não se querer reconhecer o erro cometido.

Como ignorar os avisos que têm sido feitos por cientistas sociais – economistas mas não só – de que é urgente inflectir as políticas de modo a não hipotecar irremediavelmente o futuro? Ou a deriva para extremismos perigosos que por toda a Europa ganham força? Ou o facto de que mesmo  países que pareciam ter recuperado da crise não alcançaram o crescimento que tinha sido projectado e estão ainda mais pobres do que no início da crise?

Um estudo recente de Summers e Antonio Fatás[1] referido por Paul Krugman em “Austerity’s Grim Legacy”, na sua coluna de 6 de Novembro de 2015 no The New York Times on-line, vem reforçar a conclusão de que existe uma correlação forte entre a intensidade da austeridade numa economia em depressão reduz a capacidade de crescimento a longo prazo. E, para além dos postos de trabalho e do produto perdido nos primeiros anos de aplicação das políticas de austeridade, está-se a trilhar um caminho de auto destruição, mesmo em termos puramente orçamentais, pois as economias feridas verão reduzidas as suas receitas fiscais futuras ao ponto de se depararem, a prazo, com uma dívida muito mais elevada do que aquela que teriam de incorrer se não tivessem feito os cortes iniciais.
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Se outras motivações não existissem, poderíamos hoje admitir que, perante todas estas evidências, os responsáveis estariam dispostos a uma reapreciação das políticas austeritárias. Infelizmente não é esta a situação entre nós.

Resta esperar que o desejo de mudança expresso democraticamente pela maioria possa vir a encontrar uma via de concretização internamente e no seio da União Europeia.


[1] The permanent effects of fiscal consolidations – Antonio Fatás e L.H. Summers publicado na Revista Social Science Research Network

06 julho 2014

Fechou e foi vendido

Venho falar-vos do concelho de S. Bartolomeu.
Desde os tempos da conquista aos mouros e do povoamento incentivado pelos nossos primeiros reis, através de políticas que promoviam o amanho das terras, a florestação dos montes, a limpeza das linhas de água, o ensino, a cultura, a construção de linhas de defesa (castelos) e outras iniciativas, que o concelho de S. Bartolomeu, lá bastante no interior do país, orgulhoso do seu passado, sempre soube gerar prosperidade e bem-estar para os que nele viviam.
A partir dos fins dos anos 50, princípios dos anos 60, do séc. passado, começou a acontecer algo que já antes se tinha verificado mas que, agora, surgia com muito mais intensidade: a emigração dos mais jovens e dos homens que estavam na força da vida. Havia quem dissesse que isso era uma consequência da ditadura e da sua incapacidade para fomentar, em S. Bartolomeu, iniciativas geradoras de emprego.
Já nos anos 80, graças às remessas dos emigrantes e aos elevados ritmos de crescimento verificados no exterior, de que, também, beneficiava, a vida em S. Bartolomeu voltou a animar-se. Construíram-se novas escolas primárias, surgiu o primeiro liceu (depois escola secundária), o tribunal passou a dispor de um edifício próprio (Palácio da Justiça), ampliaram-se as instalações da repartição de finanças, apareceu um novo hospital, que veio substituir o velhinho hospital da Misericórdia, foi aberta a primeira Biblioteca, quase todas as casas passaram a dispor de acesso ao saneamento, intensificou-se o processo de urbanização, permitindo o acesso da grande maioria a uma casa própria, foi criada a primeira associação de bombeiros voluntários e muito mais  . . . Até a festa a S. Bartolomeu, a 24 de Agosto, que há já muitos anos se não realizava, voltou a adquirir o brilho de antigamente! A população andava feliz.
E os anos foram passando até que, de forma quase impercetível, se começou a falar da ideologia da eficiência. Prometia a salvação eterna a quem lhe declarasse obediência (era uma outra forma de prosseguir o califado). Estávamos em meados da 1ª década do séc. XXI. E que dizia a ideologia? Dizia que, em todas as iniciativas, quer privadas, quer públicas, era imperioso que os resultados que estavam programados fossem obtidos com o uso do menor número de recursos e ao menor preço (custo). Era indispensável ser eficiente, porque a "dívida" assim o impunha.
Não há dúvida, muito aliciante. Quem se poderia atravessar no caminho do argumento?
Só que nisto, como em muitas outras coisas da vida, verificou-se que havia um coelho na cartola. Para desarmar o homem da cartola, a pergunta que se impõe fazer é a de saber quais são os resultados de que se está a falar: os de curto, os de médio ou os de longo prazo? É necessário tê-los todos em conta, porque, por ex., aquilo que produz muito bons resultados a curto prazo pode ser desastroso a longo prazo. Veja-se o caso de um hospital que passou a poder funcionar com um muito menor número de pessoal auxiliar. Até parece que os que ficaram se tornaram mais competentes, mas ao fim de algum tempo começou-se a constatar que havia mais gente a morrer por razões que se atribuíam à falta da prestação de serviços atempados e de qualidade.
Inversamente, nem tudo o que dá resultados pouco significativos, no imediato, tem como consequência produzir maus resultados a longo prazo. Eu, conheci uma Faculdade que foi criada e funcionou, durante cinco ou seis anos, com professores, mas sem alunos. Parece o cúmulo do desperdício mas não era. Quando foi criada Faculdade os futuros docentes foram recrutados e enviados para o estrangeiro, para se qualificarem, através da realização dos seus doutoramentos. Foi só quando regressaram com os doutoramentos na mão que a Faculdade foi aberta a alunos. A partir daí foi considerada, na sua área de ensino, como das melhores escolas do país .
Consequências da generalização da ideologia?
Começaram por encerrar escolas do primeiro ciclo, porque estavam a funcionar com meia dúzia de alunos, o que era ineficiente, diziam. Era caro e os poucos alunos não aprendiam práticas de sociabilidade. A culpa era dos pais que tinham feito baixar a taxa de natalidade. As aldeias ficaram mais tristes, cada vez mais velhas e sem ânimo.
Depois, veio, o fecho de hospitais e centros de saúde, de tribunais, de repartições de finanças, a desqualificação dos serviços prestados por muitas outras instituições: serviços à agricultura e florestas, bombeiros, urbanização, etc., etc. Tudo isto em nome da batalha de eficiência, cujos generais, de eficiência pouco mais sabiam que o nome.
Mais recentemente houve um ministro que achou que poderia, ele próprio, ser mais eficiente, se transferisse a saga da eficiência do seu ministério para os municípios (ver, também, aqui). Para o efeito, descentralizaria, para estes, algumas componentes da gestão dos docentes dos estabelecimentos de ensino básico e secundário. Para adocicar a proposta foi anunciado que os municípios receberiam um prémio, caso fossem capazes de gerir as escolas com um menor número de docentes, prémio esse que seria equivalente a 50% do valor dos vencimentos dos docentes que ficaram sem emprego.
Os tempos passaram até que um dia um alto funcionário foi encarregado pelo Governo de ir entregar o prémio ao município. Com o cheque no bolso, lá se meteu autoestrada fora, munido do conveniente GPS, até que encontrou a placa indicando S. Bartolomeu. Saiu, pagou a portagem, ligou o GPS e foi à procura de S. Bartolomeu. Andou, andou, e não encontrou nada. Ligou a imagem de satélite e o que via não tinha qualquer semelhança com o que estava representado para S. Bartolomeu.
Voltou para trás, foi até outro concelho e perguntou à primeira pessoa que encontrou: o Sr., se faz o favor, não me diz por onde é a estrada para S. Bartolomeu?
O interlocutor, de nome Bernardino, com ar de surpresa, respondeu, dizendo: o Sr., desculpe mas, se não é indiscrição, o que quer lá ir fazer?
O funcionário responde: bom, não quero ir lá fazer nada de mal; tenho aqui um prémio que queria ir entregar ao Presidente da Câmara.
Responde o Sr. Bernardino: um prémio? Mas olhe que não vai poder entregar ninguém, porque já algum tempo que o concelho fechou e foi vendido para ser transformado em deserto.
Disse o funcionário: transformado em deserto? Mas há lá petróleo? Começo a perceber porque é que ninguém atendia e tiveram necessidade de me enviar, pessoalmente, de Lisboa até cá.
Diz o Sr. Bernardino: já agora, oh amigo, deixe cá o prémiozinho que nós bem precisamos dele, pelo esforço que temos vindo a fazer para que isto não feche.
O funcionário coça o queixo e diz: estou a começar a perceber!
O Sr. Bernardino comenta: mas olhe que é bom que perceba depressa, se não, nós também fechamos. Eu é que continuo sem perceber porque é que a dívida em vez de diminuir, só aumenta! Quando o Sr. perceber diga.
Boa Viagem!

19 maio 2014

A propósito de reformas estruturais e de estratégias de médio prazo: o conteúdo e as incoerências

Nas últimas semanas, e em particular na última, falou-se amplamente de “reformas estruturais” e de uma “estratégia de medio prazo” Falou-se muito mas, como dizia um amigo meu, disse-se pouco. Vou procurar explicar porquê.
As reformas estruturais que, periodicamente, têm vindo a aparecer à boca de cena, são as que as autoridades portuguesas e os seus aliados da troica vêm designando como indispensáveis para que a recuperação da economia portuguesa possa ter lugar: privatizações, diminuição do peso do Estado Social, redução da intervenção do Estado, diminuição dos salários, das pensões, etc. Quanto aos 1% dos portugueses que detêm 10% dos rendimentos entendeu-se não deverem fazer parte da reforma.
Sobre a estratégia de médio prazo é algo de que só se ouviu falar a propósito dos festejos preparados por ocasião da "partida" da troica. Para a sua aprovação o Governo dedicou-lhe, até, no passado dia 17, um Conselho de Ministros Extraordinário.
Vejamos o que está em causa. Começo por precisar alguma terminologia que tem vindo a ser utilizada, mas fora do contexto em que o deveria ser. Referi-mo aos conceitos de estrutura e de estratégia.
Falamos de estrutura a propósito da organização interna de um conjunto (sistema), que identifica o peso relativo de cada uma das suas componentes e a forma como se relacionam entre si. Pode-se alterar a estrutura desse conjunto, quer modificando o peso relativo das componentes (incluindo a eliminação de uma ou várias), quer alterando os circuitos de dependências e interdependências pré-existentes, ou ambas. Quando tal acontece diz-se que se verifica uma reforma estrutural, ou uma reestruturação do sistema.
O conceito de estratégia tem um conteúdo mais ambíguo, porque tem sido utilizado em duas aceções diferentes que, nem por isso, em cada uma delas, deixa de ser preciso. O conceito de estratégia tem origem na “arte da guerra” e significa a forma como se organizam e combinam os meios para atingir os objetivos (lembram-se do quadrado de Aljubarrota?).
Mais recentemente, o termo de estratégia passou a ser usado no âmbito da gestão de empresas, para significar uma perspetiva de médio e longo prazo. É já depois dos anos 80 que a ideologia que considera que o Estado pode ser governado do mesmo modo que se gere uma empresa, importou para o domínio da coisa pública este conceito de estratégia.
Só que, ao fazê-lo, misturou de forma incompreensível a ideia de “visão” com a de “programa de médio ou longo prazo” deixando, de ter visão, de ter programa de médio ou longo prazo e de combinar de forma eficiente os meios para alcançar os objetivos. Isto é, lançou-se uma bomba de estilhaços e o que resta, agora, é muito pouco. Fala-se, fala-se, fala-se, mas o que lá está dentro é muito pouco ou, então, não é pouco, mas está longe da desejada configuração original do sistema.
Voltemos à questão das reformas estruturais. Vale a pena chamar a atenção para a circunstância de que aquilo a que o Governo tem vindo a chamar reformas estruturais está longe do conceito de reforma estrutural acima enunciado. De facto, o que está em causa não é a alteração dos pesos relativos das componentes do Estado, ou do relacionamento entre elas. Aquilo a que temos vindo a assistir é à destruição, pausada, lenta, mas determinada, do Estado, nas componentes e funções que desde há muitas décadas lhe estão atribuídas. É assim, com as privatizações, com a eliminação das funções do Estado no domínio da saúde, da educação, da justiça, da regulação salarial, com a abdicação do objetivo de manutenção, ou construção, do Estado eficiente, etc.
Não se trata de reformas estruturais, mas de um programa de destruição do Estado atual para o substituir por um outro Estado em que desaparecem as suas funções de inclusão social e de regulação da repartição de rendimentos. Em lugar de um Estado promotor de equidade, vemos configurar-se um Estado facilitador da recomposição do capital patrimonial e da concentração de riqueza (ver, por ex. Piketty). É para isto que nos conduzem as reformas estruturais do Governo!
E quanto à estratégia de reforma de médio prazo? O Governo chamou-lhe: “Caminho para o Crescimento”. Raramente se ouviu falar de tal coisa durante os 3 anos (formais) do Programa de Ajustamento. Será que este intitulado significa que, finalmente, o Governo compreendeu que nenhuma recuperação é sustentadamente possível sem crescimento? Até aqui o que víamos firmemente afirmado era que a recuperação só seria possível pela via do empobrecimento, mas ignorando que o empobrecimento é um processo cumulativo e que chegará o dia em que os próprios credores já só encontrarão pobreza para se alimentar.
Tenho muitas dúvidas sobre a conversão do Governo e da troica à religião do crescimento, ao “Caminho para o Crescimento” como uma estratégia de reforma a médio prazo. Se é uma estratégia, poderíamos perguntar-nos se quem nos administra tem uma “visão” para o futuro. É verdade que a estratégia tem um horizonte temporal, o de 2018 mas, vai-se a ver, e aquilo que se apresenta como um agregador de reformas, umas já feitas, outras em curso e ainda outras a realizar nos próximos anos, só pretende iluminar o caminho até 2015. A razão é simples, dizem os seus responsáveis: este Governo não sabe se estará lá depois de 2015!
Fantástico! Onde está a coerência de uma visão que se apresenta como iluminando até 2018? Mesmo até 2015, como se articulam as suas medidas? Quais são os resultados esperados?
Um plano de médio prazo, uma estratégia para 4 anos! De fato não sabem do que falam. Talvez não nos devêssemos surpreender de que tal aconteça, quando sabemos que nenhum exercício sério de programação se fez neste país, desde os trabalhos que foram realizados, em 1975, dando origem ao que ficou designado por Plano Melo Antunes (Programa de Acção Política Económica e Social de Transição) e, em 1977, de que resultou o, também, chamado Plano Manuela Silva (Plano de Médio Prazo 1977-80). Desde então entendeu-se, generalizadamente, que os Planos se eram precisos era nas empresas, porque no Estado só serviriam como instrumento tolhedor de movimentos e de iniciativas. Em consequência, as próprias estruturas técnicas que poderiam ajudar a preparar os planos foram destruídas.
A verdade é que a própria Constituição da República obriga à existência de um Plano de Médio Prazo. De tudo isso restaram, apenas as “Grande Opções do Plano”, mas ficaram, apenas, no papel que acompanha o Orçamento, porque o conteúdo compromissório que se lhe deveria seguir, sempre se tem esfumado.
 

11 maio 2014

Da “porcaria da limpeza” à “limpeza da porcaria”

No passado dia 6 de Maio escrevi aqui um post em que chamava a atenção para as fragilidades do que vinha sendo anunciado como uma “saída limpa do programa de ajustamento”. Sem qualquer rebuço vários responsáveis anunciavam-nos, na mesma ocasião, que os sacrifícios que se tinham verificado anteriormente eram para manter pois, se tivéssemos a tentação das facilidades, deitaríamos a perder tudo o que de bom tinha sido adquirido até aí. Depois disto e glosando o que o José Manuel Pureza escreveu no Diário de Notícias, a questão que deve ser colocada não é, por isso, tanto a de saber se a saída é limpa ou não, mas antes a de verificarmos se, de facto, houve qualquer saída.
A via austeritária contra os cidadãos é, portanto, segundo nos anunciam, para continuar e, em particular, contra os que no período do programa de ajustamento viram mais diminuir a sua capacidade de exercício da cidadania. Só que se isto é verdade, então, o que se pode dizer da saída é que ela é tudo menos limpa. Em sentido contrário, pode-se argumentar com a possibilidade adquirida de acesso ao mercado de capitais, a taxas de juro normais. Mas ao dizer isto está-se a atirar poeira para os olhos de quem escuta, porque quem o faz está a esquecer duas questões fundamentais:
- A das condições externas que têm conduzido à baixa da taxa de juros, que se aplicam a Portugal como a qualquer outro país;
- A da destruição que tem vindo a ser feita das condições estruturais do funcionamento da economia portuguesa (recursos humanos, recursos materiais e recursos institucionais), que virá a constituir um pesado bloqueador do arranque do crescimento e do desenvolvimento.
Não tem faltado quem argumente que apenas os “velhos do Restelo” têm esta compreensão das coisas e de que uma boa prova de que não é assim que as coisas acontecem e de que estamos no bom caminho, é o facto de que existem sinais de que a economia começa a crescer e o desemprego a diminuir.
Perante quem assim pensa não pode deixar de se acrescentar: “santa miopia!”. Com efeito, como é que é possível acreditar que a economia, agora, vai começar a crescer e a desenvolver-se, de forma sustentável, se tudo o que está escrito nos livros e na experiência do passado, como condições estruturais do arranque para o desenvolvimento, tem vindo a ser destruído?
Mas, então, a economia está a crescer ou não? Ela mexe, mas é preciso ir um pouco mais a fundo e compreender o porquê. Ora este porquê tem a ver com o aproveitamento de capacidade produtiva não utilizada, com a finalização de processos de investimento que se tinham iniciado em períodos anteriores e, marginalmente, com exportações de um número reduzido de empresas que são capazes de aproveitar inovações de ponta, mas não têm condições para criar emprego.
O argumento do crescimento do emprego (diminuição da taxa de desemprego) está, também, imbuído de fragilidades. A verdadeira questão a que é preciso responder é a de saber se, estando a diminuir a taxa de desemprego, o emprego está a aumentar. Não é de mais aqui voltar a sublinhar que a taxa de desemprego é o resultado do quociente entre o desemprego e a população ativa. Ora, por ex., se desemprego diminui porque aumenta e emigração, uma diminuição de igual montante vai-se verificar no denominador do quociente, mas como em percentagem a diminuição do numerador é superior à percentagem de diminuição do denominador, a taxa cai. Coelho tirado da cartola!
E poderia continuar a desenvolver a argumentação observando as características do emprego que tem vindo a ser criado: pouco qualificado, a tempo parcial, sem garantias de continuidade, etc.
Aqui chegados, não é difícil afirmar que os “empregados da limpeza” não fizeram mais do que o que se diz que por vezes fazem os empregados pouco competentes: meteram o lixo debaixo do tapete. Por isso, importa dizer alto e bom som: que grande porcaria de limpeza! É preciso despedir os empregados que procederam a tal limpeza . . . E deste despedimento não viria a resultar qualquer espécie de consequência direta sobre o nível da taxa de desemprego. A prazo até poderia acontecer que a taxa em vez de diminuir aumentasse.
Pouco mais de 8 dias tinham passado sobre o anúncio da limpeza e eis senão quando, com banda e fanfarra, as agências de rating acordam e entram em campo , com pancartas escritas em letras garrafais, em que testamentam: vocês têm perspetivas de poderem vir a ser classificados como estando melhor, mas tenham paciência, olhem por vocês abaixo, vocês continuam a ser lixo.
Em primeiro lugar, onde é que andaram estes senhores para, agora, quando os seus aliados, cá dentro, procuram difundir um aroma perfumado de limpeza, aparecerem para dizer que, afinal, por baixo da água-de-colónia barata, a porcaria continua a existir. Somos lixo, prontos! Pois não andaram em sítio nenhum. Estiveram sempre, por aí, à espera de, como os camaleões, deitarem a sua pegajosa língua de fora e apanharem os insetos, que somos nós.
Depois, estão-se a portar como o senhor que lança rebuçados à populaça, dizendo-lhe: vejam como eu sou vosso amigo, mas se querem que eu continue a ser assim, tem que continuar a trabalhar como meus escravos; a austeridade é, pois, para continuar.
E, assim, lá continuarão a ser-nos extorquidos os nossos recursos, para que, nos bancos ou fora deles, o grande capital financeiro continue a anunciar amanhãs que cantam (ver a este propósito a entrevista hoje publicada no jornal Público e feita ao Sr. Philipe Legrain, anterior conselheiro do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso).
Assim continuarão a ser-nos extorquidos os recursos, a menos que nos mobilizemos para incomodar quem tanto nos humilha com a classificação de que continuamos a ser lixo. De facto, o que temos que fazer é deitar fora o lixo que estes senhores nos atiram e devolvê-los à procedência carregando o lixo que nos trouxeram. Limpemo-nos, pois, desta porcaria!

17 fevereiro 2014

Saída limpa?!

Este “post” é um desabafo e um apelo.

“Saída limpa”: aplica-se ao “pós-troika” ou à “ida sozinhos aos mercados” quando acabar o chamado programa de ajustamento.

O uso acrítico desta expressão em muita comunicação social; o seu uso propagandístico pelos apoiantes da actual política governamental; e o eco que  encontra, algumas vezes, em alguma oposição fazem com que tal expressão esteja a branquear uma situação que de limpa nada tem. Já pouco se ouve ou lê a expressão saída à irlandesa, pois, pelos vistos, saída limpa soa melhor e tem um efeito subliminar : quem é que não gosta de se sentir limpo?!

Com este adjectivo “limpa” estão a tentar limpar muita sujidade: por exemplo, os 1400000 trabalhadores em situação factual de desemprego ou sub-emprego, os mais de 200000 emigrantes e a consequente perda de potencial estratégico nacional, os juros - talvez conjunturalmente e muito provisoriamente menos altos – de uma dívida insustentável.

Por favor, economistas do Economia e Sociedade, e outros, desmontem este adjectivo “limpa”. E, já agora, demonstrem também como a “sujidade” se vai solidificar (e, portanto, mais difícil de erradicar) e endurecer com o malfadado “Pacto Orçamental” que manterá políticas de austeridade anti-Estado Social ainda por cima impostas à soberania nacional, assim limitada nas políticas governamentais internas.

25 janeiro 2014

De como o ladrão se transformou em carcereiro

Em tempo de fim-de-semana e de maior inclinação para o descanso pretendo contar-vos uma história que é menos para adormecer e muito mais para acordar.
A história vai sendo conhecida, mas pelo que tenho ouvido contar precisa, ainda, de ser muito mais divulgada. Eu próprio, ainda que através de outras linguagens, em outras ocasiões, aqui tenho deixado alguns flashes sobre o desenrolar da história.
Era uma vez . . .
Tudo estava sendo preparado há vários anos, mas foi em 2008 que a tramoia passou a ser mais conhecida, com a falência das empresas financeiras Lehman Brothers e Bernard Madoff, e ainda da empresa Enron. A falência destas instituições era, apenas, a ponta do iceberg. Debaixo de água era todo o sistema financeiro que se encontrava ancorado. Partida a âncora, tudo ficou à deriva, com inimagináveis consequências sobre a sustentabilidade do sistema financeiro e sobre a vida das pessoas.
Generalizadamente pensou-se que com o naufrágio nada se poderia salvar. O naufrágio tinha origem no comportamento dos agentes financeiros que, inebriados pela luz de um sistema globalizado, passaram a atuar como se estivessem possuídos de uma tela protetora que lhes seria fornecida por uma espécie de poção mágica. Levaram a assunção de riscos até ao limite mais elevado. Inundados de liquidez levaram os vários agentes económicos e sociais a tomar créditos insustentáveis. A corda partiu-se. E o que é que aconteceu, a seguir?
Toda a gente e os principais responsáveis institucionais e de governo passaram a declarar que tal não podia voltar a acontecer, que era preciso regular, de forma mais rigorosa, o comportamento dos agentes financeiros em relação ao futuro e obrigá-los a assumir as responsabilidades dos desmandos em que se tinham envolvido. Se bem o disseram, pior o fizeram.
Com efeito, como nunca antes tinha acontecido, o sistema financeiro chamou à ordem os responsáveis políticos, convencendo-os de que se poderia mexer em tudo menos na ordem financeira vigente. Isto é, o equilíbrio perdido teria que ser recuperado, mas à custa do Zé-Povinho.
O argumento utilizado foi o de que o Zé estava a “gastar acima das suas possibilidades”. Tinha, não apenas de passar a gastar menos, mas também de devolver o que antes tinha gasto a mais, através do crédito e dos financiamentos ou transferências do Estado.
O resto da história é conhecido. O seu instrumento foi a austeridade, pela mão dos estados nacionais, sós ou com o policiamento das “troikas”. O grande argumento: a necessidade de reformar o Estado para que fosse reposta a ordem e o rigor financeiro das suas contas. Anunciaram alto e bom som um plano para a reforma do Estado e, em particular do Estado Social, mas desistiram depressa. A razão: concluíram que era muito mais fácil destruir o Estado Social sem plano, através de medidas avulsas. E se bem o pensaram melhor (pior) o fizeram.
Então porquê esta sanha destruidora do Estado Social? Muito simples; o Estado Social desenvolveu-se no pós-guerra como um mecanismo de redistribuição de rendimentos já que o simples funcionamento das “regras de mercado” não permitia obter essa redistribuição. O sistema financeiro entendeu que se tinha ido longe de mais e que o momento era o mais adequado para expropriar o que até então o “Zé-Povinho” tinha adquirido. Não se tratou de expropriar apenas o futuro, mas também o passado. Creio estar assim compreendido o ataque aos salários, ao emprego, aos funcionários públicos, às pensões, etc., etc.
Conta-se, agora, que o emprego está a aumentar, mas o que é que isto quer dizer? Pode ser verdade que aumentou o número de trabalhadores, mas o que aconteceu foi que um trabalhador a tempo inteiro foi substituído por 2, 3 ou 4 trabalhadores a tempo parcial, com remunerações horárias metade ou menos do que as remunerações anteriormente praticadas.
E assim se vai fazendo o “ajustamento”. Chegados ao fim do período de ajustamento todos nos diziam que o esforço e os sacrifícios teriam sido grandes, mas que teria valido a pena porque finalmente estaríamos livres.
Só que o que era verdade aqui há uns meses já deixou de o ser. A Sr.ª Ministra das Finanças acaba de lembrar que ainda é muito cedo para deitar foguetes: “A recuperação ocorrerá, mas as pessoas não podem ter a expectativa de voltar ao que era nesse sentido, porque o que era não existe. A realidade que tínhamos antes em boa parte era uma ilusão de prosperidade e essa realidade não existe”. Talvez já lhe tenham puxado as orelhas, até porque veem aí as eleições europeias; mas o que se há-de fazer, fugiu-lhe a boca para a verdade!
Para que se não volte “ao que era” não deixará de, complementarmente, se exigir que se venha a adotar um “programa cautelar”. A sua contratação terá como consequência que o protetorado continuará. A austeridade continuará vivinha. Os polícias internacionais até poderiam aceder a que o programa cautelar fosse dispensável se o governo em funções permanecesse ao longo dos tempos. Só que há sempre um risco de com as diversões eleitorais ver chegar ao poder outra gente que seja mais mal comportada e, assim, mais vale a pena prevenir do que remediar.
Que fazer? Não me parece que haja outro caminho que não seja o de, face à expropriação do Estado Social reunir forças para expropriar o “capital” acoitado debaixo da manta de um sistema financeiro que se encontra globalizado. E isso é possível? Claro que é, mas para isso será necessário deixarmos de nos comportar como o menino que diz à professora: “ Oh senhora professora, quem se está a comportar mal não sou eu, é aquele menino da camisola às riscas azuis e brancas”.
E aqui está a história de como o ladrão se transformou em carcereiro.
 

07 janeiro 2014

Um acordo desprezível sobre a união bancária europeia

É assim que o economista alemão Wofgang Münchau, no seu artigo publicado no Financial Times on-line de 22 de Dezembro “An exercise in prolonging a banking credit crunch”, sintetiza o acordo obtido no conselho de ministros das finanças, em Dezembro passado: the lousy agreement on banking union will produce the financial sector equivalent of austerity.

Recordamos que a proposta de criação de uma união bancária, radicava na convicção de que se tratava de um instrumento indispensável para a estabilidade financeira da zona euro, permitindo quebrar a ligação entre as dívidas soberanas e as dívidas dos bancos, ligação esta responsável pela propagação da grave crise financeira, que afectou (e continua a afectar) em especial as economias mais débeis.

A expectativa acerca do que poderia vir a ser a posição do Ecofin era tanto maior quanto se conheciam as posições defendidas por um grupo de países, fazendo bloco à volta da Alemanha, ao mesmo tempo que os países periféricos se mostravam ser incapazes de unir esforços na defesa dos seus representados.

Aquelas posições determinaram o resultado, tendo a Alemanha obtido tudo o que queria a troco de nada!

Assim, no caso de se declararem dificuldades a um banco da união monetária, ele não será socorrido por um mecanismo comum de resolução, uma vez que a este não foram atribuídos os indispensáveis meios financeiros. A ideia de um período transitório de 10 anos para que tal possa vir a acontecer equivale a um conceito de união bancária divorciado do princípio europeu de solidariedade entre os seus membros.

As consequências deste acordo são da maior gravidade.

Desde logo, uma contracção de crédito à economia, quando daquele se esperava que viesse a ser um instrumento necessário para a sua recuperação dos efeitos destruidores das políticas de austeridade, sentidas mais fortemente nos chamados países periféricos.

É também relevante que, na ausência de meios financeiros comuns de resgate a bancos em risco, será problemático para o BCE impor um grande rigor aos bancos que vai supervisionar e que necessitam de aumentar o seu capital, pois pondera certamente as consequências nefastas de uma declaração de insolvência bancária sobre a estabilidade financeira.

Recordamos que o presidente do Parlamento Europeu (Martin Schultz) declarou que o acordo obtido entre os ministros das finanças da zona euro foi o maior erro jamais cometido na resolução da crise da dívida.

As eleições europeias estão previstas para o próximo mês de Maio e o PE é co-decisor na matéria com o Conselho de Ministros Europeu.

Será que podemos ainda ter esperança numa solução que não seja apenas alguma minimização dos danos colaterais?

Se assim não acontecer, o horizonte sombrio que Münchau descreve no seu mais recente artigo publicado no Financial Times on-line de 6 deste mês de Janeiro “ What euro-crises watchers should look for in 2014” pode vir a ser bem real.

05 novembro 2013

A OIT defende para Portugal uma estratégia centrada no emprego

Falta já pouco para o fim do programa de assistência financeira de que se conhecem alguns dos muitos efeitos perversos que se manifestam na economia e na sociedade portuguesa e que se irão reflectir nos anos futuros.


Mais do que discutir agora se vem aí novo resgate ou um programa cautelar, o que importa é preparar o caminho para que, em qualquer caso, se criem as bases de um desenvolvimento sustentável, rejeitando prosseguir políticas suícidas, e avaliando alternativas baseadas em estudos bem elaborados, não em modelos teóricos desajustados, como tem sido o caso, e que só subsistem pelo teimoso autismo do governo, como ontem escreveu neste blogue Manuela Silva.

O protagonismo quase exclusivo assumido pelas organizações que compõem a troika (os “donos do dinheiro”) terá contribuido para um crescente pessimismo quanto à capacidade de afirmação de outras instituições internacionais, às quais estamos vinculados desde há longas décadas, perante as quais assumimos compromissos, e que podem, e devem, ser parte do apoio de que necessitamos.

A avaliar pelo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que ontem nos foi dado a conhecer e que tem o título “ Enfrentar a Crise do Emprego em Portugal” , aquele pessimismo poderá não se justificar: de facto, trata-se de uma análise séria e muito completa do que tem sido o agudizar da situação económica e social em Portugal, que é anterior a 2008, mas sofreu mais intensamente com as medidas desastrosas e ineficazes de combate à crise.

A nossa deterioração do mercado de trabalho, recorda a OIT, com a perda de um em cada sete empregos, foi a mais significativa entre os países europeus, depois da Grécia e da Espanha, e a taxa de desemprego atingiu o máximo histórico de 17 por cento.

Perante as condições macroeconómicas difíceis que se atravessam, e considerando a incapacidade da incipiente recuperação económica esperada (pelo FMI) para provocar qualquer efeito positivo no desemprego, propõe a OIT uma mudança de estratégia, em que se impõe passar a priveligiar uma visão do longo prazo, negociar uma redução dos juros e adoptar Políticas Activas do Mercado de Trabalho que já provaram a sua eficácia e que seriam dirigidas, em especial, aos grupos em situação mais crítica, isto é, jovens desempregados, desempregados de longa duração e agregados familiares sem trabalho.

De facto, o que a OIT advoga é uma estratégia coerente, centrada no emprego, que tem presente uma multiplicidade de factores, nomeadamente:

• os constrangimentos financeiros que pesam sobre as pequenas empresas;
• a necessidade de alargamento da base de produção;
• o reforço das instituições do mercado de trabalho;
• a emergência social e a necessidade económica que é dar atenção ao elevado desemprego jovem;
• a resolução das fragilidades do sistema educativo;
• a necessidade do forte envolvimento dos parceiros sociais para chegar a soluções equilibradas, promover a confiança e ajudar a definir uma visão para um futuro melhor.

Estima a OIT que as políticas que preconiza, travariam o desemprego, que desceria dois pontos percentuais até 2015, enquanto o ritmo de redução do deficit orçamental seria mais lento em 2014, mas aceleraria nos anos seguintes.

Sendo certo que outras abordagens podem ser propostas, aquela que a OIT elegeu neste seu trabalho, e, sobretudo, a forma equilibrada e séria como o elaborou, torna-o um contributo precioso para um urgente debate, entre parceiros sociais, responsáveis políticos e sociedade civil, acerca do futuro colectivo que queremos, e podemos, construir.

26 setembro 2013

A oportuna "ralação" do Papa Francisco com o dinheiro

No passado dia 22 o Papa Francisco deslocou-se -se a Cagliari, na ilha da Sardenha e aí pronunciou ensinamentos que vêm na linha do que a Igreja sempre nos tem transmitido através da sua Doutrina Social, mas que, nas atuais circunstâncias de crise mundial, ganham uma luminosa acuidade. As declarações que aí fez tiveram nos media um eco momentâneo, mas rapidamente desapareceram do seu horizonte de comunicação. São, no entanto, declarações de enorme importância, sobre as quais nos devemos deter, com atenção e de forma pausada.
Vale a pena começarmos por recordar que no início da semana, como se diz no blog Ouvido do Vento”, a propósito da partida do grande poeta da sensibilidade (Ramos Rosa): “O poeta fechou o livro e adormeceu”. No momento da sua partida, um outro poeta (António Carlos Cortez), muito ajustadamente, disse: “Neste tempo de sadismo financeiro, lê-lo é fundamental”. Leiamo-lo pois!
É sobre o sadismo financeiro que o Papa Francisco se pronuncia. Chamo a atenção para o fato de que Francisco não demoniza o dinheiro, enquanto intermediário de transações e nas suas outras funções tradicionais. Na sua intervenção fala, antes, do dinheiro enquanto fim em si mesmo, enquanto instrumento de poder.
Com a particular atenção que já lhe conhecemos, para encontrar e escutar as pessoas, cada pessoa, Francisco ouviu os testemunhos de três participantes, cuja vida mudou devido à crise: um desempregado, um pastor e uma empresária. Para todos a crise trouxe a falta de trabalho e a desesperança.
O Papa reagiu, dizendo que a falta de trabalho é uma consequência da escolha global onde quem comanda é o dinheiro. Acrescentou que “onde não há trabalho falta a dignidade”. Um sistema económico que assim se comporta é um “sistema sem ética e injusto”.
A idolatria do sistema condu-lo a destruir, em primeiro lugar, os mais frágeis e desprotegidos: os jovens e os idosos. Sem trabalho os jovens não podem caminhar as veredas da dignidade e da esperança. Os idosos são os mais injustiçados porque incapazes de se defenderem. Uns e outros estão sujeitos a uma verdadeira eutanásia financeira.
O dinheiro comanda! O dinheiro tudo submete! É o que neste blog vários dos seus autores têm vindo a sublinhar: as perversões trazidas ao funcionamento das economias e das sociedades, cada uma de per si e a todas em conjunto,  pelo sistema financeiro.
O sistema financeiro organizou-se de tal modo que, embora se apresentando como irrigador da fertilidade das economias, se transformou num monstro que tudo destrói e de tudo se apropria. Vide, por ex., a ausência de financiamento à economia real; tal só acontece porque o sistema financeiro encontra melhor remuneração através das aplicações financeiras do que por via das afetações à economia real.
E tal é inevitável? Certamente que não, mas para que não o fosse seria necessário que, a nível dos Estados e das organizações mundiais, houvesse capacidade e vontade de proceder à regulação, dos mercados de capitais e da sua circulação, como se proclamou imediatamente a seguir ao desencadear da crise, em 2008. Não só não existem como os Estados, que melhor o poderiam fazer, são quem beneficia, também, do atual estado das coisas por via das aplicações financeiras que realizam.
A Europa fez progressos reduzidos ao nível da integração das suas economias e a maioria dos passos dados foram-no debaixo de orientações de matriz liberal, isto é, orientações que procuram os beneficiar os mercados de capitais e não os outros mercados, por ex., do mercado da mão-de-obra. Regresso aos mercados, sim, desde que sejam criadas condições para que seja possível regressar a todos os mercados. O problema é que como já aqui se demonstrou esse regresso, simultâneo, é impossível. Então, porque privilegiar o regresso, apenas, ao mercado de capitais?
Vem a propósito recordar que o Banco Central Europeu (BCE) foi fundado debaixo deste paradigma, embora sob o manto que pretendia proteger a Europa da inflação. Vale a pena recordar declarações, feitas há dois dias, pelo seu Presidente Mário Draghi.
Respondendo a questões que lhe foram colocadas por uma deputada portuguesa no Parlamento Europeu, a propósito do regresso aos mercados previstos para o dia 23 deste mês, não se eximiu a dizer que “não é tempo para flexibilizar a meta do défice”. Acrescentou que “A história recente mostra que até o mais leve sinal de recuo nos progressos de consolidação orçamental faz os mercados reagir brutalmente . . . a disciplina dos mercados está aí e vai continuar e temos que ter isso em consideração no que fazemos”. Isto é, escravização face aos mercados e eu acrescentaria, que não é face aos mercados, mas sim face ao mercado de capitais. E não deveria, também, ter-se em conta a forma como reagem os outros mercados, por ex., o mercado do emprego? Deixando, assim, funcionar o mercado de capitais, o funcionamento do mercado do emprego fica altamente perturbado. E eu pergunto, não se faz nada?
No entanto, este Sr., em declarações feitas na mesma ocasião, admitiu a possibilidade de lançar mais uma operação de liquidez de longo prazo de que beneficiaria a banca da zona euro. Em relação a esta possibilidade, admite implicitamente, que o "livre funcionamento" do mercado de capitais poderia deixar de ser um pouco menos livre, para não dizer muito menos livre. Para isso aí está a mão protetora do BCE.
O financiamento de que não podem beneficiar os Estados é bem-vindo quando destinado a apoiar os bancos. Mais, sabe-se que por ocasião de operações de financiamento realizadas anteriormente, a taxas de juro em torno dos 1%, a liquidez obtida serviu para comprar dívida pública, incluindo a portuguesa, que tinha como contrapartida taxas de juro 5 ou 6 pontos acima. Não esqueçamos que as instituições que influenciam o comportamento das taxas de juro da dívida (por ex., as agências de rating) são controladas pelas instituições que vão beneficiar dessas mesmas taxas de juro, elevadas, pagas pelos Estados.
Isto é, os bancos jogam em casa e fazem pagar ao adversário os custos de manutenção, do estádio e dos balneários! Assim também eu!

29 junho 2013

Manuela Silva é Doutora Honoris Causa
(por causa da honra)

Realizou-se, no passado dia 21 de Junho, a sessão solene de atribuição do grau de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Técnica de Lisboa (através do ISEG), à nossa amiga e companheira, Maria Manuela Silva. Sobre quem e o que ela é não direi uma palavra, porque isso só serviria para desmerecer todo o respeito que por ela possuímos.

Quero, no entanto chamar a atenção para o notável discurso que na ocasião proferiu, que desejo que seja lido e refletido por todos. O texto do discurso pode ser encontrado aqui.

Para os que não puderem ler a versão integral aqui deixo alguns extratos do que considero mais relevante.

O tema:

“A crise da ciência económica e a legitimidade e a urgência de ultrapassar a fronteira de um pensamento único, na investigação e no ensino da Economia.”

Sobre o lugar da ciência económica:
 
“Foi a minha ligação ao conhecimento da economia real que muito contribuiu para que tivesse mantido, ao longo da minha carreira docente, uma visão da Ciência Económica necessariamente ligada à Ética e à Política e não desvinculada da situação concreta das pessoas e dos povos, do modo de produção e especialização produtiva, dos níveis e padrões de consumo em relação com a qualidade de vida, da repartição do rendimento e da riqueza e a sua desigualdade, do papel do Estado na promoção do desenvolvimento e na regulação do mercado e correcção das respectivas disfuncionalidades.
. . .
Incluo-me no grupo dos cientistas sociais que reconhecem que, muito justamente, a Ciência Económica está sob suspeita, tanto por parte de alguns dos seus artífices, como pelo lado de algumas correntes de opinião pública e decisores políticos.
O que está em causa não é o pensamento económico em si o qual se considera relevante e indispensável para a melhor compreensão da realidade societal e do lugar que nela ocupa a organização e o funcionamento da respectiva economia; tão pouco se põe em dúvida o papel coadjuvante que a Ciência Económica pode ter na definição de estratégias e medidas de política que viabilizem e promovam um desenvolvimento sustentável ao serviço do bem-estar colectivo e da qualidade de vida das pessoas, da coesão e da paz social, finalidades indissociáveis de uma democracia autêntica.
O que está em causa é que a Ciência Económica dominante se deixou capturar pelos interesses do capital financeiro e vem harmonizando as suas lógicas de construção científica com esses interesses, concentrando aí o seu olhar e o aperfeiçoamento das suas ferramentas analíticas e, do mesmo passo, desviando-se de outras hermenêuticas que privilegiem, por exemplo, a satisfação das necessidades das pessoas e do emprego dos respectivos recursos individuais e colectivos, a prossecução de finalidades de bem-estar individual e social, a equidade no acesso e na repartição dos bens, os processos de um desenvolvimento sustentável.
Nesta deriva ideológica, que, nas três últimas décadas, se tem vindo a impor, incluindo no meio académico, sob a capa de um pensamento único com pretensa validação científica, sobressaem a lógica de um comportamento dito “racional” baseado no mero interesse individual egoísta, a exaltação do mercado como regulador único do conflito de interesses, a competitividade como motor de um crescimento económico ilimitado.
Num tal contexto, varrem-se para debaixo do tapete problemáticas essenciais, como, por exemplo, a intolerável pobreza de muitos no meio da abundância material e do progresso tecnológico hoje possível ou aceita-se, acriticamente, que o desemprego estrutural elevado figure nos modelos macroeconómicos como variável de ajustamento; subestimam-se as desigualdades crescentes entre estratos populacionais e entre diferentes territórios de par com a formação de fortunas avultadíssimas que se acumulam improdutivas e sem benefício colectivo; ignora-se como estas condicionam (ou, inclusive, determinam!) estilos perniciosos e predadores de padrões de consumo e propiciam um crescimento económico sem desenvolvimento sustentável.”

Sobre a crise:

“A propensão ideológica para a exaltação do mercado em detrimento do papel regulador do Estado deixou que a crise se fosse arrastando no tempo e se aprofundasse e assumisse gigantescas proporções económicas e sociais, uma crise que se tornou sistémica e, por isso, se mostra cada vez mais difícil de ultrapassar.”
. . .
a austeridade tem acentuado a transferência de valor do sector real da economia para o sector financeiro, com consequências negativas na desaceleração do investimento produtivo e no emprego; o défice das contas públicas engrossado por efeito das avultadas transferências de receitas do Estado para o sector financeiro e outros sectores rentistas tem implicado um severo esforço fiscal sobre os contribuintes, trabalhadores e pensionistas, acompanhado de uma subtil e cada vez mais aprofundada redução do perímetro das funções do estado social com consequente degradação da qualidade da provisão pública de bens em domínios essenciais como sejam a saúde, a educação e a segurança social.
Sob a capa do argumento da necessidade de conter os gastos do Estado, tem-se assistido a uma progressiva atrofia do estado social e à descaracterização do mesmo no que respeita à universalidade dos direitos como base da sua respectiva sustentação.”
. . .
“A Ciência Económica não é, seguramente, a única causa desta deriva que nos tem conduzido ao risco de um sério retrocesso civilizacional. Há, por certo, razões de ordem cultural, ética, institucional e política que concorrem para esta crise.”
 
Sobre a ciência económica, a ética e a cidadania:
 .
“Acima de tudo, reputo do maior interesse que a Ciência Económica se reconcilie com a Ética”
. . .
“estar a assistir a um processo evitável de empobrecimento colectivo em bem-estar e qualidade de vida para a generalidade dos cidadãos e cidadãs de todas as idades, por constatar que para vastos sectores da população portuguesa se estão a atingir níveis inesperados de precariedade material e risco de pobreza; o desemprego assume, cada vez mais, carácter estrutural dentro do actual modelo económico e atinge, hoje, um número anormalmente elevado e crescente de pessoas e famílias inteiras, algumas das quais privadas de qualquer apoio social, esgotado que foi o período fixado para o subsídio de desemprego.
Vejo com apreensão que crescem as desigualdades na repartição do rendimento e da riqueza e acumulam-se no topo da pirâmide incalculáveis fortunas socialmente improdutivas,”
. . .
Convém, porém, ter presente que, por detrás dos números, que as estatísticas revelam, estão pessoas de carne e osso.
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Há uma dívida social de que pouco se fala, mas que não cessa de crescer, enquanto os recursos disponíveis na economia são, em boa parte, aspirados pelos encargos com os juros pagos por dívidas aos credores.”

Sobre a missão da Universidade:

“Reconheço que não está nas atribuições da Universidade substituir-se aos responsáveis políticos, aos governos e demais órgãos de soberania, mas como parte integrante da sociedade civil, particularmente qualificada que é, deve assumir a responsabilidade de fazer ouvir a sua voz produzindo conhecimento e tornando-o disponível à comunidade.
. . .
faço votos de que esta sessão pública seja um contributo positivo, ainda que modesto, para construir um futuro mais esperançoso, para os nossos concidadãos e concidadãs, na rota da prosperidade, da justiça, da liberdade, da democracia e da paz”.