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29 agosto 2012

A RTP, os palácios, os repuxos de água, os concertos de câmara, os jardins de buxo e o crescimento das Relvas

Um título estranho que, afinal, tem muito a ver com a realidade que estamos vivendo. Parece que as suas várias componentes não têm nada a ver umas com as outras mas, como veremos, estão profundamente entrosadas.

Todos temos uma perceção mais ou menos clara, do que são bens e serviços públicos e bens e serviços privados. É comum considerar-se como bens e serviços públicos os que são possuídos pelas administrações públicas e como bens e serviços privados os que são detidos por pessoas individualmente, qualquer que seja o título que justifica a sua apropriação.

É uma distinção que, no entanto, gera muitas erradas interpretações, porque tende a confundir as formas de gestão com a verdadeira raiz da existência dos bens ou serviços públicos.

Em economia há, um critério mais rigoroso para definir o que são bens públicos. São bens públicos os que obedecem às propriedades de “não rivalidade”, de “não exclusividade” e de “indivisibilidade”. 

Parece que a introdução desta nova terminologia só vem complicar as coisas quando elas precisavam de ser simplificadas. Não é esse o caso, como veremos.

A propriedade da “não rivalidade” significa que um indivíduo, ao consumir um bem ou serviço (por ex. passear num jardim, ouvir um concerto num espaço público), não faz concorrência, isto é, não limita o benefício que outro indivíduo pode retirar desse mesmo consumo.

A “propriedade da não exclusividade” significa que nenhum indivíduo pode apropriar-se em exclusividade do bem ou serviço, ainda que o deseje.

A “propriedade da indivisibilidade” tem como consequência o bem ou serviço não poder ser consumido às parcelas; ou se consome todo, ou não se consome.

Nos “bens ou serviços públicos puros” estas propriedades verificam-se em qualquer tempo ou lugar. É fácil de compreender, no entanto, que estes critérios sofrem limitações: no tempo, porque um serviço que hoje é público, pode não o ter sido no passado (por exemplo a distribuição de energia elétrica) e inversamente; no espaço, já que o que é tomado como público numa determinada cidade, pode não o ser numa outra (por ex. a existência de uma orquestra sinfónica financiada pelos poderes públicos da cidade).

Há quem considere que só podem ser públicos os bens ou serviços cujas propriedades decorrem das suas características naturais (o ar, a água da chuva, e as forças armadas, por ex.). No entanto, é cada vez mais generalizada a opção segundo a qual os bens e serviços são públicos, não apenas por causa da sua natureza mas, também, em consequência de opções de caráter político. Isto acontece quando, por ex., uma sociedade, uma comunidade, entende que determinados bens ou serviços, que só beneficiam determinadas classes privilegiadas, devem passar a beneficiar toda a população, passando as autoridades públicas a ter a responsabilidade de proporcionar a todos, o acesso a esses bens e serviços.

E cá estamos nós chegados à RTP, aos palácios, aos repuxos de água, aos concertos de câmara, aos jardins de buxo e ao crescimento da Relva.

A televisão tanto entre nós, como na grande maioria dos outros países, foi concebida como um serviço público porque se considerou que a informação e os outros serviços que disponibiliza têm que estar acessíveis a todos, em igualdade de condições e garantindo uma total característica de isenção. Esse é um dos fundamentos da sociedade democrática. Isto não significa que não possam existir canais de televisão de iniciativa privada, embora convenientemente regulados pelo Estado. Contudo, a iniciativa privada não substotui a iniciativa pública.

 Se a televisão fosse considerada, apenas, um serviço privado, ou mesmo só objeto de concessão a privados, os valores, acima referidos, que se pretendia proteger podem ser postos em causa. Vide o que poderia acontecer se a concessão, após a realização de concurso público internacional, fosse atribuída a um canal ou entidade estrangeira. De pouco valerá falar de que não tem que haver receio argumentando que a forma da gestão dos programas estará pré-fixada nas condições da atribuição da concessão.

Quanto aos palácios, já houve tempo em que eram domínio privado. Hoje, a grande maioria deles é propriedade pública e está sujeita à gestão pública e podem ser usufruídos por toda a população.

De igual modo nos poderíamos referir aos repuxos de água que no passado só estavam disponíveis nos jardins dos palácios, para gáudio dos nobres que aí habitavam.

A música de qualidade também só estava acessível a poucos. Quem não conhece a contratação de compositores e músicos por reis, príncipes e papas? Ao povo, às vezes, ficava reservado o canto do “nosso fado”.

Os jardins de buxo são composições de rara beleza de cuja observação a grande maioria de nós não poderia beneficiar, a menos que espreitasse pelo buraco da fechadura dos palácios. Hoje, eles são, na sua grande maioria, considerados um bem público.
 
 Acontece que não há jardins dignos desse nome sem um bom tapete de Relva, o que só é possível se a Relva for de qualidade. Entre nós os principais tipos de relva são: o escalracho, a bluegrass, a ryegrass, a festuca e a bermuda. A plantação ou semeadura de cada uma delas não tolera, no entanto, o crescimento de ervas daninhas, com grande facilidade confundidas com a verdadeira relva. A estas, ou estes, Relvas há que dar um combate incansável, sem o que eles darão cabo de todo o jardim, nomeadamente, pelos efeitos perversos resultantes das tentativas de criação de comunidades urbanas, de transmissão de informações biológicas que eliminam a relva boa ou de se envolverem em reformas administrativas pouco sustentadas.

Estas são algumas das tentativas que vemos proliferar e que rapidamente podem fragilizar os nossos jardins (democracia).

Compreenderam? 

Espero que sim.

01 maio 2012

Esbulho (episódio n.º n+1) - (I)


 Acerca  de esbulho ou do ato de esbulhar dizem os dicionários:
- “Aurélio” - Privar alguém de alguma coisa a que tinha direito;
- “José Pedro Machado” – Desapossar de; desapoderar, despojar, desapropriar. 

O significado dado por ambos os autores, é largamente coincidente, mas de algum modo se pode dizer que o primeiro torna mais explícito o conteúdo do segundo, na medida em que a coisa de que se foi desapossado era algo a que se tinha direito.

Perguntar-se-á: porque é que se vai agora buscar o termo esbulho? Por uma simples razão, não poderão deixar de ser classificados como tal algumas das medidas de política que em Portugal, e não só, têm vindo a ser adotadas pelo Governo com o pretexto do saneamento das finanças públicas, mas que não se traduzem em outra coisa que não seja a transferência de rendimentos dos que menos têm para os que mais têm. Adiante vamos ver porquê.

Neste post pretendo comentar a anunciada criação duma taxa sobre os produtos alimentares, comercializados nas grandes superfícies, a pretexto de financiar iniciativas que visam garantir a segurança alimentar.

Começo por justificar a numeração dos episódios. Antes deste muitos outros episódios tiveram lugar (salários, subsídios de desemprego, despesas de saúde e de educação, pensões de reforma, subsídios de 13º e 14º mês, etc.) que aqui não foram expressamente comentados. Como não vou fazer uma enumeração desses episódios, optei por supor que o conjunto da sua soma poderia ser tomado como sendo igual a “n”, sendo o da taxa sobre os produtos alimentares, o primeiro que se acrescenta aos “n” anteriores.

Merece alguma explicação adicional o que atrás se disse acerca da qualificação de “transferência de rendimentos dos que menos têm para os que mais têm”. Desde o fim da 2ª Guerra Mundial que, pausadamente, mas de forma persistente, se foi construindo o que veio a ficar designado como “Estado Social”. Essa construção teve um objetivo claro: tornar acessível a toda a população o benefício de bens (água, luz) e serviços (saúde, educação, ações culturais), tomados como aquisições do progresso humano e a que não poderia aceder parte da população, com os rendimentos que auferia, mas que por opção política se considerou que deles deveria beneficiar.

Contudo, o fornecimento desses bens e serviços implicava o respetivo financiamento feito pelas diversas administrações públicas, cuja fonte não poderia ser outra que não as receitas do Estado e, nomeadamente, os impostos. Naturalmente que a carga fiscal existente, através do sistema de impostos progressivos, tendia a sobrecarregar mais os que tinham rendimentos mais elevados, no que a esse financiamento diz respeito. Esta era, e é, uma forma indireta de obter uma distribuição dos rendimentos mais equilibrada.

Entretanto, os abundantes capitais existentes no mercado, em busca de aplicações rentáveis, descobriram que, graças às designadas “criatividade” e “inovações” no sistema financeiro, poderiam aí encontrar aplicações com rentabilidades mais elevadas do que nas aplicações tradicionais: economia real e mercado das inovações. Foi aí que, essencialmente, as aplicações se concentraram. A ousadia e o risco assumidos por essas aplicações cresceram de modo exponencial. O resultado é conhecido, nomeadamente, a partir da explosão verificada em 2008.

Se mais nada tivesse acontecido, os que realizaram aquelas aplicações arriscadas teriam sido sujeitos a grandes perdas. Não foi isso o que aconteceu. Este povo da engenharia financeira dorme sempre com um olho aberto e outro fechado e, rapidamente, descobriu que poderia fazer-se ressarcir das perdas ocorridas especulando sobre a dívida dos países que tinham, no mundo da globalização, uma posição política mais frágil. Tal qual animais selvagens, começaram o repasto por países como a Irlanda, a Grécia e Portugal e nisso não se têm saído nada mal. Chegados ao esqueleto vão em busca de outras presas, a Espanha, a Itália, talvez a França, e assim sucessivamente.

Todas estas operações a que temos assistido não são outra coisa que a recomposição dos capitais que tinham sofrido perdas com as anteriores aventuras financeiras. Estamos, de facto, perante uma transferência de rendimentos (ainda que indireta) dos que menos têm para os que mais têm, utilizando para tal a destruição do Estado Social. O que demorou 50 ou 60 anos a construir pode desaparecer em muito menos de uma década!

23 outubro 2011

Começa-se com a austeridade; depois, austeridade ao quadrado; depois, austeridade ao cubo; depois, . . . oh! finou-se

Finou-se o quê? A economia, com todo o cortejo de desgraças, situações de pobreza e de marginalidade que lhe são inevitáveis. Ainda não chegamos ao “finou-se” mas, partindo da situação de austeridade, acrescentando-lhe austeridade ao quadrado, depois austeridade ao cubo e assim sucessivamente, numa lógica de aceleração constante, o resultado não pode ser senão o mirrarmos completamente. A austeridade não tem como consequência crescimento e desenvolvimento; à austeridade segue-se austeridade e depois, mais austeridade.

Já início de 2011, no “Um Compromisso e um Apelo”, lançado pela Rede “Economia com Futuro”, dizia-se: Sabemos que não há lugar para uma conciliação entre medidas de austeridade violentas (exclusivamente orientadas para a consolidação orçamental e a redução da dívida externa no imediato) e crescimento capaz de equilibrar o orçamento e reduzir a dívida a prazo. Para quem tivesse podido pensar que se tratava de uma mera especulação, passaram-se pouco mais de 8 meses e os factos estão aí para demonstrar que então havia um profundo realismo.

Vou socorrer-me de uma imagem para se poder tornar mais evidente o que acaba de ser referido. Suponhamos um grande espaço agrícola (Europa), ocupado por vários proprietários agrícolas (países) que em determinado momento resolveram formar uma cooperativa (União Europeia) com vista a que, por essa via pudessem ampliar positivamente os resultados das suas explorações.

A água (financiamento) constitui um input fundamental para que o desenvolvimento das culturas (economias) seja bem sucedido. O êxito da cooperativa tornou-se tão promissor que os agricultores passaram a regimes de cultura intensiva (elevadas taxas de crescimento). A exigências de rega tornaram-se cada vez maiores e alguns agricultores entenderam começar a fazer furos adicionais, o que fez com que a água começasse a faltar nas explorações dos outros agricultores. Estes reagiram, diminuindo a intensidade da rega (do financiamento à economia) que vinham realizando. A consequência foi que a de que produtividade agrícola diminuiu substancialmente. Para não perderem tudo, estes agricultores passaram a pedir água (financiamento) aos vizinhos contraindo, perante eles, por essa via, dívidas crescentes, que pouco a pouco se tornaram difíceis de solver.

Quando entenderam que talvez fosse ajuizado também eles fazerem furos deram-se conta que o rendimento que retiravam da exploração já não lhes permitia pagar o investimento de fazer o furo. Isto é, a austeridade a que submeteram a plantação de nada serviu, pois deixaram de vender produtos de qualidade e, em consequência, de com recursos próprios financiarem a realização de furos que pudessem permitir recuperar a plantação (a economia real). A austeridade trouxe mais austeridade e teve como consequência que os terrenos (a economia) deixassem de produzir. É a algo de parecido que estamos a assistir na Europa.

As medidas de austeridade que foram adoptadas não atingiram os objectivos que pretendiam prosseguir e, antes, agravaram a situação global, transformando a situação de crise, enquanto problemática específica de países marginais, numa preocupação que, inquestionavelmente, se tornou europeia e, até, mundial.

Tendo-se tornado evidente que “mudar de vida é preciso”, a evolução global da situação económica na Europa obrigou a que, durante os próximos três dias, os dirigentes europeus entendessem reunir-se, em conclave, para tentar conter o fogo que se alastra com, cada vez mais e maior violência. Não sabemos qual vai ser a cor do fumo da chaminé, mas sabemos que muita riqueza produzida, em particular nos países de economia mais débil, já foi apropriada pelo mundo financeiro. Tal poderia ter sido evitado se os alertas que contestavam os avanços, sem controlo, das lógicas neo-liberais de circulação de capitais tivessem, atempadamente, sido escutados. Hoje, só será possível conseguir a recuperação da economia europeia, se forem criadas condições para que a Europa dispense o financiamento de agiotagem.

Quais os resultados importantes a que seria indispensável que o conclave chegasse? No essencial, três:

1. Criar condições para que o financiamento das economias da União Europeia (EU), se torne independente dos mecanismos de financiamento, sem valores e sem pátria;

2. Regular a circulação de capitais no espaço europeu;

3. Tomar decisões que conduzam a uma Europa integrada, económica, social e politicamente, colocando a política monetária como seu instrumento e modificando, em consonância, como parece indispensável, os Tratados em vigor.

A explicação do conteúdo de cada um destes resultados merece, só por si, um post autónomo. Por agora, aguardemos pelo dia 26 para avaliar se a lucidez superou a barbárie ou, se pelo contrário, é esta que vai continuar a avançar.

Não esqueçamos que aquilo a que vimos assistindo, em termos da importância da transferência dos recursos nacionais, que são de todos, para as mãos dos promotores da agiotagem, antecipa situações equivalentes às das reparações de guerra, sem que para tal tivesse sido necessário lançar mãos aos métodos sangrentos da ou das guerras. Provavelmente que a inexistência de guerra, na Europa, durante os últimos 60 anos se deve, em muito, à visão estratégica da união dos países da Europa, tal como foi concebida pelos seus pais originais.

A situação a que se chegou pode muito bem ser explicada pela fragilização da ideia de Europa, a que desde há cerca de 30 anos, vimos assistindo. Sem necessidade de declarar guerra para se apropriar dos recursos, a ladroagem veio, instalou-se e banqueteia-se.

11 setembro 2011

As receitas e as despesas do Estado face aos caminhos e ao estacionamento do dinheiro

Muito se tem falado de aumento de receitas e de diminuição de despesas, como estratégias para resolver o deficit das contas públicas. Embora nem sempre se compreenda exactamente o significado das medidas de política que têm vindo a ser adoptadas, é sentimento generalizado de que o país está a ficar sem esperança e que essas medidas têm tido como consequência o que se pode designar como uma guerra, com várias batalhas, cujo objectivo desejado, ou não, é o de expropriar o bem-estar dos mais pobres a favor do muito mais que bem-estar possuem os mais ricos.

Apesar do que se sente é, para o comum dos cidadãos, pouco claro o que poderiam ser alternativas a adoptar. Vou tentar aqui trazer algumas explicações que creio poderem contribuir para aquela compreensão.

A existência de um Estado supõe que exerce funções, em benefício dos cidadãos, que eles não poderiam obter agindo cada um de forma individual. Acontece que, se em relação algumas dessas funções ninguém põe em causa que seja o Estado a exercê-las (negócios estrangeiros, defesa, segurança colectiva) já, em relação a outras, o consenso nem sempre é tão pacífico (saúde, educação, desporto, cultura).

A dificuldade de consenso decorre da circunstância de que os cidadãos, ou grupos de cidadãos, dados os rendimentos, a riqueza e os rendimentos de que dispõem, não valorizam do mesmo modo os benefícios que retiram do exercício daquelas funções. Essa valorização pressupõe uma avaliação que não é técnica, mas política e varia no tempo e no espaço.

Um exemplo da variabilidade no tempo pode ser encontrado, por ex., na forma como eram disponibilizados os serviços de música de qualidade, no séc. XVIII e como o são hoje. Trata-se de serviços que, no passado eram usufruídos de forma privada. Quem não tem presente os grandes concertos e recitais dados na corte ou nos palácios do grandes senhores e os apoios que davam aos grandes compositores? A maioria do povo não participava nestes eventos e se alguma excepção existia era através da música sacra acessível nas igrejas. Para que também estes pudessem aceder a esses benefícios, os grandes concertos, óperas e outros eventos passaram a considerar-se, como devendo ser fornecidos ou financiados pelo Estado. O mesmo se pode dizer acerca dos jardins públicos, da distribuição de água, do saneamento, etc.

A variabilidade no espaço é, também, patente na forma como são organizados os serviços de transporte em metro na grande maioria dos países ocidentais e por ex., no Japão. Em Tóquio existem várias linhas de metro objecto de exploração por empresas privadas. Também, as Câmaras Municipais do Alentejo não encaram o exercício das suas funções, do mesmo modo que as do Norte do País.

Aos bens e serviços que o Estado produz ou disponibiliza os economistas designam por “bens e serviços públicos”. Uns e outros não podem beneficiar exclusivamente (princípio da não exclusividade) um indivíduo e nenhum indivíduo prejudica outro pelo facto de consumir mais ou menos do bem ou serviço (princípio da não rivalidade). Para além disso, são indivisíveis (princípio da indivisibilidade), o que quer dizer que, por ex., num concerto de música clássica ninguém pode ir lá buscar um bocadinho e guardá-lo para si. As coisas são, de facto, um pouco mais complicadas, em particular, devido à possibilidade de formação de filas de espera e à territorialização dos bens públicos, assunto que não terei possibilidade de abordar agora.

Estas explicações foram aqui trazidas para mostrar que as funções que um Estado exerce devem ser encaradas como um instrumento de redistribuição ou de concentração de rendimentos.

Para que este instrumento se possa tornar operativo torna-se indispensável que o Estado obtenha receitas e realize despesas. Quando o valor das segundas ultrapassa o das primeiras diz-se que há um deficit das contas do Estado. Existe um superávit, no caso contrário.

Não é bom para a economia, nem para os cidadãos, que o Estado se encontre, permanentemente, com um desequilíbrio excessivo das suas contas. Ainda assim, o mesmo montante de deficit tem virtualidades maiores, ou menores, conforme a forma como se faz a afectação das receitas e despesas, beneficiando os que mais têm e vivem dos rendimentos do capital ou os que menos têm e vivem dos rendimentos do trabalho.

Quando o deficit é excessivo, para o reduzir, ou se aumentam as receitas, ou se diminuem as despesas, ou se recorre a ambas. Se todos poderão estar de acordo com isto, o acordo já é mais difícil quando se encara a aplicação de medidas concretas.

Se a estratégia for a do aumento das receitas são múltiplas as formas de o conseguir. Por ex., pode-se aumentar os impostos que incidem sobre a generalidade dos cidadãos, realizando discriminações nessa aplicação, ou não. Podem-se taxar mais pesadamente, em termos relativos, os rendimentos do trabalho que os do capital, ou inversamente. Um Estado mais preocupado com a defesa dos interesses dos titulares de rendimentos de capital taxa de igual modo uns e outros ou até, como se tem vindo a verificar, entre nós, aplica taxas mais elevadas aos rendimentos do trabalho do que aos do capital.

A estratégia de diminuição das despesas pode, também, ser avaliada nos mesmos termos. Tem-se vindo a dizer que dois dos grandes responsáveis pelo deficit são os sistemas de saúde e de educação a que têm acesso todos os cidadãos. Há duas maneiras de reduzir as despesas: aumentando a eficiência do funcionamento dos serviços, ou reduzindo o nível e qualidade das prestações. Embora a melhoria da eficiência deva ser promovida em todas as circunstâncias, a redução, ou não, da qualidade das prestações impõe que se avalie em que medida o grau de acessibilidade que os cidadãos, com diferentes níveis de rendimento, têm a esses serviços, fica prejudicado ou aumentado.

A disponibilização de serviços públicos de saúde ou de educação é para os cidadãos de menores rendimentos a única forma de poderem deles beneficiar. Os de maiores rendimentos, mesmo que os serviços públicos não existam ou sejam de inferior qualidade, têm sempre a alternativa de poderem recorrer a serviços prestados por entidades privadas, no país ou no estrangeiro. Assim, reduzir o financiamento destes serviços tem o mesmo significado que realizar uma transferência de rendimentos das classes mais pobres para as classes mais ricas.

É a isso que estamos a assistir em Portugal: as desigualdades na repartição dos rendimentos estão a aumentar, a equidade na repartição dos benefícios do bem-estar está a diminuir, as potencialidades do país para poder fazer face aos incontornáveis desafios do crescimento e do desenvolvimento estão a ficar, em grande medida, bloqueadas.

Não tem que ser necessariamente assim. A Conferência “Portugal – Uma Economia com Futuro”, que não é uma conferência só para economistas, mas aberta ao grande público, e que se realizará no próximo dia 30 de Setembro na Fundação Calouste Gulbenkian, mostrará caminhos para que assim não seja.

25 junho 2011

A TSU encolhe, a competitividade não mexe e aumenta o desequilíbrio na distribuição dos rendimentos ( I )


Alguma coisa se tem já vindo a falar acerca das medidas de política económica dos memorandos da Troika, mas é grande o desconhecimento que a generalidade de nós tem acerca delas. Há como que um desejo de anestesia geral perante algo que sabemos doloroso, mas que, pelo menos, momentaneamente, nos permite pensar que continuamos a estar no melhor dos mundos.

No entanto, a anestesia vai passar e quando acordarmos veremos que o que aí vem vai doer a sério. Talvez seja melhor evitarmos o efeito surpresa e, mesmo antes da anestesia geral, começarmos a preparar-nos para o que vem depois, que é já hoje.

Ao olharmos para a complexidade e o detalhe das medidas previstas nos memorandos, talvez mais no da EU que no do FMI, não podemos deixar de ficar de boca aberta, como se estivéssemos perante um grande assalto, realizado com grande profissionalismo, em que vieram os bandidos, levaram todas as jóias de família, passadas de geração em geração, deixando tudo como se não tivessem mexido em nada.

Perante isto, o comentário que se faz é: eles só fizeram isto porque tiveram a colaboração de alguém que conhecia bem os cantos à casa! Também, nas centenas de medidas previstas, que impressionam não só pelo número, mas também pelo detalhe do seu conteúdo, se pode dizer que houve alguém, cá dentro, que abriu as portas, disse onde estavam as jóias e que pensa, eventualmente, com isso, ele e os seus amigos, poder vir a beneficiar.

Surpreendente é, ainda, que perante isto as alterações no valor da Taxa Social Única (TSU) tenham sido eleitas, nomeadamente pelos media, como a rainha do baile. Não há explicação. Se não houver ignorância então, não pode deixar de se pensar que nos estão a procurar desviar a atenção da reflexão sobre coisas mais gravosas em que os memorandos são férteis.

Mas vamos à TSU. Para além das medidas previstas para promoverem as condições de funcionamento do mercado do trabalho, a redução da TSU surge como uma das poucas medidas que é tomada com o pretexto de aumentar a competitividade. Não é difícil mostrar que em relação a esse objectivo este instrumento não é eficiente e, além disso, provoca danos colaterais, nomeadamente, no agravamento do grau de desigualdade na distribuição do rendimento. Por isso, afirmo que quando diminui a TSU, a competitividade não aumenta e se verifica uma transferência de rendimentos dos que mais precisam para os que mais têm.

Vejamos porquê. A TSU é a contribuição da “entidade patronal” para a Segurança Social (subsídios, pensões, prestações, etc) no valor de 23,75 % da massa salarial paga. Se esta contribuição diminui, diminuem os custos da empresa numa percentagem que é igual ao quociente entre a poupança de imposto e o “valor bruto de produção” (digamos valor da produção no mercado). Diminuem, também, as receitas da Segurança Social e, por essa via, os benefícios dos que, em termos relativos, mais dela beneficiam, isto é, as pessoas de mais baixos rendimentos.

Poderá dizer-se que se podem ir buscar compensações a outro lado. Vejamos se vale a pena e o que, com isso, ganham as empresas.

Quanto ao vale a pena devo começar por denunciar um erro frequente que é o de confundir condições necessárias com condições suficientes. A redução da TSU talvez possa ser considerada uma condição necessária do aumento da competitividade mas não é, certamente, uma condição suficiente. Talvez pudesse ser considerada uma condição necessária, mas nem isso o é, por razões que tem a valer com a importância das verbas envolvidas e por razões que decorrem da composição estrutural do tecido empresarial português. [ver continuação aqui]

A TSU encolhe, a competitividade não mexe e aumenta o desequilíbrio na distribuição dos rendimentos ( I I )

Quanto ao valor das verbas envolvidas uns cálculos simples mostram que o abaixamento de 4 % da TSU teria como consequência uma diminuição do total do valor do bem em 0,86 %; se a redução for de 8 %, então a redução seria de 1,71%. A eliminação da TSU teria efeitos mais significativos mas, mesmo assim, não iria além dos 4,93 %.

Claro que se o peso da massa salarial no valor da produção não fosse de 21% (no valor acrescentado seria de aproximadamente 59%), mas superior (não se aborda aqui o que teria de ser feito para que este peso aumentasse), então os efeitos poderiam ser mais significativos. É importante sublinhar que o peso da massa salarial no valor de produção tem vindo a diminuir não podendo, por isso, os empresários pretender ter, simultaneamente, sol na eira e chuva no nabal.

Perante o valor dos efeitos acima referidos, alguém vai acreditar que a redução da TSU vai modificar a posição de competitividade das empresas, no mercado? Os fundos que porventura as empresas viessem a obter teriam como destino mais provável o reforço da tesouraria e não o da competitividade.

Além da razão apontada há uma outra, decorrente da estrutura produtiva da economia portuguesa. Todos sabem mas, por vezes, parecem esquecer, que mais de 95 % das empresas portuguesas são pequenas e médias (menos de 10 trabalhadores), com níveis de competitividade e de produtividade extremamente reduzidos decorrentes, em primeiro lugar, da incapacidade de organização da entidade patronal e da reduzida qualificação dos trabalhadores. Este argumento mostra bem que, não é por os trabalhadores produzirem mais que vai aumentar a competitividade da empresa.

Outros indicadores apontam no mesmo sentido: recentemente vieram a público os resultados de um estudo segundo o qual, apenas, 38 % destas empresas possuem ligação à Internet e 27 % detêm uma página Web (site).

Por aqui se deduz que o aumento da competitividade das empresas decorre de muitos outros factores, para além da TSU, cuja identificação não pode agora ser realizada. Mais uma vez, temos um alerta para os perigos de confundir condições necessárias, com condições suficientes.

Se a TSU pudesse, porventura, ser considerada como uma condição necessária importante, e já que vimos que não é, não menos importante deveria ser considerada a redução da contribuição dos trabalhadores para a Segurança Social (11 %). Por um lado, esta diminuição também reduz os custos da empresa, por outro, não deverá deixar de poder ser considerada como um contributo para que o trabalhador fosse incentivado a realizar, por iniciativa própria, progressos na sua qualificação. A competitividade da empresa beneficiaria, assim, no caso da redução da contribuição dos trabalhadores, por duas vias.

Resta abordar a questão das compensações para a Segurança Social, se vier a ser reduzida a TSU e respectivos efeitos. Muito se tem falado da possibilidade, para efectuar essa compensação, de aumentar as taxas do IVA ou, inclusivamente, de aumentar as taxas e modificar a composição interna dos bens e serviços que lhes estão sujeitos.

As receitas obtidas pela aplicação da taxa mais baixa rondarão os 25% do total das receitas do IVA; as da taxa mais elevada, cerca de 60% e as da taxa intermédia, em torno dos 15%. Isto mostra que à maioria dos bens transaccionados se aplica a taxa máxima (independentemente de se não compreender porque é que alguns bens e serviços a que se aplica a taxa mínima, o não são com a taxa máxima, refrigerantes, por ex.).

Se à maioria dos bens se aplica a taxa máxima, isso significa que aí está incluída uma grande gama de bens, desde bens de primeira necessidade a bens luxo e ostentação. O que seria razoável é que se procedesse a um aumento substancial da taxa aplicada aos bens mais dispensáveis e se deixasse inalterada a taxa aplicada aos bens de primeira necessidade. Se assim fosse, o agravamento da taxa, não impediria os que a pagariam de continuar a jogar golfe e a passar férias em ilhas longínquas. Se esta discriminação positiva não se viesse a realizar, certamente que muitos, titulares de menores rendimentos, se veriam obrigados a modificar o seu padrão de consumo e a caminhar para mais elevadas linhas de potenciais de pobreza.

Infelizmente, não é de discriminação positiva que se tem vindo a falar, o que terá como consequência que se vai buscar aos bolsos dos que possuem menores rendimentos o que vai parar aos cofres das empresas e que, só em condições excepcionais, poderá vir a traduzir-se por aumentos de competitividade das empresas.

E se assim é, então, o que se verificou foi uma transferência de rendimentos dos que possuem menores rendimentos para os que os têm mais elevados, com o consequente aumento do desequilíbrio no esquema de repartição dos rendimentos.

Mostra-se, assim, quem é que, através dos mais inesperados mecanismos vai, efectivamente, pagar a crise.