O primeiro texto é o
artigo de Filipe Duarte Santos – As cinco
crises e as soluções – que foi publicado, no passado dia 26 de Maio, no
jornal Público.
O segundo texto é de
Manuela Silva e foi publicado há quase 20 anos. Intitula-se: Três Esses
(Simplicidade, Sobriedade, Solidariedade) No Caminho Das Boas Práticas
(cap.5 de Utopia Cristã e Aventura Humana
– Riscos, Desafios, Propostas, ed. Multinova, Lisboa, 2002).
Cada texto tem uma
perspectiva ou nível de reflexão diferente. Mais “institucional”, diria, o de
Filipe Duarte Santos; mais “comportamental” o de Manuela Silva. Nenhum exclui
e, muito menos, rejeita uma ou outra perspectiva.
As cinco crises são a
crise da pandemia da COVID - 19, a crise ambiental, a crise climática, a crise
das desigualdades socioeconómicas, a crise global da dívida pública e privada.
Todas são globais, mas a da pandemia da COVID
– 19, sendo conjuntural (embora ainda de prazo desconhecido), tem relação com a
crise ambiental por via da utilização de animais selvagens inapropriada e
agressora da biodiversidade, para além de sanitariamente perigosa. A destruição
da biodiversidade é uma das componentes da crise ambiental, para além da
poluição da atmosfera, mares, recursos hídricos e solos, e da exploração de
recursos naturais.
Depois de caracterizar
sinteticamente a segunda crise global, “a crise climática que se traduz pelo
aumento progressivo da temperatura média global da atmosfera…, pelo aumento da
frequência e intensidade de alguns eventos meteorológicos extremos…”, Filipe
Duarte Santos chama a atenção para mais duas crises de natureza socioeconómica,
cuja grandeza, persistência e extensão faz delas crises globais.
“A primeira é a crise
das desigualdades socioeconómicas associada à emergência da classe do 1% da
população mundial que controla grande parte do poder económico e financeiro…”. A
segunda é a crise global da dívida pública e privada, e que, segundo o FMI,
“atingiu 184 milhões de milhões de dólares, equivalente a 86000 dólares per capita, um valor mais alto que antes
da crise de 2008-2009”.
Depois de mostrar como
as cinco crises “estão fortemente relacionadas e algumas são interdependentes”
e como, dos efeitos da pandemia, até o aparentemente não negativo – a baixa nas
emissões de CO2 – é improvável que se mantenha, Filipe Duarte Santos fala de
que isso se baseia no pressupor-se “que continuamos no mesmo sistema económico
e financeiro das últimas décadas e no business
as usual”. E continua: “A crise da pandemia constitui uma oportunidade para
mudar de rumo e há muitas pessoas no mundo que estão empenhadas em construir a
partir daqui um mundo mais sustentável. Será possível? Como fazer? Quais as
soluções?”.
Não se podendo contar com Trump, com
Bolsonaro, com movimentos e líderes populistas de extrema-direita também na
Europa, “…torna-se mais difícil fazer as reformas transformacionais que a
solução das quatro crises de longo prazo requerem”, dada a dependência de um
sistema económico e financeiro que teria que ser reorientado para a
sustentabilidade. Para o autor uma grande esperança seria o Pacto Verde
Europeu.
À questão “Como fazer? Quais
as soluções?” para, a partir desta multicrise, “construir…um mundo mais
sustentável” a resposta deste texto é, sobretudo, institucional. Mas quando, no
final, Filipe Duarte Santos diz que “o mais importante é persistir em defender os
valores essenciais do Ocidente…” e neles inclui “a prevalência da ética acima
dos interesses pessoais”, abre-nos a porta, por assim dizer, à perspectiva que
eu designo de “comportamental”, na qual se inserem os “Três Esses –
Simplicidade, Sobriedade, Solidariedade” – do texto de Manuela Silva. Segundo
ela, são “três pistas de boas práticas para um novo modo de estar e viver”. A
introdução desses 3 S é uma crítica bem concreta ao “frenesim do consumismo”
que “está na origem de três fenómenos muito negativos”, nomeadamente “um jugo
severo sobre o trabalho humano, obrigando a ritmos cada vez mais exigentes para
alcançar níveis de rendimento disponível à altura do desejado consumo”; o
aumento exponencial do lixo e desperdício; “…desigualdades acrescidas e de
exclusão social, devido às comparações e mimetismos que induz”.
A Simplicidade que, no
fundo, é a simplificação do estilo de vida, que, por sua vez, é “…um corolário
da percepção lúcida daquilo que é essencial na vida”. No contexto actual da
pandemia, o confinamento ajudou muitos a viverem ou reviverem esta percepção.
A Sobriedade: “ Viver
com sobriedade é a arte de usar o mínimo de recursos para alcançar um dado
objectivo. Esta é a virtude da sobriedade ou da temperança, a qual tem as suas
raízes numa relação afectiva consigo mesmo…, com os outros…, com o Planeta…,
com as novas gerações… Significa e implica:
– estar consciente das
necessidades dos outros seres humanos e demais criaturas;
– estar atento/a aos
equilíbrios precários;
– assumir que sou parte
de um todo e o que ao todo diz respeito a mim se reporta;
– que estou
indefectivelmente ligado/a à cadeia das gerações, as que me precederam e as que
me seguirão.
A sobriedade ou
temperança é, seguramente, uma virtude fora de moda na mundividência
contemporânea”.
Manuela Silva insere a Solidariedade na
perspectiva da “ética do cuidado”, referindo-se ao então ainda recente
Relatório da Comissão Independente População e Qualidade de Vida (1996), o qual
se intitulou Cuidar o Futuro – Um programa
radical para viver melhor, A Comissão foi presidida por Maria de Lourdes
Pintasilgo.
Diz Manuela Silva: “À
escala mundial existe relativo consenso de que as novas desigualdades (e, no
limite, as exclusões sociais), por um lado e os riscos crescentes dos
desequilíbrios ecológicos que ameaçam a sobrevivência do Planeta, por outro,
tornam imperativas e urgentes medidas estruturais de reforma dos estados e das
instituições públicas no plano nacional e supranacional…”. Este sublinhar da
importância da visão e acção institucional é logo seguido da afirmação que as
soluções originadas a esse nível não são viáveis nem sustentáveis se não
ocorrer “…por parte apreciável da população, uma nova cultura que privilegie o
valor do ser sobre o ter, que substitua a visão míope do egoísmo individualista
pelo reconhecimento de que cada um é parte de um todo (os outros, o ambiente, o
património colectivo, as gerações futuras)…Daqui decorre que uma dimensão-chave da nova cultura é…a
solidariedade, fundamento de uma postura de solicitude ou de cuidado pela “casa
comum”.
Uma síntese entre as
duas perspectivas que designei de “institucional” e “comportamental” parece-me
estar bem presente no conceito de Ecologia Integral que é central na Encíclica Laudato sì Sobre o Cuidado da Casa Comum. Atente-se, no que se diz no número
141: “Hoje a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos
contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa
consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com
o meio ambiente.” Estão aqui os 3 S “comportamentais” (por exemplo, a
simplicidade, a qual decorre “da relação
de cada pessoa consigo mesma”), mas também a visão ampla e complexa própria de
uma perspectiva institucional.
Não quero deixar de
referir outros 3 S. São os que Agostinho
da Silva assim designou:
Sustento, Saber, Saúde.
A COVID 19 tem sido um
enorme desafio para o saber/ciência e para a saúde. Mas a necessidade do
sustento (que não aparece tanto na comunicação social) é, ainda mais do que já
era, para grande parte da população mundial, especialmente dos países em
desenvolvimento, um drama que já devia ter sido erradicado. Manuela Silva foi
uma militante da erradicação da pobreza. A COVID 19 fez com que, em países como
o nosso, a necessidade do sustento seja um drama angustiante. A quem o está
sofrendo, falar agora em sobriedade poderá até ser ofensivo. Aí é a
solidariedade cívica, além da institucional de protecção social, guiada por
políticas públicas, que se deve impor.
Excelente texto e reflexão. Para mastigar de vagar e repetir se necessário.
ResponderEliminarUm texto muito importante e, de certo modo, fundador de uma nova orientação, de linhas de pesquisa que se queiram socialmente comprometidas no actual estado de coisas. A condição da nova cultura, baseada na solidariedade, simplicidade e sobriedade, que Cláudio Teixeira recupera de Manuela Silva, constituirá, parece-me, o busílis da questão. Resta saber como estamos quanto ao caminho para esta nova cultura: o que fazem e se preparam para fazer as escolas, os media, os decisores de onde deveria vir o exemplo, e todos nós. Teremos aprendido o suficiente com esta crise?
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