O conhecimento ao serviço do desenvolvimento económico e social


 .
Economia e Sociedade – Pensar o futuro

O conhecimento ao serviço do desenvolvimento económico e social

 

1. A crise do velho paradigma

É já um lugar-comum dizer-se que o conhecimento constitui o principal factor de produção nos dias de hoje. Facilmente transferível, cada vez mais transacionável através dos bens e serviços em que se incorpora e extremamente apetecido pelo grande negócio internacional como principal instrumento da competitividade, o conhecimento determina as condições de produção, transferência e apreensão do valor e riqueza nesta época em que vivemos.
Evoluiu-se, assim, bastante, face à representação clássica da função de produção cujo argumento considerava como factores apenas o capital e o trabalho. Quando, posteriormente, se passa a explicitar o “factor invisível”[1], para explicar a parte do crescimento da produção que não se esgota no contributo do capital e do trabalho , foi-se abrindo caminho para que se passassem a considerar, progressivamente, os efeitos da incorporação do conhecimento naqueles dois factores iniciais, constituindo o seu peso relativo - bem como a sua correspondente remuneração e valorização -domínios fundamentais para o exercício do controlo social. 
O conhecimento é, portanto, um instrumento de poder.
Mas de que conhecimento é que estamos a falar, já que são diversas as acepções sob as quais ele se manifesta? Conhecimento para quem e para quê?
Poder-se-iam ainda colocar outras questões, como, por exemplo, a relativa à relevância do conhecimento produzido em Portugal e à sua consonância, ou não, com as necessidades económicas e sociais. Alguns autores são mesmo de opinião de que se terá caído num excesso de voluntarismo na oferta de cursos superiores que nos veio a conduzir ao desemprego dos mais qualificados, também porque a sua formação não contemplou a perspectiva prática de arranjar emprego.
Avançamos desde já que, nesta reflexão, iremos considerar sobretudo o conhecimento resultante dos chamados estudos avançados e, mais especificamente, o conhecimento científico. Fazemo-lo com o objectivo de mostrar como o mesmo pode, e deve, democratizar-se: isto é, tornar-se acessível e apreensível pela sociedade em geral, incluindo o tecido económico, constituindo um motor de cidadania e só assim podendo tornar-se um factor de desenvolvimento económico e social. Sem deixarmos de aflorar a preocupação que deve haver com a apreensão do conhecimento (e subsequente qualificação) a níveis inferiores, dada a clivagem existente entre estes e aquele nível, com importantes consequências negativas sobre a reprodução social do conhecimento.
Enquanto instrumento de poder, o conhecimento afasta-se crescentemente dos princípios que dele deveriam fazer um bem social: a intervenção sucessiva de mecanismos de restrição do acesso ao conhecimento foi fazendo com que perdesse os requisitos que a Economia Pública exige àquele tipo de bens[2] (Foldvary 1994) e, por maioria de razão, aos bens públicos. Por um lado, têm-se vindo a restringir as condições de pleno acesso ao conhecimento, (não obstante a crescente disponibilização de informação através da Net), para o que muito contribuíram as opções austeritárias em período de crise: cortes nos orçamentos da educação e da investigação e desenvolvimento, traduzindo-se na diminuição dos apoios sociais aos estudantes e famílias e na escassez de meios para combater o insucesso, reforço da precarização das condições de trabalho de bolseiros e investigadores, incapacidade crescente de absorção dos resultados do conhecimento por parte do tecido económico, bloqueado por políticas de apoio à inovação incipientes ou em stand by.
Por outro lado, o reforço do pensamento dominante[3] (Apple 2000), instrumento que o ideário neo-liberal coloca ao serviço da globalização e da concorrência internacional, tem vindo a fazer-se sentir a pretexto de que um conhecimento homogéneo é mais facilmente codificável e, acrescente-se, hierarquizável. As avaliações e acreditações internacionais de universidades e centros de investigação fazem-se cada vez mais obedecendo a critérios uniformes, totalmente desinseridos do contexto geográfico, cultural, de valores, de aquisições prévias. E assim se constituem rankings e se faz também o marketing internacional das instituições que passam naquele crivo. Ao mesmo tempo que nos concursos públicos se secundarizam, objectivamente, domínios científicos como os das ciências sociais e humanas, face a outros ramos – ciências da vida, das engenharias e outros – cuja associação ao grande comércio internacional é mais fácil, rentável e economizadora do apoio público. 
No entanto, este paradigma do conhecimento está a entrar em crise à medida que novos desafios se vão colocando. Por um lado, constata-se existir um enorme desequilíbrio estrutural entre o conhecimento científico, objecto de um crescimento aberto e sustentado do número de publicações reconhecidas internacionalmente e o conhecimento de base tecnológica em que o número de pedidos de patentes é ainda insignificante. Por outro, assistimos ao enorme desperdício social, humano e até económico que o actual paradigma tem vindo a gerar: o imparável desemprego, que cada vez menos dá lugar ao subsídio de desemprego e outras prestações sociais, bem como o desemprego e a emigração dos mais qualificados, reforçando a geografia do conhecimento a favor das economias e sociedades mais desenvolvidas, são disso exemplo. Com efeito, são estas sociedades que recuperam os resultados do “investimento” em estudos avançados e formação de altas competências, ao mesmo tempo que se esboroam os potenciais efeitos positivos internos e há lugar ao desgaste social, a perdas familiares, à erosão das expectativas e da confiança nos poderes públicos, entre outros custos sociais frequentemente negligenciados.
O novo conhecimento não pode, pois, continuar a desperdiçar os mais qualificados, nem os saberes e valores locais constituídos por sucessivas gerações ou o conhecimento adquirido pelas vias não formal e informal de quem só estudou em idade jovem. Nem manter-se cúmplice da tentativa de homogeneização internacional dos saberes ao serviço desta globalização. Neste sentido, o papel das instituições e das políticas públicas é fundamental.

2. Instituições, regulação e estratégia do conhecimento

A apropriação privada dos resultados do conhecimento, enquanto valor económico, foi sempre especialmente apetecida. Para além dos mecanismos de proteção da propriedade intelectual, como as patentes e licenças, as organizações económicas detentoras do conhecimento sempre procuraram encontrar meios de bloqueio ao acesso, como as práticas de patentes em carteira ou em reserva, por exemplo. As patentes caracterizam-se, aliás, por duas facetas: se, por um lado, restringem o acesso, especialmente enquanto são mantidas em reserva, por outro contribuem para uma maior divulgação do conhecimento, ou resultado, patenteado.
Também se verifica, em geral, o desinteresse da iniciativa privada na constituição das chamadas infraestruturas base do conhecimento, como as incubadoras de projecto, os ninhos e os “anjos” de empresas e, sobretudo, no capital semente, já que os resultados antecipáveis de tais investimentos se encontram especialmente sujeitos ao risco. Aquele desinteresse reforça-se ainda mais se não estiver coberto por alguma forma de ”seguro de risco” suportado pelos poderes públicos, em maior ou menor grau. Por outro lado, relembra-se que o tecido económico português é em mais de 90% constituído por empresas de pequena e média dimensão, muitas ainda geridas por empresários detentores de baixas qualificações, dado estrutural que vem sendo repetidamente apontado como um importante obstáculo à inovação.
Destes mesmos poderes emanam, por sua vez, os veículos e instrumentos que podem preparar um clima económico favorável aos negócios e, desde logo, ao investimento em inovação, à facilitação do capital de risco, à criação de equipamentos públicos – escolas, centros de formação, entre outros. De onde a importância do papel do Estado enquanto regulador e das políticas públicas, especialmente nos domínios da educação, I&D e inovação.
O papel das instituições no processo de conhecimento prende-se directamente com outro aspecto fundamental: o das agências públicas para o desenvolvimento do conhecimento. Estas desempenham um papel determinante na dinâmica dos processos de conhecimento: avaliam as unidades de investigação e os projectos que estas submetem; afectam aos mesmos as verbas do orçamento público e/ou de fundos internacionais (como os comunitários), determinando a actividade dos centros e laboratórios e as condições de emprego e de vida de investigadores e bolseiros; marcam, na prática, o mapa nacional das prioridades de investigação por domínios científicos, as condições da sua internacionalização e as possibilidades de divulgação e de apreensão nacional do novo conhecimento. Com a estagnação da contratação pública, não seria, por outro lado, de esperar que estas agências trabalhassem em parceria directa com as agências de inovação e de propriedade industrial, entre outras instituições públicas de regulação, com vista a uma maior e melhor absorção dos quadros altamente qualificados e dos seus projectos por parte da economia e da sociedade?
Das universidades se espera, por sua vez, um contributo significativo. Detendo um papel fundamental na produção e reprodução do conhecimento científico, desenvolvem-no cada vez mais em parceria, frequentemente bem-sucedida, com o tecido económico e, menos, com a chamada sociedade civil; entretanto, desenvolvem-se frequentemente nas empresas, sobretudo nas de grande dimensão e multinacionais, projectos inovadores de grande exigência em investigação e desenvolvimento a que seria importante que as instituições de ensino superior se associassem, o que muitas vezes ainda não acontece.
Por outro lado, há que atender à forma como estas instituições constituem e reforçam o conhecimento ao nível dos primeiros ciclos. A grande questão da realização de estágios em empresas e outras organizações, metodologia indispensável para uma boa fertilização entre o conhecimento teórico dos licenciados e a sua aplicação em situações reais, permanece ainda mal resolvida. Também constitui, em grande parte, responsabilidade das universidades e outras instituições de ensino superior a vigilância no sentido da adequação entre a oferta de cursos que fazem e as efectivas necessidades do tecido económico e social. Face às pressões da globalização e do conhecimento dominante, é dever das universidades reforçarem o espírito crítico e a autonomia científica, o que nem sempre sucede e que, em certos casos, se está a fazer à custa do esforço e direitos profissionais e pessoais dos professores, alunos e dirigentes, como na Universidade da Europa Central, em Budapeste, por exemplo. Neste domínio a internacionalização e mobilidade internacional de competências e de projectos de investigação tornam-se decisivas, não só pelo que proporcionam quanto a fertilização e densificação do conhecimento como, essencialmente, por darem lugar à construção de redes democráticas resilientes face aos ataques autoritários que as universidades conhecem actualmente.
A questão da estratégia de conhecimento constitui, por sua vez, um aspecto crítico e especialmente vulnerável do processo de conhecimento. Para que este possa estar de facto ao serviço do desenvolvimento económico e social, é necessário que tenham sido socialmente consensualizados e institucionalmente apreendidos os grandes objectivos do desenvolvimento, feito o diagnóstico dos recursos e das potencialidades, bem como das restrições e problemas antecipáveis. Este processo deverá beneficiar, tanto quanto possível, da “voz” de espaços de cidadania participativa, os quais são frequentemente escassos. Para que, seguidamente, se possam estabelecer as incumbências que recaem sobre o processo de conhecimento, tão diversificadas como a necessidade em diplomados em determinada área, num dado horizonte temporal, ou o contributo a prestar a nível local por escolas e centros de formação.
Dispondo dos grandes objectivos do desenvolvimento, o regulador deverá igualmente deter uma visão global do processo de conhecimento, seus pontos-chave e articulações entre os mesmos. O que pressupõe ter por referência uma visão integrada dos domínios da educação, políticas de inovação, ciência, tecnologia e investigação, bem como das articulações e recomposições que entre os mesmos se estabelecem de forma dinâmica. Uma visão integrada que abranja não só o processo de produção e circulação do conhecimento mas também da sua endogeneização pelo tecido económico e apreensão pela estrutura social e que domine o conhecimento dos recursos e disponha da necessária capacidade política para a sua mobilização oportuna e atempada. E, sobretudo, que intervenha ao abrigo de um plano de desenvolvimento do conhecimento sustentável na sua evolução dinâmica. Condições que, na realidade, se afiguram frequentemente muito difíceis de reunir.

3. O caso português

3.1. Tendências evolutivas

A evolução da dotação orçamental para actividades de I&D, entre 2000 e 2010, aumentou em Portugal cerca de 2,5 vezes (1,7 vezes em percentagem do PIB), o que compara com um crescimento igual a 1,4, em paridade de poderes de compra, para a média da União Europeia (EU), segundo a base de dados PORDATA (www.pordata.pt). Quando analisamos por sector institucional, constatamos que foram as empresas quem mais aumentou as despesas em I&D, seguidas pelo ensino superior e as instituições privadas sem fins lucrativos (IPSFL): 3,8, 2,7 e 2,5 vezes; ainda entre 2000 e 2010, a evolução do Estado foi, entretanto, negativa, recuando em índice cerca de 9 p.p. Também o número de investigadores em equivalente a tempo integral (ETI) por mil activos mais do que duplicou, entre 2005 e 2011, tendo aumentado 2,3 vezes nas Ciências Sociais e Humanidades, 2 vezes nas Ciências Exactas e Naturais e 2,9 vezes nas Ciências Médicas e da Saúde.
O ano de 2010 constituiu, de facto, um momento de viragem, desde logo no que respeita à educação: as despesas do Estado (execução orçamental) em educação que tinham aumentado 38% (34% per capita) entre 2000 e 2010, caíram cerca de 21 p.p. (19 p.p. per capita) entre este último ano e 2015. Só nos anos de 2011 e 2012, a variação registada na execução per capita traduziu-se em quedas de cerca de 8%. e 16%, respectivamente, de tal modo que apenas em 2015, último ano disponível, o valor do indicador em análise se situava ligeiramente acima do correspondente valor para 2001.
Também nos outros domínios da constituição do conhecimento a grande viragem nas políticas públicas ocorreu em 2010/2011. Certo é que os efeitos da crise económica e social se vinham já a fazer sentir desde 2007/2008, mas a verdade é que a dotação orçamental para I&D se manteve em crescimento até 2010, assim como as despesas totais em I&D executadas pelas Universidades e pelas Instituições sem fins lucrativos, tendo o correspondente recuo destas despesas começado já em 2009 para as empresas e para o Estado.
A partir de 2011, inclusive, praticamente todos os indicadores de I&D se deterioraram: a dotação orçamental total caiu cerca de 11% entre 2011 e 2012, só recuperando em 2015 para valores idênticos a 2011. Entretanto, entre 2015 e 2016 (dados provisórios), o valor da dotação orçamental para I&D voltou a cair cerca de 4,3%.
As despesas totais com actividades de I&D nas empresas caíram em média 4,6 % ao ano entre 2010 e 2014, voltando a aumentar (4,1%) entre 2014 e 2015; diminuíram cerca de 34%, cumulativamente, no Estado entre 2011 e 2012, próximo de 9,4% nas Universidades no mesmo período e, também cumulativamente, nas IPSFL, entre 2010 e 2012 (cerca de 29%). Apesar de se verificarem quebras de série em 2013 na desagregação por sectores de execução, podemos afirmar com suficiente segurança que os valores relativos ao Estado continuaram a decrescer significativamente até 2015 – último ano disponível – o mesmo sucedendo com as IPSFL, pese embora neste caso uma ligeira recuperação em 2014. Entre 2014 e 2015 (valores provisórios para este último ano) registou-se, entretanto, um ligeiro aumento nas despesas globais, de cerca de 2,5%, aumento esse para o qual contribuíram essencialmente as empresas, como vimos acima, e o ensino superior (2,3%). (www.pordata.pt).
Entre 2011 e 2013, o número total de investigadores (ETI) no conjunto das áreas científicas diminuiu cerca de 14%; como em 2013 se verifica uma quebra de série nesta variável, não podemos realizar a análise da evolução posterior. Também as bolsas individuais para doutoramento concedidas pela FCT caíram drasticamente: em 2011 e 2012, último ano agora disponível, essa queda foi de 23%, segundo dados em revisão pela FCT e cuja última actualização data de Março de 2016[4].
Uma nota positiva, a atestar o potencial da população portuguesa quanto ao desenvolvimento de I&D e do conhecimento: apesar de todas as vicissitudes decorrentes da inversão de prioridades das políticas públicas, os números de doutoramentos e de publicações científicas em revistas internacionais por 100.000 habitantes aumentaram sempre desde 2010, factos que também reflectem a utilização de recursos que já tinham sido afectados anteriormente. Esses aumentos foram equivalentes, no primeiro caso, a um valor acumulado de 60% entre 2010 e 2013[5], e, no segundo, a um crescimento total de 38% entre 2010 e 2014, últimos anos disponíveis para cada uma das variáveis; e demonstram a capacidade de resiliência de doutorandos e investigadores, obrigados a exercer a sua actividade num contexto de extrema precariedade de emprego.

3.2. Questões estruturais 

O desenvolvimento científico verificado em Portugal na primeira década do séc.XXI é publicamente reconhecido, como o prova o relatório publicado pela FCT, em 2013, sobre o “Diagnóstico do Sistema de Investigação e Inovação. Desafios, forças e fraquezas rumo a 2020”[6]. Nele se constata que “o sistema português de Investigação e Inovação beneficiou na última década de transformações relevantes na estrutura de mobilização de recursos o que permitiu alargar de forma significativa a sua base científica e tecnológica”. Mas o mesmo relatório avisa também para os riscos de descontinuidade de algumas políticas públicas, prenunciando o volte-face que já descrevemos. Escreve-se a dada altura:
A redução da execução de I&D nos laboratórios do Estado (…) pode pôr em risco o cumprimento das missões do Estado nos bens colectivos, na produção de evidência para o apoio à formulação das políticas públicas e desafios societais.
Com base numa análise SWOT bastante completa desenvolvida naquele mesmo relatório, podemos identificar alguns dos aspectos estruturantes do processo de produção de conhecimento em Portugal. Relativamente às principais fragilidades, destaca-se o baixo nível educacional da população activa, principalmente nas faixas etárias menos jovens e numa percentagem significativa do tecido empresarial, bem como o facto de a economia portuguesa apresentar um claro perfil de especialização em atividades económicas de baixa ou média baixa intensidade tecnológica, sendo ainda bastante limitado o processo de solicitação e emissão de patentes no âmbito da U.E.
Em vez da retracção da intervenção do Estado, do falhanço das políticas industriais e da ausência de uma estratégia de coordenação entre as políticas públicas e o sector produtivo, as insuficiências reveladas pela análise SWOT exigiriam a intensificação da acção pública sustentada nos domínios da educação e das qualificações de base, das políticas económicas sectoriais e das políticas de inovação, a par do exercício regular da avaliação sistemática das políticas e dos programas, aspecto que também enferma de grandes dificuldades. Acresce ainda que a insuficiência das políticas de inovação muito tem contribuído para a não absorção pelo tecido económico das altas qualificações de que tanto necessita para enfrentar a estagnação da produtividade e a inércia dos modelos organizacionais, contrariando ainda a tendência de “especialização” pelos baixos salários. E assim se reforça o ciclo vicioso da desqualificação e da exclusão pelo mercado de trabalho, com excepções sectoriais significativas nos sectores do calçado, dos transportes e dos equipamentos eléctricos e electrónicos.
Apesar do reforço da rede de interacções entre os diversos parceiros do processo de produção e utilização do conhecimento, de que são exemplo algumas bem-sucedidas parcerias entre universidades, centros de formação, empresas, associações empresariais e profissionais, o relatório que estamos a seguir salienta que tal esforço é ainda insuficiente, vindo ao encontro do que anteriormente se referiu relativamente ao papel das instituições. A escassez de fontes de financiamento, públicas e privadas, do processo de conhecimento é igualmente apontada como um dos mais importantes pontos fracos, a ilustrar, no que ao Estado respeita, uma falha grave de regulação.
A concluir este ponto e, como nota positiva, não podem deixar de se referir, se bem que resumidamente, alguns importantes pontos fortes destacados no relatório:
- a qualidade científica e académica das universidades portuguesas, com um número significativo de unidades de investigação avaliadas com “Excelente” por painéis internacionais;
- a intensificação dos fluxos de conhecimento despoletada pela mobilidade nacional e internacional de doutorados e investigadores;
- o crescimento exponencial – embora ainda modesto no âmbito da U.E. – do número de publicações científicas em co-autoria internacional, especialmente das que são objecto de referenciação e indexação nos repositórios mais conceituados.

4. Questões de actualidade e desafios próximos

O novo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) marcou a sua entrada, em 2015, com a preocupação expressa de promover um amplo acesso ao conhecimento, melhorar as condições da sua regulação por parte das instituições públicas e garantir, ao longo da legislatura, condições de previsibilidade e de sustentabilidade do funcionamento do sistema de ciência, tecnologia e ensino superior. No portal do Ministério pode ler-se:
A criação de condições e mecanismos efetivos de acesso e de partilha do conhecimento democratiza-o e contribui para a igualdade na formação e a capacitação científica, possibilitando a transferência de conhecimento e estimulando a apropriação social da ciência.
De entre as primeiras iniciativas do MCTES destacou-se o lançamento do Programa Ciência Aberta – Conhecimento para Todos, com o objectivo básico de fortalecer a posição da ciência na sociedade (…) tornando o conhecimento científico acessível à sociedade, às empresas e à população e reforçando o impacto social da investigação. Assim se visa contribuir para o reforço da qualificação da sociedade portuguesa, tornando-a mais apta a fazer face aos desafios que se esperam, ou seja mais informada e mais consciente do Mundo que habita, (…) mais humana, mais justa e mais democrática e onde o bem-estar seja partilhado por todos.
Por sua vez, em resultado da actividade de um grupo de trabalho especialmente criado para o efeito, a Fundação para a Ciência e Tecnologia foi objecto de profunda restruturação: convidaram-se os investigadores para uma reflexão conjunta sobre os principais problemas, designadamente em matéria de avaliação e prepara-se neste momento a avaliação global de todas as unidades científicas.
No entanto, apesar das intenções anunciadas, continua a verificar-se uma importante carga burocrática nos processos de candidatura de projectos de I&D: seja porque se fazem ainda sentir as restrições resultantes de contratos celebrados pelo anterior governo no âmbito dos financiamentos europeus, seja devido às sucessivas etapas que as candidaturas a fundos estruturais têm de percorrer, no quadro de tutela múltipla da gestão daqueles fundos que actualmente prevalece. Por outro lado, a FCT continuará a debater-se com a habitual insuficiência de recursos técnicos e operacionais[7].
Também a precariedade do emprego científico foi alvo de atenção, tendo saído nova legislação a esse respeito (Decreto Lei 57/2016) e sido considerada a necessidade de inversão da tendência de diminuição do investimento público em ciência, tecnologia e ensino superior. No entanto, o PCP e o Bloco de Esquerda, bem como os investigadores, insurgiram-se quanto ao facto de naquele diploma legal não estar prevista, entre outros aspectos, a garantia de ingresso na carreira após os seis primeiros anos de contratos temporários[8]; o Ministro veio entretanto a aceitar a revisão daquele diploma de molde a ficar consagrado o acesso à carreira, mediante abertura de concurso, após aquele extenso período probatório.
Relativamente à intenção de inverter a tendência de decréscimo do investimento público em ciência e tecnologia, os resultados provisórios não se afiguram muito animadores: o montante da dotação orçamental para I&D caiu, de novo, cerca de 4%, entre 2015 e 2016, como tínhamos referido (DGEEC/MEd – MCTES, PORDATA)[9]. No entanto, o orçamento total do ensino superior aumentou, segundo as palavras do Ministro[10], cerca de 10,5% em 2017, a par de um aumento percentual de 5 pp. nas bolsas para aquele grau de ensino.
Ainda mais recentemente, o MCTES tem vindo a apoiar a criação dos Laboratórios Colaborativos, previamente anunciados, com o objectivo de fomentar sinergias entre instituições académicas, empresariais, científicas, sociais e culturais, tendo em vista o incremento da inovação e do emprego científico. O actual MCTES tem vindo ainda a proceder à assinatura de contratos de legislatura com as universidades e politécnicos visando aperfeiçoamentos ao nível da gestão e da relação interinstitucional e o lançamento de um programa de valorização e modernização do ensino politécnico, no qual se inclui a aprovação de um regime transitório para a qualificação dos docentes dos politécnicos
Para além dos Laboratórios de Participação Pública, já parcialmente implementados, e de outras iniciativas diversas abertas à intervenção pública, o MCTES propõe-se ainda lançar, em 2017 e entre outras medidas, um orçamento participativo de C&T, “de modo a estimular a proximidade entre as comunidades científicas e os cidadãos”[11]
Por fim, o MCTES anuncia o objectivo de elaborar um plano nacional de ciência e tecnologia, articulando (entre outras instituições) a FCT, a ANI e a Ciência Viva, que conjugue a capacidade e o interesse da comunidade científica com as necessidades dos cidadãos, de empresas e de organizações civis (…).[12]
Poderá este plano vir a constituir o embrião de uma verdadeira estratégia de conhecimento? Estarão a ser efectivamente implementadas as medidas indispensáveis para uma visão e gestão conjunta e interinstitucional do processo de conhecimento?
Os obstáculos a enfrentar são grandes e desafiam a capacidade de decisão do MCTES enquanto responsável e regulador do processo de conhecimento:
- A nível interno, por exemplo, a transferência do conhecimento e a apropriação social da ciência dependem muito de decisões a tomar por outros centros de decisão, como o Ministério da Educação (desenvolvimento e qualidade das aprendizagens) e Ministério do Planeamento e Infraestrururas (financiamento das políticas de inovação). Conseguirá a habitual actuação compartimentada das diferentes tutelas vir a dar lugar à indispensável intervenção articulada e consistente?
- A nível externo, os desafios não são menores nem mais fáceis: aprofundar as interacções atlânticas com vista à “integração das alterações climáticas, ambientais, dos oceanos…” no sentido do cumprimento dos objectivos das Nações Unidas e do Acordo de Paris para 2030; intensificar a “colaboração científica com os países Mediterrânicos, do Norte de África e do Médio Oriente”; promover, entre outras, a “Initiative Knowledge for Development”, envolvendo especialmente os países de língua portuguesa.[13]
Na opinião de alguns peritos, longe ainda do encetar de uma estratégia sustentada de conhecimento, o MCTES terá vindo essencialmente a assegurar, nesta primeira parte do mandato, a resolução de problemas avulsos herdados do governo anterior. Por outro lado, consideram ainda que não deverá ser este Ministério a assegurar a coordenação do sistema de produção, desenvolvimento e reprodução social do conhecimento: seguindo experiências já encetadas noutros países, como a Suécia, deverá ser o próprio Primeiro Ministro a assegurar a função de coordenação de um Conselho de Inovação, de modo a melhor contribuir para a articulação das diversas tutelas que o sistema convoca.
Em suma, fica a questão de síntese: em que medida se estarão a garantir as condições de efectivação e sustentabilidade das medidas anunciadas? Serão as mesmas eficazes para promover a desejada apreensão social do processo de conhecimento?
Se as condições políticas e interinstitucionais para garantir uma real implementação destes novos contratos, programas e medidas anunciados se concretizarem, poderemos, então, estar no limiar de um novo paradigma em que o conhecimento esteja, de facto, ao serviço do desenvolvimento económico e social.

Flamínia Ramos e Margarida Chagas Lopes
Junho 2017

----------
[1] Também chamado “a medida da nossa ignorância” já que representava a parte de crescimento do produto que os factores clássicos, capital e trabalho, não conseguiam explicar. Ver, por exemplo, Helpman, Elhanan (2009). The Mystery of Economic Growth. Londres e Nova Iorque: Harvard University Press, para uma releitura das aproximações sucessivas ao conceito de produtividade. 
[2] No limite, trata-se das condições de não rivalidade e de não exclusão; ou seja, e respectivamente, o facto de alguém beneficiar do acesso ao conhecimento não pode impedir que outros acedam igualmente e a condição de que ninguém pode ser excluído de tal acesso. Ver, por exemplo, Foldvary, F. E. (1994). Public Goods and Private Communities. Edward Elgar Publish. nº 167. https://ideas.repec.org/b/elg/eebook/167.html#author  
[3] Official Knowledge na literatura crítica inglesa. Ver, por exemplo, Michael Apple (2000). Official Knowledge. Democratic Education in a Conservative Age. Nova Iorque: Routledge. 
[4] FCT/MCTES in PORDATA (www.pordata.pt).
[5] Total de doutoramentos realizados em Portugal ou no estrangeiro com reconhecimento por universidades portuguesas.
[6] Ler na íntegra em http://www.slideshare.net/latas10577/swot-fct-2013. Este relatório insere-se nos trabalhos preparatórios da parceria comunitária para a Estratégia 2020, no âmbito da Política de Investigação e Inovação 2014-2020.
[7] Informações obtidas junto do gestor de candidaturas de projectos científicos do SOCIUS e CSG/ISEG, Dr. Bruno Gonçalves, a quem agradecemos.
[8] Ver, a este respeito, o Manifesto para uma ciência com futuro e direitos para todos, Rede investigadores contra a precariedade científica, 18 de Janeiro de 2017 (https://redeinvestigadores.wordpress.com/2017/01/18/309/).
[9] Consultável em http://www.pordata.pt/Portugal/Dota%C3%A7%C3%B5es+or%C3%A7amentais+p%C3%BAblicas+para+investiga%C3%A7%C3%A3o+e+desenvolvimento+(I+D)-1098 .
[10] MCTES, Principais orientações para 2017 no quadro do balanço do primeiro ano de Governo, documento de base à Audição Parlamentar nº 48 – CEC-XIII, de 3 de Janeiro de 2017, acessível em:
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=103625
[11] Cf. nota 6.
[12] Cf. nota 6.
[13] Cf. nota 6.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Os comentários estão sujeitos a moderação.