Desenvolver é tudo quanto baste?

Ainda não há muitos anos o “desenvolvimento “era entendido como uma grande aspiração de todos os povos, quer olhássemos para os países desenvolvidos, para os países de desenvolvimento intermédio, ou para os países do designado “terceiro mundo”.

1. Os últimos 50 anos de desenvolvimento

Ia-se formando, pouco a pouco, a consciência de que o desenvolvimento não era uma questão que dizia respeito, apenas, aos povos de cada um dos países, mas que deveria envolver todos os povos, em conjunto. Recordemo-nos, por ex., dos debates que tiveram lugar na década de 60 do século passado em torno dos temas da troca desigual, do desenvolvimento dependente, da noção de terceiro mundo, do conceito de sistema mundo, da dinâmica capitalismo-imperialismo, etc. Os próprios países desenvolvidos, agrupados na OCDE, criaram um programa de ajuda ao desenvolvimento dos países do terceiro mundo, designado por “década do desenvolvimento” que, apesar de todas as suas debilidades, mostrava que pouco a pouco se ia difundindo a compreensão de que o desenvolvimento era questão que dizia respeito a todos e a cada um, dos povos, dos países e das nações.
O que ficou de todos esses acesos debates e iniciativas? Pouca coisa, parece que tudo se esfumou; quando muito restará uma espécie de pano de fundo que veremos em que medida será capaz de influenciar o debate sobre o desenvolvimento que de novo começa a despontar.
O rápido crescimento verificado num número significativo de economias, ofuscou a ideia e os princípios do desenvolvimento, criando condições para que as doutrinas do liberalismo económico se difundissem rapidamente, prometendo futuros de maior progresso e bem-estar para todos. O seu instrumento privilegiado foi e é o chamado “funcionamento livre dos mercados”. Para debaixo do tapete passaram a ser empurradas as desigualdades crescentes, a nível pessoal, entre países e espaços económicos, a concentração de riqueza que não pode ser justificada por qualquer argumento de incentivo à iniciativa, as manchas crescentes de pobreza, a eliminação do Estado enquanto promotor do desenvolvimento sustentável.

2. Onde estamos?

Encontramo-nos numa fase e num processo de desenvolvimento das sociedades em que não é ainda claro, para todas as mentes, que o triunfo do liberalismo conduzirá, inevitavelmente, à destruição dos valores que constituem os alicerces da nossa sociedade e que mais contribuem para a sua sustentabilidade: a solidariedade, a justiça, a liberdade, a igualdade de oportunidades, a inclusão, a coesão, etc.
A razão principal dessa incompreensão não se encontra tanto nos benefícios que o liberalismo tem ou não tem vindo a proporcionar mas, antes, na roupagem com que vem enfeitado, i.e., a liberdade individual e a eficiência na afetação de recursos, como se uma e outra não pudessem existir fora desse espartilho.

3. Perspectivas de futuro

Felizmente que as coisas começam a mudar. A consciência de que se avista a hora de começar a olhar para outros horizontes é cada vez mais abrangente. De novo, a ideia de desenvolvimento começa a ser central nas preocupações e na ação de todos os que ambicionam o progresso dos povos. Do mesmo modo que para Lincoln a democracia era entendida como o governo do povo, pelo povo e para o povo, também hoje poderemos dizer que não há verdadeiro desenvolvimento que não tenha como sujeito o povo, que não seja promovido pelo povo e que não tenha como destinatário esse mesmo povo. Importa precisar que o “povo”, aqui, não pode deixar de ser considerado como sendo constituído por qualquer cidadão do sistema-mundo, onde quer que se encontre.
Foi acima referido que o desenvolvimento promove o progresso. O progresso pode, assim, ser considerado como a medida do desenvolvimento. Teremos tanto maior desenvolvimento quanto maior for o nível de progresso alcançado. Ficará, ainda, a pergunta: mas o que é o progresso?
Não saberemos defini-lo com precisão e uma das razões é a de que tem diferentes configurações, no tempo e no espaço. Não hesitaremos, no entanto, em afirmar que não haverá verdadeiro progresso à custa dos valores da vida, da dignidade da pessoa humana, da equidade temporal (geracional) e espacial e da sustentabilidade dos recursos e dos resultados alcançados.

4. Desenvolvimento ou crescimento?

Estes critérios conduzem-nos sem dificuldade à necessidade de repor o debate sobre o binómio crescimento-desenvolvimento que, de novo, adquire atualidade. A crise austeritária com que temos estado envolvidos, desde há cerca de sete anos, expropriou-nos, sem cerimónia, do desenvolvimento e do crescimento. Quase que silenciosamente, começa a levantar-se o véu com que foram cobertas as preocupações com o crescimento. Parece começar a ser incontornável a ideia de que não haverá superação dos enormes níveis de desemprego que assolam as nossas sociedades sem que, simultaneamente, exista crescimento. Raramente, no entanto, se tem ouvido clamar pela necessidade do desenvolvimento.
Não é questionável a ideia de que não há desenvolvimento sem crescimento, bem como a de que nem todo o crescimento significa mais desenvolvimento. Mais difícil tem sido obter consenso sobre qual é o crescimento que destrói o desenvolvimento e qual é o crescimento que é virtuoso em relação ao desenvolvimento.
Uma primeira aproximação é a de reconhecer que o crescimento não produz desenvolvimento se não for crescimento sustentável, isto é, crescimento durável, no tempo e no espaço.
Esta característica da sustentabilidade permite-nos dizer que, se não há desenvolvimento sem crescimento, num horizonte longo também não há crescimento sem desenvolvimento. Aqui chegados, compreende-se com muita facilidade que o desenvolvimento não é apenas uma questão de economia, ou, pelo menos, não o é em relação aos atributos que a aceção comum associa ao funcionamento da economia. O desenvolvimento envolve a humanidade em todas as suas dimensões, uma delas é a económica, mas ele terá que ser inclusivo em relação a uma multiplicidade de outros aspetos da vida: o social, o sentido de relação, o cultural, as tradições, a natureza e a paisagem, os recursos, a ecologia, etc.
Tendo-se começado a dar-se relevância à necessidade de crescimento, importa que, simultaneamente, se traga para a frente do debate a discussão do desenvolvimento. Para isso teremos que fixar balizas que nos permitam refletir e tomar decisões, porque o desenvolvimento é um estádio alcançado mas é, também, o processo seguido para se lá chegar, o que nos conduz à necessidade de colocar o desenvolvimento no âmbito de um paradigma diverso do que é mais corrente: um desenvolvimento ao serviço da dignidade da pessoa humana e da vida, que promova a solidariedade e o sentido da relação, que seja compatível com os valores da equidade, da coesão e da inclusão, que saiba ser amigo da natureza, do ambiente e dos outros seres vivos. Um desenvolvimento que possa e saiba ser compatível com estes valores é um desenvolvimento que saberá gerar bem-estar para e entre todos os humanos.

5. O desenvolvimento e o bem-estar

O bem-estar tem natureza objetiva para todos os seres humanos, cidadãos de uma certa comunidade mas tem, também, natureza subjetiva, uma vez que o sentimento de bem-estar é, para cada pessoa, constituído por ingredientes que podem ser diferentes. Cada um prosseguirá o seu objetivo de bem-estar de acordo com as suas preferências pessoais mas, inevitavelmente, esse seu caminho poderá ter que se cruzar ou confrontar com o de outros seus semelhantes. Algumas das incompatibilidades poderão equacionar-se no âmbito das relações pessoais, mas um número significativo terá que ser objeto de arbitragem por parte de uma entidade que tenha a representatividade de todos. O bem-estar é multidimensional, possuindo componentes de natureza individual e componentes de natureza societal. Assim se justificam as decisões ditas coletivas e as decisões públicas.
Umas e outras têm como objeto configurar e promover uma função de bem-estar que a todos, e não a apenas alguns, possa satisfazer. A iniciativa individual é uma componente indispensável na realização desse bem-estar mas, só por si, não pode reivindicar a capacidade de preencher todas as dimensões do bem-estar. O Estado de Bem-Estar, ou como também tem vindo a ser designado, o Estado Social, é uma das vias adotadas pelos governos com vista a criar condições para que o bem-estar possa estar acessível a todos. Quem promove o bem-estar torna-se agente de progresso e do desenvolvimento.

6. A procura e a oferta de bem-estar

O bem-estar das pessoas e das sociedades não pode, como frequentemente acontece, ser olhado, apenas, na perspetiva da procura. No respeito dos valores da sustentabilidade, da equidade, da inclusão e da solidariedade, há que saber equacionar como se realizam e se produzem os elementos definidores do bem-estar. Não podemos assumir-nos como meros consumidores admitindo que da produção alguém se há-de ocupar, ainda que em último lugar seja o Estado. Todos teremos de ser, simultaneamente, consumidores e produtores.
Para que o estado de bem-estar seja possível torna-se necessário preencher condições de natureza material e condições imateriais, estas últimas também designadas de “qualidade de vida”. As componentes materiais encontram-se polarizadas em torno do que poderemos designar por dimensão económica do bem-estar: satisfação das necessidades básicas; acesso aos bens públicos e privados indispensáveis a que se possa garantir uma vida digna e saudável (saúde, educação, justiça, segurança, habitação, etc.); solidariedade interterritorial; sustentabilidade do ambiente e do desenvolvimento, etc.
As condições de qualidade de vida podem ser agrupadas em duas subcategorias: as de natureza social e as de natureza político-institucional. Pertencem à primeira subcategoria os objetivos de equidade e de equilíbrio na distribuição dos recursos e dos rendimentos; a prossecução de elevados níveis de coesão e de justiça social, a garantia da existência de igualdade de oportunidades para acesso às condições de bem-estar (mobilidade social); a consideração do objetivo de emprego como objetivo focal e não como variável de ajustamento; a adoção, sempre, de comportamentos eticamente irrepreensíveis (antídoto indispensável ao combate contra a corrupção), etc.
As condições de natureza institucional são as que dão robustez ao funcionamento da sociedade organizada, garantindo, por essa via, o enquadramento indispensável a que as condições materiais e sociais possam ser eficientes na prossecução dos objetivos de bem-estar.
Podemos, assim, concluir que o desenvolvimento e o bem-estar são duas faces de uma mesma moeda ou, ainda, que o nível de bem-estar avaliado em termos inter-temporais e inter-espaciais pode ser considerado como uma medida adequada do nível de desenvolvimento.
Manuel Brandão Alves
(Economia e Sociedade)

2 comentários:

  1. Os capítulos 5 e 6, "Desenvolvimento e bem-estar" e "Procura e oferta de bem-estar", terminam concluindo que "desenvolvimento e bem-estar são duas faces da mesma moeda". O meu comentário é uma questão: Como caminhar num país e na Europa (com relações com o mundo global) em que coexistem culturas diferentes, mesmo na própria Europa, vivendo e desejando viver em democracia, desejando também liberdade, claro, quando essa liberdade nem sempre quer dizer bem-estar.

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  2. O desenvolvimento e o estado de bem estar não são pontos de chegada mas, antes, processos em construção permanente, que têm que ter em conta, em cada momento, a diversidade de valores presentes, os valores comuns e as alterações a que uns e outros vão estando sujeitos durante a evolução do processo. A garantia de liberdade e de democracia, que podem ter conteúdos evolutivos ao longo do tempo, são restrições que, de início e em todos os inícios, devem estar sempre presentes.

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