Desigualdade, pobreza e desenvolvimento


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Economia e Sociedade – Pensar o futuro
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Desigualdade, pobreza e desenvolvimento

1.    Introdução.

Em 1996, na comunicação presidencial que dirigiu à Royal Economic Society, Tony Atkinson escolheu como título “Bringing income distribution in from the cold”. Como o próprio autor referia então, a escolha deste título traduzia a sua visão de como a análise da distribuição do rendimento tinha sido marginalizada do debate público e académico ao longo de grande parte do século XX. A comunicação visava explicitamente recolocar as questões da distribuição do rendimento, da desigualdade e da pobreza no quadro da teoria económica e “dar um novo impulso à sua reincorporação no centro da análise económica”.
Vinte anos volvidos, podemos afirmar que, pelo menos parcialmente, esse objectivo foi alcançado. A questão das desigualdades está hoje no centro do debate público, presente nos textos académicos, nas análises publicadas das organizações internacionais como a OCDE e o FMI, no discurso dos políticos de vários quadrantes ideológicos e nos principais órgãos de comunicação social. Infelizmente, nem sempre essa presença traduz o rigor académico, as preocupações sociais e a capacidade de propor soluções transformadoras que Tony Atkinson sempre suscitou.
O objectivo deste texto é o de sistematizar a discussão que ao longo dos anos mais recentes tem ocorrido no seio do Grupo Economia e Desigualdade sobre a distribuição do rendimento, as desigualdades e a pobreza e da sua relação com as questões do desenvolvimento. Esse debate é claramente determinado pela avaliação que os seus membros fazem da realidade portuguesa, onde as questões da desigualdade são omnipresentes, mas não descura o contexto internacional e os diferentes espaços onde estas questões são hoje analisadas. Mais do que uma discussão exaustiva das consequências e dos principais determinantes das desigualdades, neste texto pretende-se ilustrar algumas das questões sobre os quais permanecem dúvidas, esperando que a discussão agora iniciada contribua para os retirar da penumbra e melhor compreender os seus mecanismos de geração e de reprodução.
O ponto de partida desta digressão acerca da relação entre desigualdade e desenvolvimento pode ser sistematizada em cinco vectores considerados fundamentais para a análise da importância crescente das desigualdades na nossa forma de viver e nas condições de vida auferidas pelas populações.
O primeiro é o de que assistimos hoje a um forte crescimento da desigualdade a nível global que se iniciou na década de 80 e que assume hoje proporções não vivenciadas na generalidade dos países pelo menos desde 1945. Os relatórios da OCDE (2011, 2015) e os trabalhos recentes de Atkinson (2015), Pikety (2014) e Stiglitz (2013) demonstram claramente esta tendência para o agravamento das desigualdades.
O segundo prende-se com a identificação do principal factor explicativo do agravamento das desigualdades: a crescente concentração da riqueza e do rendimento detidos por um número cada vez mais reduzido de pessoas na parte superior da escala de rendimento. Este fenómeno implica necessariamente olhar para as desigualdades de uma forma diferente. Assistimos hoje a uma deslocação da tradicional análise de “ricos versus pobres” para uma outra que, para além daquela, opõe igualmente os “super-ricos” ao conjunto da sociedade.
O terceiro aspecto tem a ver com as diferenças entre a desigualdade dos rendimentos e a desigualdade da riqueza. A generalidade dos estudos efectuados nos últimos anos centra-se na análise da formação e distribuição dos rendimentos. Devido à sua maior complexidade e dificuldade de estimação, a distribuição da riqueza tem permanecido um pouco na penumbra, sendo relativamente poucos os estudos publicados nesta área. No entanto, os que existem são inequívocos na demonstração que a desigualdade na distribuição da riqueza é muito superior à da distribuição dos rendimentos. Se quisermos conhecer, de facto, a verdadeira natureza das desigualdades, e as suas consequências, é necessário ter em conta não somente a relação entre a riqueza e o rendimento, mas igualmente aspectos específicos da formação e consolidação da desigualdade da riqueza como, por exemplo, o papel da sua transmissão intergeracional.
O quarto elemento estruturante da nossa forma de olhar para as desigualdades prende-se com a sua relação com a pobreza. Apesar da natureza multidimensional do fenómeno da pobreza a fazer extravasar em muito o âmbito da desigualdade do rendimento, os dois fenómenos estão profundamente interligados. A associação entre pobreza monetária e desigualdade económica surge ainda mais vincada no contexto europeu onde o indicador-base da pobreza seleccionado – a taxa de pobreza do rendimento monetário – está fortemente associado às assimetrias que se verificam na parte inferior da distribuição do rendimento. É hoje indiscutível a existência de uma forte associação entre os níveis de desigualdade e os indicadores de pobreza. Por exemplo, no conjunto da União Europeia é fácil verificar que os países mais desiguais são também aqueles que apresentam uma maior incidência de pobreza. Ainda que uma relação de causalidade entre os dois fenómenos não possa ser universalmente estabelecida em países como Portugal essa relação parece evidenciar o papel da desigualdade na geração e no acentuar das situações de pobreza. Como Alfredo Bruto da Costa muitas vezes referiu, “Portugal tem os elevados níveis de pobreza que tem porque dispõe de elevados níveis de desigualdade”.
Uma outra forma de questionar esta relação entre desigualdade e pobreza prende-se com a crescente importância que actualmente se confere à parte superior da distribuição do rendimento nos estudos sobre desigualdade. Particularmente após a publicação do livro de Piketty em 2013, as atenções têm-se centrado, e bem, no fenómeno crescente da concentração do rendimento num número cada vez menor de indivíduos super-ricos. No entanto, é necessário não esquecer que o que acontece na parte superior da distribuição não é independente do que se passa entre os rendimentos mais baixos. As questões da pobreza e da precariedade social deverão continuar a constituir a primeira prioridade. Mas a resolução dos problemas da pobreza passa necessariamente por processos redistributivos que implicam a transferência de recursos entre pessoas e famílias pelo que não podemos olhar para a base ou para o topo da distribuição como realidades disjuntas.
O último aspecto que gostaria de salientar, porventura o mais importante, é o de que esta concentração excessiva da riqueza e dos rendimentos constitui não só um factor de injustiça social e um elemento potenciador da pobreza e da exclusão social de milhões de homens e mulheres das nossas sociedades, mas constitui igualmente, e de forma cada vez mais vincada, um travão ao crescimento económico e ao desenvolvimento social. A concentração crescente dos principais recursos do planeta num conjunto reduzido de indivíduos e famílias é necessariamente incompatível com a noção de desenvolvimento sustentado que respeite o ambiente, promova a criação de riqueza e a sua distribuição mais equitativa e que seja inclusivo para o conjunto da sociedade.

2.    A necessidade de se considerarem as tendências de longo prazo na evolução da desigualdade.
É hoje consensual que existem ciclos longos de evolução da desigualdade que é necessário ter em conta, em particular os ocorridos nos países mais desenvolvidos. Após um ciclo de diminuição da desigualdade iniciado após a 2ª Guerra Mundial, assiste-se desde os anos 80 do século passado a uma tendência para o crescimento da desigualdade que abrange quer os países tradicionalmente mais desiguais quer aqueles onde os níveis de desigualdade são usualmente mais baixos. Embora esta tendência seja necessariamente heterogénea entre os vários países, parece sugerir uma convergência para um patamar de desigualdade mais elevado do que aquele a que durante décadas nos fomos habituando a associar aos países mais desenvolvidos.
Nos últimos 30 anos, a distância que separa os rendimentos dos 10% mais ricos dos rendimentos dos 10% mais pobres subiu significativamente no conjunto dos países da OCDE. Os 10% mais ricos auferem presentemente cerca de 9,5 vezes mais rendimento que os 10% mais pobres, um valor claramente superior ao de 7,1 observado na década de 80 do século passado. No mesmo período, o índice de Gini subiu 3 pontos percentuais, passando de 0,29 para 0,32 [1].

A ligação entre a evolução dos sistemas económicos e a própria evolução da desigualdade é, nesse contexto, fundamental. Sem perceber a forma como o modo de produção da riqueza condiciona a sua distribuição não é possível entender o cerne das desigualdades.

3.    A necessidade de se olhar para as desigualdades de uma forma plural.
A vertente económica da desigualdade tem estado no centro da análise das desigualdades, particularmente entre os economistas. No entanto, as assimetrias na distribuição do rendimento, dos salários, da riqueza ou do património surgem hoje cada vez mais associadas às desigualdades no acesso ao ensino ou à saúde, às diferenças no usufruto dos bens e serviços públicos e mesmo às formas assimétricas de exercer e de beneficiar dos direitos de cidadania. Aspectos até ao presente afastadas da análise das desigualdades assumem hoje uma importância critica na sua explicação como, por exemplo, as questões do endividamento e do sobreendividamento.
O estudo das desigualdades assume-se progressivamente como uma análise de largo espectro não confinável à simples representação de um índice ou de um conjunto de índices de desigualdade. A conjugação da utilização de índices de desigualdade com medidas de pobreza e com indicadores de riqueza torna-se progressivamente indispensável para conhecermos o conjunto das assimetrias na distribuição dos recursos. Ainda a dar os primeiros passos o conhecimento das situações de riqueza adquirirá rapidamente um estatuto tão importante como a necessidade de compreensão das situações de pobreza.
Também neste contexto o campo de análise e as interdependências se alargam rapidamente. A relação entre as desigualdades e as questões da habitação, a relação entre desigualdade e mobilidade social, o papel que a economia informal ou semiformal desempenha no acentuar ou no atenuar das desigualdades são questões que hoje adquirem um estatuto próprio nos estudos sobre a desigualdade.
O fenómeno das desigualdades é cada vez mais um fenómeno plural e qualquer análise que fique confinada apenas a uma das suas muitas manifestações é necessariamente redutora.

4.     A desigualdade e a globalização.
Este é um dos aspectos que será menos desenvolvido neste estudo. Não será por ser um aspecto menor no estudo das desigualdades, mas precisamente por ser uma das vertentes da desigualdade que tem suscitado mais estudos nos anos recentes. No entanto, a quantidade não é necessariamente sinónimo de qualidade. A informação existe, com grande riqueza de detalhe e de exemplos ilustrativos, mas claramente escasseia um esforço de síntese que permita ilustrar os vários mecanismos que parecem associar a crescente globalização das economias com o acentuar das desigualdades.
Uma das questões cruciais que se colocam quando se analisa a relação entre o processo de globalização e as desigualdades prende-se com os efeitos das alterações tecnológicas. Estas modificam não somente os custos associados aos serviços, mas, muitas vezes, a própria natureza desses serviços. Um exemplo recente ilustra bem o problema: a possibilidade anunciada há poucos dias de o fornecimento de refeições a idosos isolados em Portugal passar a ser feito por drones de forma mais eficiente e com evidentes reduções de custos. Este é um exemplo claro de como uma alteração tecnológica pode alterar a natureza do serviço, porque uma parte importante do serviço actualmente prestado reside no elemento humano, e simultaneamente provoca a diminuição da sua qualidade e não o seu aumento ao invés do que é sugerido. A forma como se incentiva, ou não, a introdução de determinado tipo de tecnologias não pode deixar de se repercutir na procura de trabalho e na formação dos rendimentos, com inevitáveis efeitos redistributivos.
A experiência recente dos países da OCDE parece igualmente evidenciar que as alterações tecnológicas têm simultaneamente contribuído para o acentuar das diferenças entre o trabalho qualificado e não qualificado, constituindo assim um factor adicional de agravamento das desigualdades salariais.

5.    Novas formas de interpretação dos diferentes “drivers” da desigualdade.
A questão das desigualdades surge na história do pensamento económico muito associada ao debate acerca da repartição funcional do rendimento.  Esta óptica de análise das desigualdades foi, no entanto, gradualmente substituída pela análise da repartição pessoal do rendimento predominantemente assente na realização de inquéritos directos aos rendimentos familiares. Esta mudança de perspectiva na forma de analisar as assimetrias na distribuição do rendimento possibilitou uma visão claramente mais rica sobre quem são os “ganhadores” e os “perdedores” do processo de criação e distribuição da riqueza, permitiu uma identificação mais fina dos indivíduos e das famílias em situações de maior fragilidade social e possibilitou alicerçar as relações entre as questões da desigualdade, da pobreza, das condições de vida e do bem-estar social. Contudo, também conduziu a algum ocultamento da relação entre o modo como os recursos são produzidos e distribuídos, a uma menor visibilidade das relações entre o modelo económico e as desigualdades.
É necessário hoje repensarmos as questões da distribuição funcional do rendimento no estudo das desigualdades. Não com as lentes de observação originais do seculo XIX mas tendo em conta a realidade económica do nosso século. As novas formas de distinção entre trabalho e capital, a distinção entre tipos de trabalho, entre salários e ganhos e, como salienta Stiglitz, o papel das “rendas” muitas vezes associado e indissociável de certos tipos de remuneração do trabalho.
A própria noção de capital deve hoje ser profundamente repensada. A disseminação da posse do capital de muitas das principais empresas leva a que muitas vezes não seja desejável, ou mesmo legítimo, focar a análise exclusivamente nos detentores do capital das empresas. A análise deve ser cada vez mais centrada em quem tem o poder de tomar as decisões que associamos ao funcionamento do capital como factor produtivo.
Também do lado do trabalho se assiste hoje a profundas mutações no padrão do emprego e nas condições de trabalho com reflexos profundos no agravamento das desigualdades salariais e, consequentemente, da desigualdade. O forte crescimento de formas de emprego não convencionais (emprego a tempo parcial, emprego temporário, etc.) bem como as diversas formas de desvalorização do factor trabalho (redução dos salários, generalização de estágios, diminuição da concertação colectiva, etc.) tem-se traduzido num agravamento das condições de precariedade do trabalho que não é dissociável do peso crescente dos trabalhadores em situação de pobreza [2].


6.    Repensar as formas de medir as desigualdades.
A pluralidade de formas através das quais as desigualdades sociais se propagam pelo conjunto da sociedade exige igualmente a construção de novos tipos de indicadores e de novas fontes de informação estatística. Mas esta questão não é exclusivamente, nem predominantemente, um problema técnico associado ao como medir as desigualdades. Impõe-se atribuir aos indicadores de desigualdade uma relevância e uma dignidade geralmente atribuída a outros indicadores de “primeira linha” como são, por exemplo, o nível de produção ou o nível de preços. A subvalorização dos indicadores de desigualdade (ou de pobreza) pelos decisores políticos mais não é que a tradução real da subestimação da importância das questões sociais face a outras vertentes da economia.
Os indicadores de desigualdade devem deixar de assentar exclusivamente em inquéritos directos às famílias de forma a conseguir-se uma maior abrangência das populações tidas em consideração (os sem-abrigo, os hospitalizados, as pessoas institucionalizadas, etc.), mas também são necessárias estatísticas mais fiáveis e mais actualizadas. A conjugação de informação assente em inquéritos com dados administrativos, a criação de indicadores de alerta são alguns dos caminhos possíveis para o aperfeiçoamento dos indicadores de desigualdade. A reconciliação entre os indicadores micro e macro da desigualdade é outra vertente importante para atenuar o “gap” entre os indicadores macroeconómicos provenientes das contas nacionais e os diferentes indicadores de desigualdade.

7.    Portugal, um país profundamente desigual.
A permanência de elevados níveis de desigualdade económica e de pobreza monetária tem caracterizado a distribuição do rendimento em Portugal ao longo das últimas décadas. No entanto, entre meados da década de 90 e 2009 Portugal conseguiu resultados muito significativos na redução da desigualdade e das várias dimensões da pobreza monetária: o índice de Gini reduziu-se de 0,370 em 1993 para 0.337 em 2009; a taxa de pobreza diminuiu 4,7 pontos percentuais, passando de 22,5% em 1993 para 17,9% em 2009; a intensidade da pobreza, uma medida de quão pobres são os pobres, reduziu-se igualmente de forma significativa neste período.
Particularmente relevante é a diminuição para quase metade da taxa de pobreza dos idosos num período de apenas 16 anos, de cerca de 40% em 1993 para próximo de 21% em 2009. Infelizmente, redução semelhante não ocorreu com a pobreza infantil, que permaneceu bastante elevada (22,4% em 2009). Apesar da melhoria verificada nos seus principais indicadores até 2009, a pobreza em Portugal permaneceu mais elevada do que no conjunto dos países da União Europeia.
A profunda crise socioeconómica que afectou as economias desenvolvidas a partir de 2008 teve reflexos profundos em Portugal após 2010, nomeadamente numa clara inversão deste ciclo de diminuição da desigualdade e da pobreza. A conjugação dos efeitos da crise económica e das políticas de austeridade implementadas a partir desse ano, e em particular após a assinatura do acordo com a Troika em 2011, traduziram-se num inequívoco agravamento das condições de vida da população e num processo de empobrecimento que afectou largos sectores da sociedade. Entre 2009 (último ano pré-crise e pré-medidas de austeridade) e 2014 a tendência anterior de descida do índice de Gini cessou e a distância que separa os rendimentos dos indivíduos mais ricos dos mais pobres aumentou significativamente. O indicador S90/S10 registou um incremento de 9,2 para 10,6. No mesmo período a taxa de pobreza aumentou de 17,9% para 19,5%, um valor de retorno à pobreza do princípio deste século. De facto, é necessário recuar a 2003 para encontrar um nível de pobreza superior ao verificado em 2013 e 2014. Este agravamento é particularmente visível na intensidade da pobreza, a qual teve em 2013 o seu valor mais alto, 30,3%, desde o início da actual série em 2004. A evolução dos indicadores de privação material foi similar, traduzindo uma forte degradação das condições de vida das famílias.
Uma das consequências mais dramáticas da crise económica e das políticas seguidas nos anos recentes foi o aumento substancial da proporção de crianças e jovens em situação de pobreza: a taxa de pobreza deste grupo etário subiu mais de três pontos percentuais, de 22,4% para 25,6%, entre 2009 e 2013.
Um dos aspectos mais controversos dos efeitos da profunda crise económica e das políticas seguidas em Portugal entre 2010 e 2014 prende-se com a avaliação do que aconteceu à desigualdade económica no decorrer desse período.
A análise mais simples consiste em olhar para a evolução do índice de Gini e constatar que entre 2009 e 2014 o índice de Gini apresentou uma forte estabilidade passando de 0,337 em 2009 para 0,340 em 2014. A conclusão imediata é a de que o ciclo descendente deste índice tinha sido interrompido [3], mas a que a desigualdade não aumentou com a crise e as políticas de austeridade.
Em estudo recente (Rodrigues et al. (2016)) demonstramos que essa estabilidade do índice de Gini resultava de uma evolução semelhante dos rendimentos da parte central da distribuição. A descida dos rendimentos dos decis 3 a 7 foi relativamente homogénea (10-12%) e isso determinou em grande medida uma fraca alteração no valor do índice de Gini.
No entanto, se considerarmos as alterações ocorridas nos extremos da distribuição, verificamos que o argumento da estabilidade da desigualdade já não se verificou.  Entre 2009 e 2014, o rendimento médio do 1º decil sofreu uma redução de 25%, praticamente o dobro da quebra de rendimento do último decil (13%).  Os indicadores mais sensíveis às diferenças entre os indivíduos mais ricos e os mais pobres apontam inequivocamente para um agravamento da desigualdade.
O rácio que compara o rendimento dos 10% mais ricos com o rendimento dos 10% mais pobres subiu, entre 2009 e 2014, de 9,2 vezes para 10,6 vezes, tendo atingido o seu valor máximo (11,1) em 2013.
Se, em alternativa, compararmos os rendimentos dos 5% mais ricos com os 5% mais pobres vemos que em 2009 o rendimento dos primeiros era 14,7 vezes superior ao rendimento dos segundos. Em 2014, esse valor era já de 18,7 vezes.
Os indicadores atrás apresentados traduzem somente de forma incompleta o que realmente se passou na desigualdade em Portugal. De acordo com o Eurostat, entre 2009 e 2014, o índice de Gini dos rendimentos antes de quaisquer transferências sociais subiu 13,4 pontos percentuais, passando de 0,507 para 0,641. Esta subida traduz inequivocamente um forte agravamento da desigualdade associada aos rendimentos de mercado ao longo desse período. Mais, em 2014, Portugal era o país mais desigual de toda a União Europeia de acordo com este indicador. 
Uma outra forma de observar a evolução da desigualdade consiste em comparar a distribuição do rendimento bruto (antes de impostos e transferências sociais) com a distribuição do rendimento líquido. Rodrigues et al. (2016) demonstram que o nível de desigualdade do rendimento bruto aumentou de 0,376 para 0,405. A não transmissão desse agravamento à desigualdade do rendimento líquido das famílias deveu-se predominantemente a um aumento da carga fiscal e da eficácia redistributiva do sistema fiscal ocorrida no mesmo período.
Uma das vertentes menos estudadas das desigualdades em Portugal prende-se com as assimetrias regionais. A dimensão espacial, que não se pode circunscrever às desigualdades entre regiões administrativas, tem sido sistematicamente descurada principalmente devido à escassez de dados estatísticos. A recente publicação pelo INE dos resultados do Inquérito às Despesas das Famílias 2015/2016 permite, no entanto, identificar profundas diferenças quanto ao nível de desigualdade das várias regiões que constituem o território nacional. Tomando como referência a distribuição do rendimento monetário em 2014, a Área Metropolitana de Lisboa apresentava o maior nível de desigualdade com um índice de Gini de 37,8%, 2,8 pontos percentuais superior à média nacional e 6,8 pontos percentuais superior ao índice da região menos desigual, o Alentejo com um coeficiente de Gini de 31,1%. As diferenças regionais são ainda mais expressivas no que concerne aos indicadores de pobreza com a taxa de pobreza a apresentar uma variação de cerca de 13 pontos percentuais entre a região com maior incidência de pobreza (Os Açores com 28,3% de indivíduos em situação de pobreza) e menor incidência (a Área Metropolitana de Lisboa com uma taxa de 15,4%).
Um último aspecto desta breve caracterização das desigualdades em Portugal prende-se com a distribuição da riqueza. De acordo com o Inquérito à Situação Financeira das Famílias- 2013 o nível de desigualdade da riqueza líquida, medida pelo índice de Gini, era de 67,7%, cerca de 24 pontos percentuais superior ao verificado no rendimento bruto (43,5%). A proporção da riqueza líquida detida pelos 10% mais ricos é superior a metade da riqueza total (52%). Se considerarmos o 1% mais ricos estes concentram 15% da riqueza. Apesar da dimensão da desigualdade que estes números evidenciam a concentração da riqueza em Portugal é muito próxima da registada no conjunto dos países da área Euro onde este inquérito é realizado, contrariamente ao que se verifica com a desigualdade na distribuição do rendimento onde Portugal é claramente um dos dos países com maior nível de desigualdade.
A comparação entre a desigualdade associada à distribuição da riqueza e do rendimento deve ser feita com algum cuidado na medida em que a ordenação das famílias de acordo com estas duas variáveis é substancialmente diferente. Rodrigues e Andrade (2017) demonstram que quando se compara a distribuição da população por decis da riqueza e do rendimento somente 18% das famílias se situam no mesmo decil qualquer que seja a distribuição considerada, 35% mudam para os dois decis adjacentes e 12% deslocam-se mais de 5 decis ao passar da distribuição da riqueza para a do rendimento.

8.    As desigualdades e a intervenção do Estado.
O alargar do debate sobre as desigualdades a que assistimos nos últimos anos tem permitido evidenciar novos aspectos quanto à natureza das desigualdades, aos seus determinantes e às suas consequências. Para além das questões de equidade social o fenómeno das desigualdades é hoje igualmente interpretado como um travão ao crescimento económico e, em particular, ao desenvolvimento económico. 
Esta relação entre desigualdade e crescimento económico nem sempre é fácil de identificar e situar no quadro dos modelos económicos tradicionais. Em artigo recente François Bourguignon [4]  sumarizou os principais mecanismos económicos através dos quais a desigualdade se pode constituir como um obstáculo ao crescimento e à eficiência económica.
O primeiro coloca a enfase na desigualdade de oportunidades. O acesso desigual à educação, ao crédito, a empregos de qualidade, à segurança e à justiça impede os indivíduos que são excluídos de expressar os seus talentos e desenvolver projectos rentáveis do ponto de vista individual e social.
O segundo mecanismo coloca a tónica nas diferenças na propensão ao consumo que se verificam ao longo da escala de rendimentos evidenciando que na presença de elevados níveis de desigualdade a menor propensão ao consumo dos indivíduos mais ricos reduz o dinamismo da procura agregada no conjunto da economia e enfraquece os incentivos ao investimento nos mercados internos. No entanto, como o autor salienta, a quebra na procura resultante do aumento da desigualdade foi durante vários anos compensada pelo acesso fácil ao crédito. No entanto, esta facilidade de acesso ao crédito por parte de largos sectores da população de menores rendimentos e da classe média acabou por gerar problemas acrescidos no mercado imobiliário, traduziu-se num forte endividamento das famílias e esteve na origem da presente crise económica.
Um terceiro mecanismo apresentado por Bourguignon afigura-se-nos mais complexo. Parte do pressuposto de que a existência de elevados níveis de desigualdade acabará por gerar uma reacção social e política que tenderá a estimular a aprovação de políticas de redistribuição de rendimentos, predominantemente de natureza fiscal, que podem gerar ao mesmo tempo uma redução da desigualdade e uma diminuição da eficiência económica, pondo em causa o crescimento.
Se é verdade que a redução das desigualdades a montante do sistema redistributivo tradicional, garantindo um acesso mais igualitário à educação e aos recursos e serviços da sociedade, pode gerar uma redução mais estrutural das desigualdades económicas no longo prazo não se pode, porém, omitir que os elevados níveis de desigualdade presente em grande parte dos países desenvolvidos coloca a exigência de políticas redistributivas que possibilitem uma redução efectiva das desigualdades no curto prazo.
A exigência de uma política económica que promova a redução das desigualdades coloca-se, assim, não somente como uma questão de justiça social, mas igualmente enquanto elemento constituinte da reivindicação de um modelo de desenvolvimento que tenha em conta as necessidades de todos os elementos da sociedade, a valorização do trabalho e um modelo de funcionamento da economia que seja simultaneamente mais eficiente e mais justo, que assegure e promova a coesão social.
Uma política que reduza as desigualdades económicas e sociais pressupõe uma intervenção activa do Estado enquanto elemento corrector das insuficiências do mercado. Nesse contexto, é necessário melhorar a arquitectura e o funcionamento das políticas sociais e fiscais de forma a assegurar o aumento da sua capacidade redistributiva.
As políticas sociais devem privilegiar o reforço da sua eficácia e da sua eficiência no combate às desigualdades e à pobreza, devem permitir uma melhor identificação das populações alvo dessas políticas e terem a capacidade de combinar políticas universais com políticas selectivas dirigidas aos grupos sociais mais vulneráveis. É também necessária a articulação entre medidas que privilegiem o colmatar do “défice de recursos” com medidas que visem o reconhecimento e a efectivação dos direitos, sendo para isso necessário inverter o processo de redução e de enfraquecimento do Estado Social que ocorreu na generalidade dos países desenvolvidos nas últimas décadas.
Particular atenção deve ser dada a medidas cujo objectivo declarado seja a redução da proporção de crianças e jovens em situação de pobreza, assumindo claramente os custos dessas medidas como reforço do capital humano e de prevenção da reprodução intergeracional da pobreza. É igualmente necessário um reforço dos sistemas de rendimento mínimo, aumentando a sua eficácia e eficiência na eliminação de situações de pobreza extrema, reforçando a sua componente de inclusão activa na sociedade e, quando adequado, no mercado de trabalho.
As políticas fiscais devem possibilitar uma maior abrangência, condição necessária para uma menor tributação e uma maior progressividade do conjunto do sistema fiscal. O tratamento fiscal equitativo das várias fontes de rendimento é, nesse contexto, um elemento fundamental. A tributação da riqueza e a reavaliação dos benefícios e deduções fiscais mais regressivos devem ser tidos em conta de forma a assegurar uma maior progressividade do sistema fiscal no seu todo.
O papel acima atribuído à política fiscal na redução das desigualdades não pode, porém, deixar de salientar que uma parte significativa da regulação dos factores Indutores da desigualdade exige uma coordenação e uma regulação que extravasa a política nacional e que tem necessariamente de ser assumida num contexto internacional.
Uma política que reduza as desigualdades económicas e sociais pressupõe medidas que atendam também à necessária correcção da desigualdade na repartição funcional do rendimento, estabelecendo regras de repartição dos excedentes entre investidores e trabalhadores.
Para tal é necessário assumir-se claramente que o processo de criação de riqueza e da sua distribuição não são compartimentados no tempo e sequenciais, mas sim um processo simultâneo que define a natureza do próprio modelo económico.
Uma política que reduza as desigualdades económicas e sociais pressupõe igualmente a valorização do trabalho, rejeitando um modelo de desenvolvimento assente nos baixos salários e na subordinação dos direitos dos trabalhadores no quadro das relações laborais. A promoção da criação de empregos de qualidade constitui, nesse quadro, um instrumento fundamental. A redução sustentada do desemprego deve constituir um objectivo estratégico da política económica, assente em metas quantificáveis e monitorizáveis.
O reforço dos níveis de instrução e de qualificação da população permanece como um instrumento determinante para a redução sustentada das desigualdades no médio e no longo prazo. 
A diminuição das assimetrias existentes entre os vários territórios e regiões que compõem o todo nacional constitui uma condição indispensável para assegurar a coesão social e um desenvolvimento sustentado.
Por último, o combate efectivo às desigualdades sociais não pode ser efectuado no âmbito exclusivo da política económica. O combate às desigualdades deve ser entendido como um instrumento de cidadania e de reforço da coesão social. Tal implica não somente um novo reconhecimento dos efeitos nefastos da desigualdade, mas igualmente um processo de aumento da aversão à desigualdade da maioria dos cidadãos.
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[1] OECD(2014), “Focus on Inequality and Growth”. 
[2] A titulo de exemplo saliente-se que a OCDE estimou que, entre 1995  e 2013, 54% da criação de emprego nos países da OCDE revestiu a forma de empregos não convencionais.
[3] Entre 2003 e 2009 o índice de Gini sofreu uma redução superior a quatro pontos percentuais, passando de 0,378 para 0,337.
[4] François Bourguignon (2016). “World changes in inequality: an overview of facts, causes, consequences and policies”.

Algumas Referências Bibliográficas   
OECD (2011), Divided We Stand: Why Inequality Keeps Rising, OECD Publishing.
OECD (2015), In It Together: Why Less Inequality Benefits All, Paris: OECD Publishing.
Bourguignon, F. (2016), “World changes in inequality: an overview of facts, causes, consequences and policies”, Comunicação apresentada à conferência anual do Bank of International Settlements, Luzern, Junho de 2016.
Piketty, T. (2014), Capital in the twenty-first century, Grand Haven, Michigan
Rodrigues, C.F. e Andrade, I. (2017), “Portuguese Wealth Distribution
2010/2013”, Comunicação apresentada à 7ª Conferência da European Survey Research Association (ESRA), Lisboa, Julho de 2017.
Rodrigues, C.F., Figueiras, R. e Junqueira, V. (2013), Desigualdades Económicas em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Rodrigues, C.F., Figueiras, R. e Junqueira, V. (2016), Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal: As Consequências Sociais do Programa de Ajustamento. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Stiglitz, J. (2013), The Price of Inequality: How Today's Divided Society Endangers Our Future, W.W. Norton & Company, N.York.


Carlos Farinha Rodrigues

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