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Torres Novas – 8 Abril 2016
1. O que se entende por trabalho digno
No prefácio escrito para o relatório anual da OIT de 2015, Juan Somavia, Director-geral da OIT escreve: Actualmente, o principal objectivo da OIT consiste em promover oportunidades para que mulheres e homens possam ter acesso a um trabalho digno e produtivo, em condições de liberdade, equidade e dignidade.
Desta afirmação vinda de uma personalidade insuspeita, destacamos que a Organização Internacional do Trabalho e, por extensão, os seus países membros, se devem propor como objectivo principal das suas políticas públicas a criação de oportunidades de emprego para as mulheres e os homens que o procuram.
Não basta, porém, que fique garantido o direito de acesso a um posto de trabalho.
Para que se trate de trabalho digno e produtivo, têm de ser asseguradas condições de liberdade, equidade e dignidade humana.
Queria fazer um breve comentário sobre cada uma destas características que definem o conceito de trabalho digno e produtivo.
Fala-se, em primeiro lugar, em liberdade.
Apesar de há muito tempo ter sido formalmente abolido o trabalho escravo, este persiste em várias regiões do mundo e, mesmo nos países com maiores níveis de desenvolvimento, surgem, ainda que ocasionalmente e caindo sob a alçada dos poderes públicos, situações de trabalho forçado, próximas da escravatura antiga e do tráfico humano, que importa denunciar e reprimir.
Temos, porém, que ser mais exigentes quando falamos de liberdade no trabalho, pois muitas vezes existem situações de um constrangimento tal que retiram ao trabalhador/a condições efectivas para poder exercer os seus direitos mais básicos, como sejam o recebimento atempado de salários, o cumprimento de horários de trabalho estipulados na lei ou nas convenções colectivas, o direito a férias, os direitos de licença de parentalidade, etc.
Também contraria a liberdade no trabalho o assédio sexual que continua a verificar-se, a prepotência e a arbitrariedade com que em certas empresas se alteram postos ou locais de trabalho, sem concertação e anuência prévia dos trabalhadores, etc..
Estes exemplos mostram que, se é necessário lutar pelo aperfeiçoamento das leis, isso não é suficiente, se não for acompanhado por uma organização forte dos trabalhadores que promova o trabalho digno e, principalmente, se não existir uma cultura empresarial de respeito pelo trabalho humano, sem esquecer também a importância do papel inspectivo do Estado.
O segundo atributo do trabalho digno é a equidade.
A equidade pode avaliar-se pela forma como se distribuem as tarefas no seio da empresa e como se definem e impõem metas de desempenho, mas também, através dos níveis de remuneração atribuídos ao trabalho e suas distintas qualificações, grau de penosidade ou de responsabilidade.
O princípio da equidade impõe, em primeiro lugar, que o salário mínimo seja fixado em nível compatível com a possibilidade de satisfação das necessidades básicas de cada trabalhador/a e que não haja salários abaixo do mínimo estipulado.
Ao salário mínimo deve acrescer a diferenciação salarial dentro da empresa a qual deve ter presente um conjunto de atributos devidamente consensualizados.
Venho defendendo a ideia de que há que pôr termo ao escândalo das grandes desigualdades salariais que persistem sobretudo nas empresas de maior dimensão, incluindo empresas públicas e parcerias público-privadas, em que gestores e quadros técnicos de topo auferem remunerações milionárias enquanto se mantêm em níveis mínimos as remunerações da maioria dos trabalhadores e trabalhadoras dessas empresas.
Pergunto: Não deveria prevalecer uma regra de proporcionalidade pré-definida em convenções colectivas e acordos de empresa, de modo a garantir uma equidade efectiva na remuneração do trabalho?
O terceiro atributo de um trabalho digno refere-se à salvaguarda da dignidade humana.
João Paulo II, na sua encíclica Laborem Exercens, tratou muito bem esta questão quando fez a distinção entre trabalho objectivo e subjectivo, pondo em evidência que o trabalho é indissociável da pessoa do trabalhador/a que, o mesmo é dizer, da sua realização e satisfação pessoal, da sua inserção familiar e social, da sua saúde e do seu conhecimento, da sua segurança e da sua perspectiva de futuro.
Quando se invoca a necessidade de flexibilização das leis laborais, na maior parte dos casos, está a desrespeitar-se ou, pelo menos. a subestimar-se uma realidade básica, a de que o trabalhador/a é uma pessoa humana, com direito a uma vida digna.
2. Os bons princípios e as más práticas
Segundo o último relatório da OIT, o conceito de trabalho digno resume as aspirações do ser humano no domínio profissional e abrange vários elementos: oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração equitativa; segurança no local de trabalho e protecção social para as famílias; melhores perspectivas de desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afectam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento para todas as mulheres e homens.
E acrescenta-se: O trabalho digno deveria estar no centro das estratégias globais, nacionais e locais que visam o progresso económico e social.
Os princípios defendidos merecem, sem dúvida o nosso apoio, mas como se traduzem nos nossos quotidianos?
A maioria das pessoas presentes nesta conferência conhecem, melhor do que eu, casos de más práticas que ocorrem em empresas privadas ou públicas e, inclusive, na administração pública quando esta deveria ser paradigma exemplar da promoção de trabalho digno.
Assim sendo, poderia dispensar-me de, nesta conferência, referir o fosso que existe entre os bons princípios e as más práticas, apelando ao conhecimento vivencial das pessoas presentes nesta Conferência.
Ainda assim, queria ilustrá-lo com um exemplo que, sendo de grande impacto e atualidade, corre o risco de escapar à nossa consciência colectiva e de se perpetuar.
Há algumas semanas, recortei de um jornal diário uma reportagem sobre o trabalho nos chamados call centers feita a partir de depoimentos pessoais de quem aí trabalha.
O artigo intitulava-se: O ‘call center’ deu-me cabo da vida”.
Invocavam-se razões múltiplas para justificar o desabafo: O trabalho que fazem não é reconhecido como profissão; apesar de ser precário, não é trabalho ocasional, havendo quem o desempenhe há décadas, sem quaisquer direitos ou garantias, sujeição a práticas desumanas no que diz respeito a horários, stress, pressões e ameaças várias para forçar o cumprimento de metas de desempenho difíceis ou mesmo humanamente impossíveis de alcançar. Acresce que não se conhecem os verdadeiros patrões, isto é, as entidades para quem se trabalha, mas tão só os seus intermediários e as chefias intermédias que, quase sempre, detêm fraco poder de decisão e possuem qualificação insuficiente no domínio científico da organização do trabalho e das relações humanas na empresa.
Os níveis de remuneração praticados são particularmente baixos, mas, assim sendo, é muito elucidativo que, em tal contexto, na entrevista acima citada, se afirme que o maior stress não resulta dos salários baixos e dos contratos precários. Vem do trabalho em si. O atendimento das chamadas é stressante. E ainda o operador não resolveu o problema do cliente, já há um supervisor a pressioná-lo para terminar aquela chamada e atender a seguinte. Isto sem pausas para nada (...) Há colegas que nem para beber água saem do atendimento; bebem entre chamadas. E é se querem, dizem-lhes. Em alguns casos, estão previstos uns escassos três minutos de pausa por cada hora de trabalho, mas nem isso é cumprido. Na prática, as pausas só se cumprem no fim do dia de trabalho, ou seja oito horas depois da entrada ao serviço.
Não se pense que nos call centers só trabalham pessoas com baixa qualificação profissional e que é por essa razão que não encontram outras oportunidades de trabalho. Aos call centers recorrem também pessoas com qualificações universitárias que, na actual conjuntura, não conseguem outra via de acesso ao mercado de trabalho e por isso se sujeitam a este meio de obter alguma remuneração. Serve de exemplo o caso de um arquitecto que descreve a sua situação nestes termos.
Vou ser franco: a trabalhar como estou num call center, com contratos quinzenais, que chegado o dia 31 de dezembro acabam de vez, e mesmo não sendo mais um miúdo de vinte anos, não consigo criar planos. Vivo o dia-a-dia. Se quero voltar à arquitetura? Não sei. Não sei mesmo. Não sinto que esteja acomodado no call center, mas para ser explorado, ao menos que não seja na minha área. A humilhação é menor. Mas é difícil viver assim. Ganha-se muito pouco para o tanto que se faz. Chega a ser obsceno. Sobrevive-se. É isso que se faz aqui: sobrevive-se. Todos os dias.
Poderia continuar com outros testemunhos, mas o melhor é convidá-los a ler esta reportagem de Tiago Palma (6 Março 2016) na íntegra e dá-la a conhecer a mais pessoas, como nosso contributo cívico e sentido cristão para dar voz e vez a quem, hoje, se sujeita a um trabalho sem a devida dignidade humana.
3. Perspectivas para o emprego no futuro próximo: o último relatório da OIT
A dificuldade de acesso a trabalho digno está relacionada com o desemprego massivo que conhecemos há mais de uma década, o qual, por sua vez, é a resultante da destruição de postos de trabalho por efeito conjugado da inovação tecnológica e da globalização bem como consequência da crise financeira que tem atravessado algumas das economias mais desenvolvidas. Como sabem, Portugal não constitui excepção.
No seu mais recente Relatório, reportando-se a perspectivas para 2016, a OIT estima que, neste ano, existirão mais 2, 3 milhões de pessoas desempregadas (e mais 1,1 milhões para 2017) o que eleva a estimativa global de desempregados para mais de 200 milhões em todo o mundo ou seja 27 milhões acima dos níveis que existiam anteriormente à crise.
Em Portugal, a taxa de desemprego atingiu o pico no ano de 2014, tendo vindo a decrescer, sobretudo por efeito conjugado da emigração, de alguns programas de estágios e de empregos precários a tempo parcial involuntário. A taxa de desemprego continua em níveis demasiadamente elevados, acima dos 12%.
Devemos sublinhar que, na linguagem comedida, que é timbre dos documentos oficiais, a OIT adverte que, se as respostas políticas actuais se mantiverem, as perspectivas são "de contínuo enfraquecimento económico, colocando assim desafios significativos às empresas e aos trabalhadores.
São também negativas as previsões relativamente à incidência do emprego vulnerável, designadamente a parte do trabalho por conta própria e o trabalho familiar não remunerado, pelo que a OIT recomenda que os governos adoptem políticas públicas de reforço dos aspectos institucionais do mercado de trabalho e aperfeiçoem os sistemas de protecção social, sem esquecer a necessidade de introduzir as indispensáveis reformas do sistema financeiro a fim de assegurar que os bancos cumpram o seu papel de canalizar recursos para a economia real e para o investimento na expansão de empresas sustentáveis e criação de emprego.
De destacar ainda uma última afirmação do maior alcance que consta do relatório da OIT de 2016 e que bem poderia ser acolhida pelos governos, pelas instâncias comunitárias da EU e pelas agências internacionais: fazer do trabalho digno um pilar central da estratégia política aliviaria não apenas a crise do emprego, mas também contribuiria para colocar a economia mundial num caminho melhor e mais sustentável de crescimento económico.
4. Desafios do século XXI e suas implicações sobre o trabalho humano e o emprego
Chegados a este ponto da nossa reflexão, devemos interrogar-nos acerca dos factores que poderão influenciar as trajectórias possíveis para alcançar um patamar desejável de emprego com trabalho digno para todos.
A primeira constatação a fazer é a de que vivemos numa época de mudanças aceleradas, a vários níveis, entre as quais importa destacar: a crescente globalização e financeirização da economia; a célere inovação tecnológica e o seu impacto no modo de produção, de consumo, de comercialização; a informação e a comunicação; o acesso ao conhecimento e à digitalização galopante.
Estes fenómenos ocorrem em simultâneo e produzem alterações significativas nas sociedades e nos respectivos mecanismos de regulação. Lembro, por exemplo, que os governos nacionais têm, hoje, um poder regulatório muito débil sobre as suas economias nacionais, dado que estas estão fortemente condicionadas pela sua inserção em mercados mundializados e pela desregulação financeira no que se refere aos seus capitais próprios e ao acesso a fontes de financiamento. Também são conhecidos os efeitos dos investimentos estrangeiros e das lógicas de maximização lucrativa que os informam e a pressão que exercem sobre os níveis de remuneração e a precariedade que impõem aos trabalhadores.
É neste quadro que se perfilam os desafios gigantescos que decorrem da inovação tecnológica e da digitalização. Grande parte daquilo que hoje constitui trabalho do ser humano pode ser substituído por máquinas incomparavelmente mais eficientes e, inclusive, o trabalho de conduzir e controlar essas máquinas está a ser, progressivamente, transferido para outras máquinas dotadas de inteligência artificial. Entramos já, sem dar por isso, na era da robotização generalizada e não vale a pena continuar a pensar no trabalho humano como se esta não existisse.
Não menos importante é o que se passa no domínio do acesso à informação, à comunicação e ao conhecimento, realidades diferentes mas interligadas, com efeitos nos nossos quotidianos, e com as quais precisamos de nos habituar a conviver.
Neste contexto, é tarefa fundamental cuidar do desenvolvimento da educação da população adulta e, sobretudo, das novas gerações, afim-de permitir que as transições, que serão inevitáveis, ocorram do modo mais positivo possível.
Há que desenvolver a inteligência humana e favorecer o seu aproveitamento e assim promover uma vida pessoal melhor e uma ecologia integral, para usar a designação do Papa Francisco na sua encíclica Laudato ‘Si.
5. Trabalho digno e humanização para todos: a perspetiva de uma ecologia integral
A concluir, retomo o título que quiseram dar a esta conferência: Trabalho digno e humanização para todos.
O que dissemos acerca do trabalho digno prende-se com uma outra aspiração e direito: um modelo de economia e sociedade que propicie condições de humanização para todos.
O Papa Francisco fala de uma ecologia integral, entendendo por isso uma forma de produzir, consumir, repartir e de viver fundada no cuidado e na responsabilidade, por si mesmo, pelos outros seres, pelo Planeta.
Com o conhecimento de que dispomos, não podemos mais ignorar que o crescimento económico não é ilimitado e que os padrões de consumo das sociedades economicamente mais desenvolvidas e os modos de produção que os suportam não são sustentáveis. Esta economia mata, como enfatiza o Papa Francisco.
Deparamos, hoje, com indicadores preocupantes relativamente a aspectos fundamentais de equilíbrio ecológico: a poluição do ar, do solo e da água, a acumulação de lixos, as alterações climáticas, a perda da diversidade biológica, etc. que constituem uma série ameaça à vida no Planeta Terra.
Por outo lado, assistimos, com preocupação, ao agravamento das desigualdades na repartição da riqueza e do rendimento, tanto no plano mundial como dentro de um mesmo País, o que tem consequências gravíssimas para a coesão social, a própria economia e para a paz mundial.
Trata-se, certamente, de questões muito complexas e temos de exigir dos nossos governantes que lhes dêem a devida atenção e se empenhem em encontrar políticas públicas que previnam e corrijam estas múltiplas disfuncionalidades que caracterizam o nosso modo de viver neste século XXI.
A nós, individualmente e enquanto membros de diversas comunidades, cabe-nos a responsabilidade de desenvolver um maior conhecimento acerca da realidade e uma maior capacidade do discernimento. Precisamos de saber fazer boas escolhas nos nossos quotidianos.
Concluo com um sábio conselho atribuído ao Papa Francisco:
Ao envelhecer tornamo-nos mais sábios e lentamente damo-nos conta de tudo o que é supérfluo, assim como um relógio de 3 mil euros dá a mesma hora que um relógio de 30 euros; uma carteira de 300 euros carrega o mesmo dinheiro e documentos que uma de 3 euros; a solidão de uma casa de 30 metros quadrados ou de 300 é a mesma. Espero que um dia percebas que a tua felicidade interna não vem das coisas materiais no mundo. Não importa se viajas em primeira classe ou económica, morrerás na mesma se o avião cair. Espero que percebas quando se tem amigos e irmãos, com quem falar, rir e cantar, isso é a felicidade verdadeira.
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