Economia e Sociedade – Pensar o futuro
Enquadramento financeiro e perspectivas de futuro
No contexto mundial e europeu,
Portugal é uma pequena economia, aberta ao exterior, com um sistema financeiro
caracterizado por alguma instabilidade e, sobretudo, índices de endividamento
público e privado muito elevados, particularmente na divida externa. Estas
características tornam o nosso país exposto aos choques que possam ocorrer no sistema
financeiro mundial bem como às mudanças que possam existir no quadro da governance.
A
nível europeu, a política monetária e a regulação do sistema bancário são da
competência do BCE para os países da zona euro e as políticas orçamentais nacionais
estão sujeitas a regras comunitárias e a supervisão pelas instâncias
comunitárias competentes.
Para o cidadão e a cidadã
comum não é fácil dispor de um quadro sucinto que lhe permita compreender, com
rigor e atempadamente, os condicionamentos financeiros a que estamos sujeitos e
as muito limitadas possibilidades de os enfrentar.
O facto de o sistema
financeiro se estender ao mundo global torna a compreensão ainda mais difícil.
Focado no curto prazo, o
sistema financeiro é complexo e instável, com pouca transparência e é
difícil alcançar o devido entendimento acerca das interdependências que existem
entre as economias nacionais e mundiais, reconhecer os possíveis impactos da
evolução da finança mundial ou do mercado bolsista, ou, menos ainda, prever os
efeitos da acelerada inovação tecnológica sobre a economia, a finança e a
sociedade. Porém, todos convivemos
com o sistema financeiro.
Afigurou-se, assim, útil
apresentar uma breve análise do passado recente e das perspectivas de futuro no
que se refere ao sistema financeiro. É bom assinalar que, com os eventos geopolíticas dos últimos
tempos, torna-se ainda mais difícil prever a evolução do futuro mundo
financeiro. Nos Estados Unidos há o risco de que a regulação introduzida pelo Governo
de Obama seja revertida e que a cumplicidade entre Governo e Wall Street, que
foi tão criticada após a crise de 2008, seja reforçada. Também a politica
populista e certas decisões no palco mundial que, eventualmente, venham a ser assumidas
por Trump e outros governantes podem introduzir uma nova realidade perigosa.
Observações no passado
recente
A – O descontrolo do sistema financeiro
Se remontarmos aos anos 70,
poderemos dizer que a actividade financeira, sobretudo nos Estados Unidos e no
Reino Unido, adoptou uma política de resposta a uma certa estagnação industrial,
permitindo sustentar a criação de riqueza através do crédito. Foi a política
seguida por Reagan e Thatcher e crescentemente adoptada em muitas regiões do
Globo, sob a capa de uma agenda neo-liberal assente na confiança plena no
princípio da perfeição dos mercados. Com tal política, foi possível, nesse
período, ampliar os investimentos
e alimentar a inovação, tudo fomentado pelo desenvolvimento tecnológico.
A injunção de dinheiro
fácil na economia conduziu, porém, ao encorajamento da assunção de riscos,
através da criação de novos produtos bancários, os “derivados”, e a adopção de medidas
de sentido análogo, facilitadas
pelo desmantelamento da estrutura regulatória existente, incluindo em 1999 a Lei
Glass-Steagall. A eliminação da separação entre o banco
comercial e o banco de investimento permitiu aos bancos assumir investimentos
antes proibidos e financiados pelos próprios bancos, dando lugar à ampliação
dos riscos, com a especulação crescente, e aos conflitos de interesse entre os
bancos e os seus clientes.
Acresce que as agências de rating,
sendo elemento importante do sistema financeiro, dado que, em princípio, deveriam
contribuir para controlar o risco, no entanto, traíram a confiança que lhes foi acordada. As empresas de rating concederam ratings
elevados aos papéis de crédito emitidos pelos bancos, a fim de obter favor junto
a esses bancos, os seus clientes. Este abuso, que representa conflito de
interesses, contribuiu para o colapso do mercado mortgage-backed securities e para a grande crise financeira de
2007/2008. Tudo isto aconteceu
como resultado de uma fé cega nos mercados (característica do neo-liberalismo),
elevando a crença nos mercados quase ao nível de uma religião, sem cuidar dos
prejuízos que eles podem provocar. Chegámos ao capitalismo sem limites.
Há quem assuma que o papel dos bancos é o de aceitar depósitos e
facilitar empréstimos. Nesta visão, o papel do banco concentra-se na fides, na confiança. Porém, com a financiarização da economia, nos Estados Unidos, o
sector financeiro assumiu uma nova finalidade, com foco na especulação e no
investimento virtual e não no investimento de longo prazo, ignorando então a fides que lhe foi conferida. O sector financeiro
tornou-se o mais poderoso sector da economia, representando 40% dos lucros
empresariais, em 2005, contra 15% nos anos 1960. Apesar de ter descido após a
crise, o sector financeiro recuperou em parte o seu poder e está recentamente a tomar nova força,
um facto que não deixa de ser preocupante.
A financiarização da economia resultou em novas condições para a extracção
da riqueza. O foco na bolsa e na maximização do valor para os accionistas permitiu aos banqueiros e aos
executivos em geral beneficiarem de um considerável aumento da riqueza. O sector
do imobiliário também beneficiou, devido à facilidade do acesso ao crédito. Ao mesmo tempo, a globalização contribuiu para
a perda do poder negocial dos trabalhadores e para a estagnação dos salários. Tudo
isto resultou em crescente desigualdade na repartição do rendimento.
Esta situação também se verificou em Portugal, agravada com o facto do
desemprego e da precariedade decorrentes da adopção de políticas de austeridade, sobretudo a
partir do fim da primeira década do século XXI. Ninguem escapou à crise, e
a finança continua a governar-nos. (É preocupante ver que, nos últimos tempos, a
política económica do governo de promover investimento no sector imobiliário
através do visto golden e o recurso a
vantagens fiscais para pensionistas oriundos de países estrangeiros dirigiu o
investimento para a especulação no imobiliário. Esta já começou, com pessoas do
mundo inteiro sem qualquer afiliação a Portugal atraídas ao País para investir
neste sector, que promete lucros excepcionais. Adverte-se para o risco de vir a
criar nova bolha e elevar os preços para niveis não acessíveis à generalidade
dos cidadãos residentes. Deve merecer atenção o risco da fuga de capital no
futuro, quando este sector deixar de ser atractivo ao capital estrangeiro. Alimentar
o sector imobiliário tem sido a política económica para criar riqueza e o
recente crescimento económico português parece dar-lhe justificação, mas Adair
Turner alerta-nos para os riscos duma tal política que serve apenas o curto
prazo.)
O risco excessivo assumido durante a era da financiarização conduziu a
sucessivas crises financeiras, culminando na mega crise de 2007/2008,
acompanhada por maior exposição à fraude e
market fixing, porque os bancos influenciaram e distorceram os preços no mercado
(tal como a taxa de referência Libor e o preço do ouro), o que revelou a que ponto o negócio bancário se tornara não ético
e destrutivo.
Esta cultura de “excesso” levou Christine Lagarde, Directora Geral do Fundo
Monetário Internacional, na sua conferência sobre Inclusive Capitalism, realizada em Londres em 2014, a referir que o
excesso de risco, a alavancagem, a complexidade, a opacidade e a as compensações
financeiras, conduziram a uma destruição maciça de valor e contribuíram
para o desemprego elevado, as tensões sociais e a desilusão.
Em suma: todos nós estamos,
ainda hoje, a sofrer os efeitos de tudo isto, e o sistema financeiro continua a ser dominante.
B -
Depois da queda: intervenção e regulação
Receando o contágio e uma
depressão mundial, depois da queda do banco Lehman Brothers, o Governo
americano interveio no sistema bancário americano, injectando liquidez através
de vários métodos, principalmente a política designada por Quantitative Easing (QE) que durou vários anos e que foi adoptada
também no Reino Unido e na União Europeia, para responder à crise. Esta
política monetária conseguiu evitar o colapso financeiro, mas beneficiou
principalmente os mercados financeiros e os detentores da riqueza e acentuou,
ainda mais, a desigualdade. É que a financiarização beneficia os especuladores
e os investidores na bolsa e em outros activos. Os actores que provocaram a
crise viram o seu património intacto e até reforçado nos anos seguintes.
Visto que a desregulação contribuíu em parte para a crise, nos EUA, o
Congresso aprovou a Lei Dodd-Frank em 2010 para regular o sistema financeiro.
Uma componente desta Lei é a Regra Volcker (introduzida em 2014), que impõe
restrições no negócio pela banca dos seus próprios recursos (proprietary trading).
Este regulamento tem sido
muito criticado pelo sector financeiro por impor requisitos onerosos aos
bancos, deixando os bancos mais pequenos limitados e incapazes de responder às
necessidades dos clientes. Os bancos maiores também se queixam de que a
complexa Regra Volker está a prejudicar a sua capacidade para criar condições
adequadas nos mercados financeiros (market-making).
Com a eleição de Trump nos EUA, a revogação ou a revisão da Lei Dodd-Frank e da
Regra Volcker, está em curso. Está
também em discussão a possível reintrodução de uma nova Lei Glass-Steagall,
separando os bancos comerciais dos bancos de investimento.
Alguns criticam o facto de
os banqueiros não terem sido incomodados e de nenhum deles ter sido preso.
Nenhum banqueiro teve que pagar o preço do prejuízo que causou. Mas como se
pode encarcerar um sistema? Não estiveram em causa transgressões específicas
individuais mas sim uma cultura bancária que tinha evoluído para um estádio de
abandono da precaução por parte dos bancos. Se olharmos à nossa volta, percebemos como a finança está firmemente integrada
na economia e na política. Ela é vista como apoio vital, apesar de muitos
abusos. O poder da finança domina e a soberania dos mercados não dá sinais de
declínio. Por consequência,
alguns põem em causa se, com a finança tal como a conhecemos, algum dia a ordem
neo-liberal será ultrapassada.
O risco financeiro tem que
ser controlado através de legislação e supervisão.
A nível internacional, a regulamentação conhecida pela designação Basileia
III, que consiste num conjunto de regras de governo das instituições
financeiras, designadamente a determinação de rácios de solvência obrigatórios,
constitui um marco importante, ainda que de grande complexidade e difícil
implementação. A última tentativa para chegar a um acordo internacional antes
do fim do ano 2016 ficou sem efeito. O assunto contencioso consiste nos modelos
internos utilizados pelos bancos para determinar o risco dos seus empréstimos,
um assunto no qual os bancos americanos e europeus têm posições opostas.
Sem dúvida a legislação
reforçou o sistema financeiro. Melhorou a capitalização e os balanços bancários
estão mais resilientes face a choques. Contudo a legislação é sempre
imperfeita. Para que prevaleça um sistema financeiro saudável, é igualmente importante
o papel da cultura e da prática. Os valores possibilitam a aplicação da lei. A
este respeito, podemos dizer que há uma instrumentalidade dos valores,
reforçando as instituições.
Ao mesmo tempo que a
fraude e outras transgressões bancárias parecem estar controladas pela
legislação, persiste o sistema de incentivos que encoraja a assunção de riscos
excessivos. Os bónus permanecem elevados e parece longínquo fazê-los baixar para um nível razoável.
À medida que Wall Street recupera e a desregulação vai sendo aplicada volta o
apetite para o risco excessivo. O comportamento financeiro continua errático. Cerca
de dez anos após o seu ápice e subsequente colapso em 2007, o investimento
quantitativo está, de novo, em alta, ajudado pelo respaldo do avanço da
inteligência artificial e a nova confiança na tecnologia. Não é de excluir a possibilidade
de uma queda ainda maior do que a de 2007 no futuro.
Estamos, de novo, sob o
delírio de ganhar dinheiro. A cultura de casino está de volta. Enquanto a crise
levou à redescoberta de Hyman Minsky com a sua tese de “instabilidade
financeira”, está a apagar-se esta memória. Ele argumentava que a alavancagem e
a compra de capital só podem justificar-se por futuro fluxo de caixa, sob a
forma de maiores rendimentos. A não ser assim, tal conduziria a “risco moral” (moral hazard), resultando em crise
financeira no momento em que fosse necessário vender os activos para realizar
dinheiro. Segundo ele a estabilidade conduz à instabilidade. Em resposta
propunha uma simplificação do sistema financeiro. Ignoramos o seu conselho?
Será que o momento de Minsky, o dia em que o excesso de risco conduz ao colapso
do mercado voltará? Por enquanto ninguém tiver vontade de abandonar a festa e o
risco é elevado.
A ênfase que nesta secção
é posta em Wall Street é justificada pelo facto dos Estados Unidos terem, ao
longo do tempo, conduzido a política económica e financeira com os banqueiros
de Wall Street a disseminar a sua competência
específica pelo globo. Isto constitui um importante catalizador para o
desenvolvimento do sector financeiro, e não sempre no bom sentido.
C - Sugestões para o futuro
Tanto nos EUA como na UE,
designadamente na zona euro, existe, por parte de alguns autores, a convicção
de que a reforma do sistema bancário ainda não tem sido a necessária.
Martin Wolf e Adair Turner
concordam com Anat Admati e Martin Hellwig em que as exigências de capital para
o sector bancário não deveriam ser distintas das que são impostas a outros
sectores da economia e defendem que a mesma proporção entre a dívida e as garantias
consideradas “prudentes” para as empresas deveriam aplicar-se também aos bancos.
Por outro lado, como parte
integrante de uma reforma financeira, devem ser adoptadas medidas que limitem a
evasão fiscal e os paraísos fiscais. É o que defende, entre outros, Gabriel
Zucman, um discípulo de Thomas Piketty, em The
Hidden Wealth of Nations: The Scourge of Tax Havens. De notar, ainda, que a exposição à fraude fiscal se vem
acentuando nos últimos anos e ganha contornos inimagináveis, como foi denunciado
pelos Panama Papers.
Algumas medidas foram
implementadas, no âmbito da UE, mas a sua eficácia é duvidosa enquanto não
houver uma posição comum a nível mundial quanto aos chamados paraísos fiscais e
a suficiente determinação política para a implementar. Há quem defenda que o
problema da transparência dos “paraísos fiscais” está, em grande parte,
resolvido. Contudo, o problema da opacidade mantém-se na prática. Tal poderia,
facilmente, ser resolvido com a regra de que seriam nulas e sem efeito todas as
transacções envolvendo organizações cujos beneficiários fossem desconhecidos.
Mas para tal não há coragem política. Pelo contrário, a prioridade tem sido
dada à troca multilateral de informações, sem sanções para as transgressões, ao abrigo de legislação primitiva e
propositadamente complexa.
Entretanto, a desigualdade
na repartição da riqueza e dos rendimentos avoluma-se e são urgentes medidas
para assegurar a sua repartição mais equitativa. A este propósito, não é
suficiente aumentar o rendimento minímo, mas também há que encorajar a
contenção nos salários elevados. Em Davos este ano também foi tema de debate a
política salarial, e foi apresentado uma comunicação demonstrando que os
presidentes das empresas ganham em média 130 vezes o salário médio. Outros
estudos demonstram um ratio muito mais elevado.
O que mais importa é
adoptar uma nova cultura de relação com o dinheiro que privilegie a equidade,
não apenas no sector financeiro, mas na sociedade em geral, uma cultura que
oriente a finança para o bem comum e que valorize os bens que a todos
pertencem.
É necessário ver mais longe
A análise anterior é baseada
na finança e na economia que conhecemos, com bancos que servem de motores da
economia através da criação de moeda e da sua alocação, e muitos acreditam ser esta a única via e que
qualquer outra inovação é inócua e wishful
thinking, sem alterar o paradigma financeiro. Mas terá de ser assim no
futuro ou poderá a situação ser outra e radicalmente diferente? Muitos têm
vindo a apresentar sugestões a este respeito, mas geralmente vêm de fora do mainstream académico que forma os
futuros agentes económicos. Por exemplo, poderão as pessoas vir a fazer as suas
transacções directamente através de plataformas tecnológicas e reduzir,
assim, o papel dos bancos? Já se deram alguns passos neste sentido. E como será
criado o dinheiro no futuro?
Não é possível antever o
futuro da finança sem ter em conta a revolução tecnológica (fintech) que já
começou, bem como uma mudança cultural no sentido de uma crescente colaboração
entre os mais jovens. É que, como alguns comentadores prevêem, os tempos de
desespero requerem medidas inusitadas e perfilam-se no horizonte soluções inovadoras.
De seguida, referem-se
alguns exemplos.
Fintech
A origem da fintech já existe através do empréstimo
de pessoa a pessoa, do crowdfunding e
outras transacções financeiras permitidas através de plataformas tecnológicas,
tal como as vendas de moeda estrangeira ou as transferências de dinheiro directamente entre os interessados (principals) através da net.
Assistimos também à
introdução de moeda alternativa - Bitcoin, Ethereum (também baseada em blockchain, mas com uma componente de
contrato amigável, permitindo, por exemplo, ao vendedor transaccionar,
directamente, com os seus clientes) – bem como o uso de moedas locais. Alguns sustentam que as moedas
locais servem para cimentar a coesão nas comunidades, mas não veem nelas
qualquer capacidade transformadora. Porém, a transformação necessita sementes.
O conceito de blockchain confunde muita gente. Não
sendo fácil de descrever, podemos dizer que o blockchain consiste na criação de uma unidade cuja informação é
partilhada com todos. Cada entidade possui um registo pessoal. Quando houver
uma transação, esta informação é publicada, e cada registo é revisto conforme a
notificação. Quando houver desacordo, o registo com a maior aceitação é aceite
como sendo o verídico.
Será que o futuro vai
permitir o recurso à troca directa (barter), mas de natureza tecnológica, o que
implicaria uma efectiva criação de moeda pelos indivíduos?
Um estudo elaborado pelo Citi
mostra a concentração da fintech nas transacções bancárias e nos empréstimos e
estima que já tenha provocado uma perda de 100 mil postos de trabalho nos EUA e
na Europa, em 2015, prevendo futuras reduções de mais de 1.7 milhões nas
próximas décadas, o que representaria a perda de cerca de 30% do emprego
bancário actual. Será que o Citi não estará a subestimar o possível impacto
destrutivo da fintech? Não poderá ser ainda maior a destruição do emprego? Dois
professores do Departamento de “Engineering Science” na Universidade de Oxford e
da Oxford Martin School publicaram um artigo em que prevê uma queda de 47% no
emprego total nos próximos 20 anos em consequência do avanço tecnológico.
O advento da fintech poderia significar o eclipse dos
bancos que conhecemos e o aparecimento de novos bancos sombra através da participação
de hedge funds e fundos privados (private equity) que juntamente com
Silicon Valley têm sido os maiores investidores neste novo sector. Esta
realidade apresenta novos desafios de regulação.
É possível que no nosso tempo de vida não ocorra nas finanças uma
transformação importante. As actuais instituições financeiras lutarão para
manter a sua supremacia, ainda que algumas tenham começado a investir na
fintech. O crescimento do hacking
pode desencorajar as pessoas a fazerem maiores apostas na tecnologia
financeira. Como irá evoluir a história?
Criação de moeda
Actualmente a moeda é criada sobretudo pelos bancos mesmo com a garantia de
solvabilidade dada pelo Estado. Quando pedimos um empréstimo ao banco acontece
a criação de moeda. Quando o banco decide fazer alavancagem a partir da sua
própria carteira para tirar partido de possíveis alterações de mercado, também
se cria moeda. Será assim no futuro?
Reconhecendo que a
revolução tecnológica terá efeitos não só no sector bancário como também em
outros sectores, nomeadamente no que respeita a perdas de empregos, impõe-se
que se adoptem respostas de anti-austeridade como seja a criação do rendimento
básico garantido, o que implica a criação de moeda através dos bancos centrais
de modo a que todos os cidadãos disponham de um rendimento de sobrevivência, o
que implicará a afectação de uma parcela do rendimento total a este objectivo.
Relacionado com o debate em
torno da política anti-austeridade e o objectivo de estímulo à economia tem-se
defendido a adopção da criação de dinheiro por parte do governo (helicopter money) para financiamento de infra-estruturas e outros investimentos
e despesas, bem como empréstimos em condições especiais a estudantes. Na
opinião de Martin Wolf esta medida tem a natureza de oferta de moeda (QE) sem envolver os bancos e por isso sem
privilegiar os activos financeiros, mas directamente a economia.
O argumento em favor da
criação de dinheiro por parte do governo é ajudado pela alocação ineficiente de
fundos à economia por parte do sector bancário, desligando a finança da
economia real, como pode conferir-se, entre outros, no livro de Adair Turner, Between Debt and the Devil.
Turner aponta que no Reino Unido os empréstimos bancários se
destinam da forma seguinte:
·
14% ao investimento das empresas
·
7% ao consumo privado.
O resto serve para financiar o património imobiliário e o
investimento em títulos (inclusivamente a flipping,
ou a especulação), com reduzido impacto sobre a criação do emprego e com risco
de desigualdade agravada.
A criação de moeda está
relacionada também com a necessidade de solucionar o problema da dívida que
atingiu elevados níveis sem que a sociedade, no seu conjunto, tenha beneficiado
disso. A criação de moeda pelo banco central, e não pelo sector bancário, permitiria
a entrada de dinheiro fresco na economia sem aumento da dívida.
Para alguns o helicopter money resolve problemas pontuais de liquidez, mas não é
uma opção de longo prazo. Vem de longe, e é uma posição
essencialmente ideológica, a resistência à criação de moeda pelo governo. Hayek
argumentou contra esta possibilidade com base em que o governo nunca foi, nem
pode ser sujeito à necessária disciplina. Em todo este debate, a questão
central é a de saber se é o sector privado ou o governo quem melhor garante a confiança.
Se por um lado, é de
recear que o governo abuse do seu poder em benefício de alguns com
prodigalidade, por outro ficou provado durante a crise financeira que os bancos
não estiveram à altura da confiança que neles se depositava, mas abusaram do
seu poder de criação de moeda.
É comummente reconhecido
que o dinheiro é uma construção social e um bem para a sociedade, não um
privilégio de alguns.
Política e cultura no futuro
Das considerações
anteriormente feitas ressalta a conclusão óbvia de que, para conseguir melhor
desempenho do sistema financeiro e adequada resposta de contenção da
desigualdade actualmente existente, são necessários dois desenvolvimentos:
- Uma mudança cultural que implica um distanciamento efectivo
do princípio da maximização do dinheiro em si, sem olhar aos seus custos indirectos,
e a adopção de um sentido de responsabilidade de financiamento dos bens comuns
e da prossecução do bem comum. Isto implicaria passar da especulação financeira
e imobiliária para o investimento de longo prazo na economia.
- Uma reforma política e societal que permita sair do
neo-liberalismo e da financeirização com vista a uma visão comum em que
governo, sector privado e cidadãos trabalhem em conjunto para conduzir a economia
e a sociedade no sentido de providenciar benefícios para todos. Tal não implica
um corte com a economia de mercado, mas a adopção de uma economia colaborativa,
baseada numa perspectiva de co-responsabilidade e de transparência por parte de
todos os actores.
Esta mudança de paradigma
torna-se particularmente urgente face aos desafios ecológicos com que estamos
confrontados. Os recursos disponíveis estão a escassear, a biodiversidade
declina e a alteração climática intensifica-se. Não é de mais lembrar que estamos
a destruir a natureza e a descurar a nossa própria sobrevivência.
Acresce que a aceleração
da revolução tecnológica, incluindo a inteligência artificial, a bioengenharia, a digitalização e os mega dados,
torna imperioso que façamos escolhas muito sensatas acerca do modo como
delineamos o nosso futuro, pois está em causa a Humanidade. Corremos o risco de que o homo cyborgus venha a substituir o homo sapiens. A inteligência
artificial acelera-se e mesmo Sergey Brin, um dos fundadores da Google, admitiu
em Davos que não estava à espera da sua rápida aceleração.
No que se refere à crise
financeira, os riscos decorrentes da finança e do poder estão nas mãos dos seus
actores, que estão a passar cada vez mais para os tech bilionários. São estes que definirão, em grande parte, o nosso
futuro, devido aos recursos financeiros que concentram e do poder que estes lhes conferem? As escolhas de
investimento que fizerem e a trajectória tecnológica que delinearem
influenciarão o nosso mundo futuro. Por isso, a tecnologia está a sobrepor-se à
finança enquanto principal risco potencial, mas também como uma promessa, se
for bem conduzida.
Está em curso a discussão
sobre a definição de medidas legislativas de controlo destes actores, mas a
mudança tecnológica é tão acelerada que corremos o risco de ter leis que ficam
sistematicamente aquém da inovação. Importa, porém, ter presente que a lei só por si é insuficiente e tem
de ser complementada pelo comportamento responsável por parte de todos.
Um dos efeitos positivos da
inovação tecnológica, apesar dos riscos apontados, é que muito do que era
escasso ou disponível apenas a um preço tornou-se de acesso livre (ex. Wikipedia)
ou com custo marginal zero, devido, em parte, a novos métodos de colaboração
entre as pessoas. As redes de internet criam relações entre indivíduos e
dão-lhes poder. Cada evolução leva tempo e a nossa escolha definirá se é o lado
benéfico ou o destrutivo que prevalecerá na história.
A educação desempenhará um
papel fundamental no futuro. É necessário que as universidades e as escolas de
gestão adoptem, cada vez mais, uma perspectiva integrada, em que a economia, a
ecologia e a sociedade estejam interligadas. Por outro lado, a importância do
conhecimento da engenharia financeira deve declinar em favor de maior ênfase no
conhecimento sobre o investimento sustentável na economia real, e o seu impacto na sociedade.
A educação ajudaria a sensibilisar pessoas com conceitos que ainda não
entraram na consciência colectiva. Deve abrir espaço a novos questionamentos,
como, por exemplo, estes: A maximização do lucro deve ser prosseguida a
qualquer custo? Quais as restrições impostas pelo ambiente e pela sociedade? Desejamos simetria nos relacionamentos do
mercado? O mercado pode servir a sociedade? Quais os objectivos finais no uso
do dinheiro?
Como podemos redesenhar o
ambiente e a estrutura urbana para responder aos desafios demográficos e
ecológicos? Estes não devem ser considerados como restrições mas como
objectivos desafiadores para construir um futuro que a todos beneficie –
economia, comunidades e governos.
O debate público tem
estado focado sobre o crescimento económico e sobre a igualdade, mas é de igual
importância o debate sobre o uso do dinheiro, como investimos e como
colaboramos, porque tudo isto afecta a nossa vida.
20 Abril 2017
Maria José Melo Antunes
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