Há
dois dias, o Sr. Juncker foi ao Parlamento Europeu pronunciar o seu discurso
sobre o Estado da União. No aproximar do fim do seu mandato, o Presidente
entendeu dar a esse discurso o formato de testamento político, com o mote de uma
nova formatação politica da Europa. Têm sido variados os comentários em torno do
seu conteúdo. Um número significativo deles tende a sublinhar a importância da
nova visão de Juncker para a Europa. Outros, pelo contrário, têm posto em causa
a novidade da visão, interrogando-se sobre se, no momento da partilha da
herança, tem alguma valia o quinhão que a cada um vai caber.
Embora
existam outros, sublinho como componentes importantes desse discurso os
seguintes pontos:
1.
A
fusão dos presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu numa única
entidade;
2.
A criação
de um Ministro das Finanças da União, com a categoria de Vice-Presidente,
agregando os postos de Comissário dos Assuntos Económicos e de presidente do Eurogrupo;
3.
A
adesão de todos os membros da União ao euro.
Muitos entendem invocar que são
propostas concretas, realistas e despidas de ideologia, justificando que é por causa dela que surgem os bloqueamentos à evolução, do progresso e da
transformação das instituições (chamam-lhe transformações estruturais,
transformações que se conformem com a estrutura por eles desejada). Qualquer
destas propostas pode valer só por si, mas não vale enquanto parte de ideia política
fundada para uma nova Europa, em direção à qual todos reconhecem ser necessário
avançar. Temos propostas, mas não temos uma ideia fundadora de uma nova Europa.
Ora, uma ideia fundadora não pode surgir independentemente de uma ideologia, ou
de uma inspiração em ideologias.
Andam
por maus caminhos todos os que invocam a força das realidades concretas para
derrubarem, a ou as ideologias. A cegueira mental que revelam impede-os de ver
que por trás do que estão a afirmar está, também e antes de tudo, uma ideologia,
em geral a do livre mercado. Também a Europa pode vir a ser derrubada se, na
sequência do rasto deixado pelo Sr. Barroso, se quiserem implementar formatações
que dão corpo à afirmação da Europa liberal.
Voltemos
aos pontos antes sublinhados. Todos eles são enunciados sem estarem ancorados
num suporte de valores. Como ainda hoje o primeiro-ministro, António Costa sublinhou,
na sua lição no Colégio de Bruges: a reconstrução tem que começar “pelos valores da liberdade, da
democracia, dos direitos humanos, sem cedências à demagogia ou ao relativismo
cultural". A referência aos valores, que são ideologia, nunca pode ser
entendida como mais uma deriva enfastiante. Com isso, só se sentem incomodados os
militantes da necessidade de um futuro sem valores.
Qualquer
das 3 propostas merece ser analisada a esta luz. Relativamente à agregação dos
presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu numa única entidade,
embora a proposta possa ser vestida com as roupagens da eficácia das decisões,
a primeira questão que se coloca é a seguinte: um presidente mais poderoso para
prosseguir que projeto? Depois, não podemos esquecer que o Conselho é, de
alguma forma, uma projeção dos governos nacionais. Ao dar-lhe um presidente
vindo de fora, não é mais uma forma de fazer outra agressão à soberania dos
Estados, sem se saber o que se recebe em troca?
A
criação de um ministro das Finanças da União, com a categoria de
Vice-Presidente, fundindo os postos de Comissário dos Assuntos Económicos e de
presidente do Eurogrupo é uma forma explícita de formalizar, ao nível do colégio
de comissários, o papel que temos vindo a conhecer nos últimos anos protagonizado
pelo ministro das finanças alemão, Sr. Wolfgang
Schäuble.
Há, contudo, uma outra questão mais fundamental. O colégio dos
comissários, hoje com 27 membros, encontra-se estruturado por áreas que foram
criadas nos pressupostos, da sua relevância para a gestão do projeto da União e
da existência de uma relação de interdependência, sistémica, entre elas. Assim,
ou esta partição está errada ou, então, não se pode privilegiar uma área em
relação a outras.
Ao destacar o papel do Ministro das Finanças da União em
relação aos outros Comissários, o que se está a promover é a ideia de que há
áreas mais centrais de que outras e que consequentemente, as decisões tomadas
no seu seio devem subordinar as que venham a ser tomadas em outras áreas. Daí
que na última década se tenham arvorado como valores universais os dos equilíbrios
financeiros e orçamentais, em desprimor de outros a que deveria ser atribuída
igual valia: equilíbrios sociais, equilíbrios no emprego, equilíbrio na
repartição de rendimentos, equilíbrios na investigação e progresso tecnológico,
equilíbrios ambientais, etc. Esvaiu-se a visão sistémica da gestão da União.
O último ponto é o da adesão
de todos os membros da União ao euro. Percebe-se a intenção, mas não se percebe
a metodologia. Percebe-se a intenção, porque o caminho para a existência de uma
verdadeira União, união política, não é compreensível na ausência de uma moeda
comum, uma moeda comum para todos os membros. Mas existência de uma moeda comum
tem como pressuposto que a estrutura económica e financeira dos que a ela
aderem é equivalente, estando eliminados os mecanismos de dominação de umas
economias em relação a outras.
Na
ausência da verificação deste pressuposto, a existência da moeda única só é
tolerável se os países mais fortes, tendo em conta os benefícios que esperam
poder vir a retirar no futuro, estiverem dispostos a assumir parte dos custos
exigidos pela reconversão dos mais fracos. Como esta disponibilidade tem de ser
limitada no tempo e como a soberania destes Estados exige que continuem a ser
autónomos na definição das suas políticas económicas e sociais, estamos colocados
perante um bloqueamento que, a mais curto ou médio prazo, acabará por destruir
o projeto da moeda comum.
Mais
uma vez, como acontece com frequência, o testamento encontra-se de tal modo
armadilhado que, certamente, se esfumará com o seu autor.
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