Não fossem as tropelias recentes
dos que se julgam donos de todo o mundo, entrando em todas as portas sem pedir
licença, e o problema da dívida dos portugueses continuaria a ser-nos
apresentado, em particular pelos media,
como uma das questões que mais deveriam preocupar os portugueses. Descontados
estes humores mediáticos, não será bom, evidentemente, atirar com a dívida para trás das costas.
Foi, por isso, muito bem-vinda a
iniciativa que a RTP3, conjuntamente com a Fundação Francisco Manuel dos
Santos, nos trouxe no passado dia 5, para discutir a dívida (ver aqui). Já assistimos a
muitos debates sobre esta temática, mas pode dizer-se que cada vez mais se vem
dizendo mais do mesmo. Nesta iniciativa houve alguma inovação, pela temática e
pelo formato.
A temática e o formato
Pela temática porque, fora de
alguns círculos restritos, sempre tem sido entendido que a discussão da dívida
é, no essencial, a discussão da dívida pública. Que me recorde, esta foi a
primeira vez que, com um âmbito alargado, se veio dizer que o verdadeiro
problema não é o da dívida pública, mas o da dívida portuguesa, de que a dívida
pública constitui, sem dúvida, uma componente relevante, mas não exclusiva. Isto não quer dizer
que esse fosse o ponto de vista partilhado, sempre, por todos os
intervenientes do debate.
Quanto ao formato, para além dos
participantes da plateia, tivemos a presença de um moderador e três
especialistas, com a peculiaridade de, contrariamente ao que é habitual, um dos
intervenientes ter sido colocado numa poltrona suficientemente afastado das
dois restantes. Certamente que se quis atribuir algum significado a esta
cenarização, mas eu não consegui identificar qual tenha sido.
A relevância do circuito económico
Mas vamos a alguns aspetos da
substância. O primeiro, que julgo dever ser de relevar, foi o de se ter trazido
para o âmago da discussão, embora nem sempre de forma explícita, um dos
instrumentos básicos da análise dos economistas, o designado “circuito
económico”, que qualquer aluno de economia aprende a identificar nas primeiras
aulas do 1º ano do curso. Foi muito a
propósito recordado que o circuito económico, tão útil na análise de outros problemas
económicos, também o é para o problema da dívida.
Os elementos estruturantes do
circuito são as famílias, as empresas e o Estado (simplificamos admitindo que
não existem relações externas). Quando nele introduzimos o problema da dívida,
o que poderemos dizer é que a dívida de qualquer um destes elementos tem
efeitos sobre a dívida dos restantes. Por ex., a dívida pública é condicionada
pelo comportamento do Estado, das empresas e das famílias. O que o circuito não
nos diz, só por si, é qual é, em cada circunstância, o sentido das
interdependências e o seu peso.
A análise e a ideologia
Algo pode ser dito sobre isto, em
termos analíticos, mas em geral o que é mais importante tem natureza
ideológica. Isto é, por ex., pode dizer-se que a dívida pública é uma
consequência do comportamento de todos os agentes da economia ou que, pelo
contrário, é o comportamento do Estado que vai ter efeitos nefastos sobre o
comportamento dos outros agentes. Alternativamente, pode ainda dizer-se que
ambos os efeitos podem ser identificados, mas então é necessário explicitar, em
cada circunstância, qual é o peso de cada um dos efeitos. De sublinhar, ainda,
as posições dos que se apresentam invocando autoridade analítica, mas que, de
fato, lhe acrescentam uns pozinhos da ideologia que informa o seu
subconsciente.
A interdependência do comportamento dos agentes
Sublinhou-se, e bem, a relevância
das várias componentes da dívida: as empresas, com 40%, o Estado com 36% e as
famílias com 24% (num total de 354,6% do PIB). Ficou claro que:
1.
A dívida do Estado era condicionada pelo
comportamento da economia, isto é, pelo comportamento dos restantes agentes; se
a economia se encontra em expansão, sobem as receitas do Estado e este pode
aumentar a sua intervenção económica e social e inversamente;
2.
O comportamento dos agentes, empresas e
famílias, também tenderá a ser mais ou menos otimista, consoante os impulsos e
incentivos que recebe do Estado.
A questão que se deve colocar como decisiva é a de saber
qual deve ser o comportamento mais ajustado, de cada um dos agentes, em cada
uma das conjunturas. Vejamos, por ex., o Estado. Suponhamos uma situação de
expansão da economia. Há quem diga que, neste caso, o Estado, recebendo mais
receitas, deverá poder utilizá-las para aumentar as suas intervenções a nível
social e a nível económico. Acrescentam outros que será prudente que o Estado utilize
uma parte das receitas adicionais para constituir um fundo de reserva que lhe
permita intervir na animação da economia, quando ela se encontrar mais
debilitada. A intensidade de cada um dos comportamentos não nos pode ser
fornecida apenas pela teoria económica. É, em muito, determinada pelas conceções
ideológicas de cada um dos agentes.
E se a conjuntura for de recessão, o que deverá fazer o
Estado? Têm sido sublinhadas duas posições. A primeira, decorre da sabedoria
popular que nos diz que quem não tem dinheiro não tem vícios, o que significa
que quando diminuem as receitas do Estado este deve retirar-se das suas funções
de intervenção económica e social. O verdadeiro problema passa a ser o Estado
se este continuar a ter um comportamento que, em tais circunstâncias, só pode
ser considerado despesista. O Estado com as suas despesas e com o aumento da
dívida é o principal obstáculo à recuperação. O Estado não tem economia que
suporte a dimensão que possui.
A segunda, parte do pressuposto de que o Estado tem funções
de regulação a nível económico e social. Quer isto dizer que se o clima é
depressivo o Estado deve intervir, criando incentivos financeiros ou outros que
ajudem a carruagem a arrancar, de modo a que se obtenha um clima de
expectativas positivas.
Qual das duas posturas é mais adequada? Um juízo sobre esta
questão depende da conceção (ideológica) que se tiver quanto ao papel do Estado
na sociedade: concorrente ou complementar das atividades desenvolvidas pelos
outros agentes.
Todo o debate havido mereceria reflexão adicional, mas não permitindo
o espaço disponível que tal aconteça, remeto o leitor para o vídeo de debate.
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