O objectivo deste post é proceder a
uma reflexão sobre quais as consequências sociais da actual crise em termos de
desigualdades, de pobreza e de exclusão social.
O primeiro aspecto que gostaria de
salientar é o reconhecimento de que as consequências económicas e sociais desta
crise não são iguais para todos. Os
efeitos da crise, ou pelo menos a sua amplitude, dependem fortemente do grupo
social em que se está inserido, das condições de trabalho, de saúde, de
habitação, etc. Podemos falar, também aqui, de uma profunda desigualdade
perante o risco dos efeitos da pandemia.
O segundo aspecto é o de que a
presente crise potenciou fortemente os riscos de um aprofundamento expressivo
dos níveis de desigualdade e de pobreza no nosso país.
A informação que já dispomos sobre a
quebra dos rendimentos de largos sectores da população, do aprofundamento das
situações de precariedade laboral e social, os efeitos já mensuráveis ao nível
do desemprego são indicadores claros de que a situação social se degradou
fortemente, que as situações de pobreza e mesmo de pobreza extrema se
acentuaram fortemente.
Começando pelas questões da desigualdade:
O acentuar das desigualdades pode ser
observado a partir de três vertentes distintas.
O primeiro é o acentuar das
desigualdades pré-existentes à emergência da presente crise. Apesar da redução dos principais
indicadores de desigualdade ocorridos nos últimos três/ quatro anos Portugal
manteve-se um país profundamente desigual.
Os principais determinantes da
desigualdade económica como a precaridade laboral, a assimetria na distribuição
dos salários ou a manutenção de largos sectores da actividade fora do circuito
da economia formal mantiveram-se praticamente inalterados.
Adicionalmente alguns dos elementos
que em anteriores crises serviram de “válvula de escape” do sistema na
protecção dos rendimentos familiares como o trabalho informal foram
completamente neutralizados na presente crise.
Este aspecto da quebra dos rendimentos
dos vários tipos de trabalhadores atípicos ou com uma relação formal muito
ténue com o mercado de trabalho revelou-se profundamente gravosa na medida em
que grande parte do nosso sistema de protecção social foi desenhado para
proteger os trabalhadores com ligações normais ao mercado de trabalho e somente
de forma marginal abrange este tipo de famílias que assim se viram sem
rendimentos e sem acesso à protecção social.
Acentuou-se igualmente as
desigualdades no acesso aos serviços públicos. Um exemplo claro é o que
aconteceu com o acesso ao sistema de saúde por motivos não relacionados
directamente com o COVID, mas podemos encontrar exemplos igualmente no acesso à
habitação, ao modelo de prestação de cuidados dos idosos, aos transportes, etc.
O segundo aspecto a realçar é o
aparecimento de novas formas de desigualdade.
Aquilo que aconteceu no ensino nos
últimos meses em Portugal é um exemplo claro da emergência de novas formas de
desigualdade.
Com o encerramento das escolas e das
Universidades, e a passagem do ensino presencial para o ensino on-line, a
ligação de milhares de jovens ao sistema de ensino degradou-se fortemente.
Apesar do esforço das escolas, do
trabalho incansável de muitos professores para que essa ligação se mantivesse
tão activa quanto possível é indiscutível que os benefícios desse esforço
dependem muito das condições sociais dos alunos.
Muitos milhares de alunos no nosso
país não dispõem de meios informáticos e de ligações à internet que lhe
permitam seguir de forma eficiente as aulas on-line.
Mas, tão ou mais importante que os
meios materiais de acesso a este novo modelo de ensino à distância, é o apoio
familiar e as próprias condições de habitação adequadas que esta mudança exige.
Para grande parte das famílias mais
pobres com crianças esta crise traduziu-se num efectivo enfraquecimento da
ligação com o sistema de ensino.
Este enfraquecimento da ligação com o
sistema de ensino das crianças em famílias mais desprotegidas não deixará de
potenciar os mecanismos de reprodução geracional das desigualdades,
neutralizando ainda mais os poucos mecanismos de “elevador social” que a escola
proporciona.
O terceiro e último aspecto que
gostaria de destacar é o enfraquecimento dos mecanismos de combate às
desigualdades.
Com uma parte significativa dos
trabalhadores públicos em teletrabalho a capacidade de actuação do Estado na
correcção das desigualdades viu-se igualmente enfraquecida.
O agravamento da pobreza
Esta crise tem também um potencial de
agravamento das situações de pobreza e de exclusão social que, infelizmente, se
prolongarão no tempo muito além da duração da crise pandémica.
O aumento do desemprego, a paralisação
total ou parcial de largos sectores de actividade veio adicionar à pobreza mais
tradicional outros sectores da população que anteriormente estavam claramente
imunes ao fenómeno da pobreza.
Mas mesmo num cenário em que vários
setores da população são afetados, nem todos o são da mesma forma. A
intensidade dos efeitos da crise será maior naqueles já eram particularmente
vulneráveis. Esses vão ser os primeiros a sentir o impacto desta crise
Os indivíduos com uma fraca ligação ao
mercado de trabalho, seja porque são trabalhadores informais, seja porque estão
a prazo, seja porque têm contratos parciais, são não somente aqueles que viram
os seus rendimentos reduzirem-se de forma mais significativa, mas também os que
terão mais dificuldade em beneficiar das medidas que o Governo tem tomado para
mitigar a crise. Não há nenhuma relação formal anterior que lhes permita aceder
às medidas que o Governo tem proposto.
As famílias alargadas com crianças e
as famílias mais jovens serão igualmente dos sectores sociais mais afectados
pela actual crise.
O papel das políticas públicas
Se já hoje é inquestionável que os efeitos
da presente crise se vão prolongar no tempo muito para além do próprio timing
da pandemia (que desconhecemos) é também inquestionável que a sua duração e
intensidade irá depender muito do tipo, da intensidade e da qualidade da
intervenção do Estado.
Um dos aspectos positivos da presente
crise é que ela veio demonstrar, de forma inequívoca, a importância das
políticas publicas no enfrentar da crise, seja a crise sanitária seja a crise
económica e social dela decorrente.
Na avaliação das políticas publicas de
resposta à pandemia é importante diferenciar claramente dois períodos.
O primeiro, corresponde às medidas de
urgência que foi necessário tomar como resposta ao problema sanitário e à
emergência dos problemas sociais.
Este período, que ainda decorre,
correspondeu em muitos casos à implementação de medidas que como resposta
imediata aos problemas surgidos resultantes da paragem da actividade económica,
da perda do emprego e da quebra dos rendimentos.
De uma forma geral essas medidas
tiveram um impacto positivo visando salvaguardar as empresas e as famílias.
Apesar de alguma experimentação e fragmentação quase inevitável elas tiveram
uma abrangência bastante alargada quer nos instrumentos utilizados quer nas
preocupações sociais que lhe estavam subjacentes.
No entanto, elas vieram a revelar-se
insuficientes em algumas áreas deixando alguns sectores da população mais
desprotegidos. A dificuldade dos mecanismos tradicionais das políticas sociais
em lidar com aqueles sectores que não tem uma relação formal com a actividade
económica revelou-se um factor de fragilidade acrescido e permitiu identificar
áreas claramente não cobertas pelos mecanismos de proteção social.
O segundo período pressupõe a
implementação de um programa de recuperação económica e social inclusivo que
permita não somente recuperar a economia, mas igualmente evitar erros do
passado em termos de um modelo de protecção social que garante a todos a
efectiva concretização dos direitos sociais.
Esse programa implica políticas integradas,
que combine políticas económicas e políticas sociais.
Implica gerar sinergias que
possibilitem abordar em simultâneo o triangulo do emprego, da defesa dos
rendimentos e da concretização dos direitos sociais.
Isso implica igualmente uma reavaliação
dos mecanismos já existentes como o RSI, o CSI, o abono de família ou o
subsídio de desemprego, procedendo a uma recalibração do seu modo de
funcionamento de forma a assegurar o aumento da sua eficácia e eficiência.
Nesse contexto, a protecção dos que ficam
privados de actividade (por via do desemprego, ou outra forma de fragilidade
social) deve ser uma preocupação central. O trazer para a economia formal
grande parte daqueles que anteriormente estavam ausentes deve constituir uma
prioridade.
Os sectores mais afectados pela
pobreza, como as famílias alargadas com crianças, os desempregados de longa
duração ou as famílias jovens devem constituir a população alvo no centro da
redefinição de uma política de protecção social de cidadania.
A questão do trabalho socialmente útil,
mas que não é reconhecido pelo mercado deve ser igualmente levado em conta na
formulação das políticas públicas.
É necessário ter em conta que mesmo
que o processo de recuperação permita repor a economia em funcionamento tal não
vai acontecer em todos os sectores de actividade à mesma velocidade e que serão
necessárias medidas mais específicas para aqueles sectores que evidenciarem
mais dificuldades na retoma.
Por último, a implementação de um
programa de recuperação económica e social inclusivo implica a capacidade de
mobilizar diversos actores para além do próprio Estado Central: as autarquias
locais, as instituições de solidariedade social e de uma forma as diversas
instituições do sector social, as empresas.
O papel da União Europeia
Esta crise, como qualquer crise, pode
também ser uma janela de oportunidade para a introdução de medidas que visem
melhorar o funcionamento do nosso modelo social. Depende da capacidade que os
poderes públicos tenham para aprender com os erros do passado, para fazerem uma
leitura correcta das fragilidades que a crise tornou mais visíveis, da vontade
política para implementar as alterações necessárias.
Uma coisa é certa: seja qua for a
velocidade de recuperação não é possível voltar para a situações existente
antes do deflagrar da presente crise.
Num contexto de escassez de recursos é
imperativo que seja colocado um novo nível de exigência, de eficácia às
políticas a implementar.
O papel da União Europeia é, nesse
contexto fundamental. Não somente pelos recursos que permitirá mobilizar, mas
também pelas novas opções que poderá permitir vir a implementar.
A efectiva implementação do Pilar
Europeu dos Direitos Sociais e o caminhar numa redefinição de políticas fiscais
mais progressivas e abrangente (difíceis de aprovar ao nível dos estados) para
combater a evasão fiscal são dois caminhos necessários não só para vencer a
actual crise mas igualmente para reafirmar uma ideia de projecto europeu onde
os cidadãos da Europa se reconheçam.
Face a este texto que foca com clareza os problemas que, especialmente ao nível social, a pandemia nos obriga a resolver, permito-me salientar ser preciso "evitar os erros do passado em termos de protecção social" nomeadamente o de um "sistema de protecção social...desenhado para proteger os trabalhadores com ligações normais ao mercado de trabalho" e isso implicará mudanças claras de protecção social em que o garantismo, por vezes excessivo, de exigências em termos de "condição de recursos é um travão a à concretização mais abrangente de direitos sociais. Se a pandemia já pôs a claro a importância da protecção sanitária e da "saúde para todos", teremos que pôr também como universal a protecção social para "uma vida digna para todos". Estes dois níveis de protecção têm que estar no centro das políticas públicas nacionais e da UE.
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