20 maio 2020

Uma análise “em contra corrente” da solidariedade na União Europeia

O tema da solidariedade no interior da União Europeia (UE) tem vindo a ser objecto de debates intensos e acalorados. Tal vinha acontecendo, desde há bastante tempo, antes da pandemia da Coronavírus – 19, mas com a propagação e efeitos destruidores desta a questão tornou-se mais premente.
A solidariedade entre países, pessoas e organizações tem, na UE, entre outras, razões de natureza conjuntural e razões de natureza estrutural, embora umas e outras devam ser consideradas como interdependentes.

Os fundamentos da solidariedade na UE
Importa que, a propósito da UE, nos interroguemos e procuremos compreender os fundamentos da solidariedade, bem como as motivações dos que entendem que o volume dos fundos financeiros, para isso mobilizados é, ou não é, suficiente. Naturalmente que me estou a referir às manifestações de solidariedade institucional e não entre indivíduos. O debate em torno da solidariedade institucional na UE tem levado, até que, hoje, haja quem se interrogue sobre se a UE Europeia sobreviverá se determinados limiares de financiamento não forem atingidos.
Quando refiro as motivações de ordem conjuntural, pretendo ter em conta as mobilizações de solidariedade previstas ou indispensáveis por ocasião de calamidades públicas tendo, em geral, origem em fenómenos da natureza ou em outros cujas causas não se conhecem completamente, mas cujas consequências não podem esperar que elas sejam identificadas para poderem ser debeladas, como é o caso dos terramotos, cheias e da pandemia agora em curso.
As reservas mais sérias têm vindo de países que entendem que se se lhes está a pedir para que financiem essa solidariedade é porque é reconhecido que eles souberam precaver-se, como as formigas, e não entendem porque é que os que, agora, clamam por maior apoio, se comportaram no passado como cigarras. Vejam-se, por ex.,  as posições que têm vindo a ser tomadas a propósito dos “eurobonds”.
Contudo, não basta dizer que esses países se comportaram como cigarras, para que efetivamente o seu comportamento se possa caracterizar como tal. Não se desenvolve aqui a questão de saber em que medida é que o que parece ser o comportamento de cigarra tem ou não origens que nada têm a ver com preguiça, descuido, falta de esforço, etc.
Importa, agora, que nos interroguemos sobre os fundamentos e sobre o questionamento que tem vindo a ser feito acerca da solidariedade institucional, tendo em conta o espanto gerado, nos países do sul, pelo facto, de os financiamentos destinados às reformas estruturais não aumentarem quanto se desejaria ou de os horizontes temporais serem mais limitados do que o que antecipava.
Uma das componentes essenciais do projeto europeu é o de constituir, em cada um e no conjunto dos países aderentes, economias de bem-estar. Foi entendido que o projeto tinha como elementos estruturais, a construção de um mercado alargado, competitivo e coeso. No entanto, os diferentes países integrantes da UE não se encontravam, à partida, dotados de idênticos níveis de desenvolvimento e de iguais capacidades susceptíveis de garantir que aquelas condições eram preenchidas e o objetivo de bem-estar podia ser atingido com celeridade.
Face a esta situação o conjunto dos países aderentes têm entendido que o desenvolvimento de uma economia de bem-estar global é um objetivo que, apesar disso, vale bem a pena ser prosseguido, mesmo que para o efeito os mais desenvolvidos tenham que financiar a superação do atraso dos menos desenvolvidos. Uma vez ultrapassados os bloqueamentos todos ficariam a ganhar, incluindo os financiadores porque, com os resultados conseguidos, o retorno seria superior para todos e mais que compensaria os montantes gastos com a ajuda. Os países mais ricos aceitavam ajudar os mais pobres a transformar as suas estruturas económicas, sociais e institucionais, de modo a que cada um, na sua diversidade, se tornasse competitivo, promovendo, desse modo, também, a competitividade global.
 
A criação dos Fundos Estruturais
Com esse fundamento foram criados e desenvolveram-se os designados Fundos Estruturais. Um dos mais relevantes foi o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), que tinha como vocação financiar projetos ao nível das regiões, porque se considerou, acertadamente, que as assimetrias no desenvolvimento das regiões eram uma explicação importante para a existência de debilidades e ineficiências a nível nacional e mesmo europeu.
Os doadores tinham como pressuposto que a solidariedade não deveria ser considerada como uma componente permanente do funcionamento dos sistemas económicos e sociais dos países apoiados, mas deveria, antes, ser encarada como uma espécie de medicamento que se dá a um doente na expectativa de que ele possa recuperar dentro de um certo horizonte temporal. Isto é, a dose do medicamento deve ser proporcional à gravidade das debilidades do paciente e que só tem sentido ser tomado se o for durante um tempo limitado.
Se o doente não recupera como se esperava, o que se pensou que poderia ser o remédio, pode transformar-se num veneno que vai intoxicar outras partes do organismo. É, no entanto, verdade que, em termos da UE, nunca foi definido, com precisão, qual o tempo que seria necessário que o remédio fosse ser administrado.
O horizonte temporal limitado foi assumido, quer pelos poderes públicos dos países que fornecem o auxílio, quer pelos seus cidadãos. Passadas algumas décadas de funcionamento dos Fundos Estruturais, os países doadores passaram a prestar mais atenção aos resultados obtidos com a ajuda fornecida.
Pouco a pouco foi-se tomando consciência, nesses países, de que a operacionalização da ajuda tinha muitas componentes de ineficácia, por ineficiência da afetação de recursos, por controles desajustados em relação aos objetivos que se queriam atingir e, com efeitos mais desastrosos, pelo desenvolvimento de componentes de corrupção cada vez mais aprofundados (seja isso verdadeiro ou falso), pelo menos, na medida que os países doadores e os seus nacionais o percepcionam.
Por outro lado, nos países receptores, criou-se a mentalidade de que como são mais frágeis têm direito a ser permanente ajudados. Veja-se a forma como parte dos seus cidadãos e responsáveis políticos olham para os Quadros Comunitários de Apoio, como se pudessem ser figuras de repetição de financiamento comunitário, sem prazo.
É por isso que quando os doadores colocam questões acerca da eficácia da ajuda, logo os receptores afirmam que com tal comportamento, os primeiros mais não conseguem de que destruir a construção europeia. É legítimo que se pergunte: e os beneficiários da ajuda, pelo seu comportamento, não a destroem também?
Teremos de reconhecer que é indispensável ultrapassar este fosso que se aprofunda entre alguns países doadores e países beneficiários. Só o diálogo e as negociações, onde as partes se mostrem disponíveis para ouvir as boas razões de uns e outros é que permitirá que o processo de integração se reforce e tenha continuidade.

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