09 dezembro 2018

A classe média que ignoramos. Será que me está a escapar alguma coisa?


Parece uma evidência incontestável que o mundo se nos está mostrando cada vez mais inseguro. Todos, nos interrogamos onde é que os novos jogos da geoestratégia mundial nos podem ainda levar, reforçando a insegurança que sentimos. Até há poucos anos, aqui e acolá havia sinais de instabilidade, mas todos acreditávamos que as instituições tinham capacidade para os neutralizar. Hoje, temos menos certezas. Não encontramos respostas e, justificadamente, ficamos preocupados.

Não creio que os populismos que grassam em vários continentes nos possam trazer algo de bom. E, no entanto, os populismos desenvolvem-se porque há muita gente que neles acredita. Surgem e desenvolvem-se minando as instituições que, muito laboriosamente, foram criadas no pós-guerra e que são suporte do que hoje conhecemos como sendo o Estado Social. Ruidosamente somos acordados pela chegada ao poder desses populismos, por via eleitoral. As eleições que sempre foram tomadas como instrumento fundamental de funcionamento e consolidação das democracias, surgem, agora, como arma que pode provocar a sua destruição.

Foi o que vimos acontecer nos EUA, no Brasil, na Itália, na Hungria na Polónia. Em outros países, esta maré ainda não chegou ao poder, mas está pronta para dar golpes eficazes para poder atingir esse objetivo: Holanda, França (manifestações dos coletes amarelos), Espanha (últimas eleições na Andaluzia).

O que é que pode explicar esta hecatombe? Na minha opinião a explicação encontra-se, em grande medida, no comportamento de um estrato social que se chama “classe média”. E então porquê? A seguir procurarei trazer alguns elementos de clarificação.

Nas designadas democracias estabilizadas, as classes médias começaram a deixar de fazer parte das principais preocupações dos decisores das políticas económicas e sociais. De algum modo o seu estatuto serve de modelo para os objetivos das políticas de distribuição de rendimentos.  Estas têm tido como preocupação central a correção dos desequilíbrios verificados nos rendimentos auferidos pelos mais ricos e pelos mais pobres, embora ainda seja longo o caminho a percorrer.

Continuamos a verificar que os mais ricos se estão a tornar ainda mais ricos e os mais pobres, ainda mais pobres, embora, aqui e acolá, se possam ter verificado melhorias no nível de bem-estar. Ora, se assim é, pelo menos em termos relativos (e, por vezes, também, em termos absolutos), quem vê a sua posição deteriorar-se é precisamente a classe média.

As bases da sua estabilidade começaram, pouco a pouco, a ser postas em causa, tanto através do nível de rendimentos recebido e percepcionado, como através da segurança sentida no dia a dia. A corrupção real ou imaginária, generalizada ou pontual, por parte dos mais ricos e da classe política, passou a ser um dos elementos da explicação do mal-estar que, individual e coletivamente, se começou a sentir.

Mas há mais. Mesmo que em termos absolutos a posição da classe média não se tenha deteriorado, o que é verdade é que para todas as classes, e também para ela, não são relevantes, apenas, os níveis absolutos de rendimentos, mas também a sua evolução e a modificação de posições relativas ao longo do tempo. Se as posições relativas da classe média se deterioram, ela vai reagir, ficando pronta a seguir qualquer “duce” que lhe prometa a salvação.

A classe política deixou de ser capaz de falar com e para as classes médias. Tem preocupações e utiliza uma linguagem que elas não entendem. As bases do funcionamento do sistema democrático são postas em causa e embrulhadas no pacote do “isto é tudo a mesma cambada; estão todos a encher os bolsos à nossa custa”. Os salvadores, mesmo sem apresentarem qualquer programa político, sem discutirem qualquer ideia com os seus interlocutores, vão a eleições e obtêm estrondosas vitórias (vide o que se passou, por ex., com Trump e com Bolsonaro). Como coelhos saídos de uma cartola, ninhadas de outros exemplares estão aí para nos bater à porta.

Em Portugal, a explicação até aqui apresentada pode, com grande utilidade, ser confrontada com a dinâmica de greves e reivindicações que temos visto acontecer desde há alguns meses e com a intensidade que têm assumido nos últimos tempos: professores, técnicos de diagnóstico, enfermeiros, empresas de transporte, funcionários judiciais, guardas prisionais, bombeiros, estivadores, etc.

O direito constitucional à greve não pode, em nenhuma circunstância, ser posta em causa. Ele é, também, um mecanismo de ajustamento do funcionamento democrático da sociedade. O que podemos interrogar-nos é sobre se, sempre que acontecem, estão verificados os pressupostos que justificaram a sua consagração constitucional, nomeadamente o de constituir o último recurso num processo reivindicativo e negocial.

Não tenho qualquer dúvida que as greves a que vimos assistindo têm na sua base a alteração de situações, profissionais ou outras, que são justas. Fico, no entanto, muito perplexo com a sua grande simultaneidade no tempo e, quase sempre no espaço. Não vejo que sejam convenientemente tidos em conta os inconvenientes provocados pelas greves junto daqueles que recorrem aos serviços das instituições onde os grevistas trabalham.

Não pode deixar de se colocar a seguinte questão: em que medida é que a existência de greves se justifica pela teimosia a arrogância dos trabalhadores, das entidades patronais ou de ambos? Temos o sentimento de que o bolo a repartir cresceu e de que a luta por uma maior fatia garante aos beneficiários maior força política e negocial. Só uma grande sabedoria política e capacidade de negociação podem garantir que se encontrem soluções justas.

Entretanto e contrariamente ao que acontece em França, com o movimento dos coletes amarelos, as reivindicações em Portugal têm protagonistas e têm rostos, o que deveria permitir chegar a resultados mais rapidamente do que o que temos visto acontecer.

Finalmente, um comentário em torno das contrariedades que as greves provocam ao paralisarem total ou parcialmente serviços, nomeadamente públicos. Tomemos com referência os hospitais e as escolas. Os seus beneficiários são, essencialmente, pessoas oriundas das classes médias e pobres; os outros têm dinheiro suficiente para poderem procurar outras alternativas.

Será que se têm ponderado convenientemente que, para além dos prejuízos imediatos com a não prestação de serviços, aqueles que nisso são envolvidos vão, no seu silêncio, desenvolvendo sentimentos de insatisfação que, pouco a pouco, os leva a terem apetência para desejar e aceitar que possa vir alguém que ponha um pouco de ordem nisto tudo.
Assim se criam condições para, de forma mais ou menos barulhenta, ou mais ou menos sub-reptícia, se afirmarem os movimentos populistas que, sem dificuldades, ganham eleições.

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