12 maio 2013

Dizem que só funcionários serão 100 mil. Se isso fôr verdade, esta bomba atómica provocará muito mais destruições

Na semana que terminou, a sanha devastadora contida nas medidas de política anunciadas pelo Governo deixou o país atónito. Tendo em conta outras já anteriormente publicitadas podemos aí encontrar uma boa imagem do avanço destruidor dos exércitos germânicos sobre a Europa, durante a 2ª Grande Guerra.
 
Quero aqui focar-me no anúncio feito por um Secretário de Estado de que estava em preparação a redução de 100 000 funcionários públicos até ao fim da atual legislatura.
Ouve-se e comenta-se: será que estou a ficar surdo? O que é que eu entendi mal?
Refeitos da surpresa não podemos deixar de nos interrogar: será que este Sr. sabe o que está a dizer? Avaliou convenientemente as consequências de uma tal decisão? E porque não 99 999 ou 100 101, ou 56 784, ou qualquer outro número? Não pretendo justificar ou injustificar a medida, pela maior ou menor precisão do número anunciado, mas chamar a atenção para o fato de que a referência a um número tão preciso não pode ser senão ser um exercício de pura irresponsabilidade política e intelectual. Ao Governo exige-se que nos explique, como e porque chegou àquele número.
Deixemo-nos, no entanto destes pormenores e procuremos aproximar-nos de algo que é mais substancial. Vamos admitir que são 100 000. Recorde-se que este número equivale a cerca de 20% do total dos funcionários. Anunciar este número, ou um outro qualquer, do modo como tal foi feito, só pode encontrar a sua justificação no pressuposto ideológico de que tudo o que for função pública é mau e é, também, a raiz do mal. Quanto maiores forem as baixas, melhor, e não importa, o como, o onde e o timing.
A redução do número dos funcionários públicos é um passo na estratégia da redução do Estado à sua expressão mais simples: Defesa, Segurança, Negócios Estrangeiros e pouco mais. Porquê à sua expressão mais simples?
Os detentores do capital financeiro compreenderam que podem, hoje,  maximizar o seu retorno reduzindo as funções do Estado, à dimensão de Estado mínimo. Querem convencer-nos de que tudo o que andamos a fazer durante os últimos 80 anos foi um puro engano. As áreas funcionais acima mencionadas são as únicas que lhes poderão prestar serviços úteis. Do seu ponto de vista, todas as outras manifestações do Estado mais não são, do que formas ilegítimas de transferência de rendimentos dos seus bolsos para os dos que menos têm.
A construção do Estado moderno caracterizou-se pelo desenvolvimento da sua intervenção em domínios que se tem convencionado designar por áreas sociais: Saúde, Educação, Segurança Social, mas também, Justiça, e organização e regulação do trabalho, etc. Ao conjunto destas componentes do Estado designou-se por Estado Social. Convém compreender o porquê do desenvolvimento destas novas áreas.
Após a Grande Depressão, mas sobretudo depois do fim da 2ª Grande Guerra, a Europa encontrava-se completamente devastada. A pobreza e a penúria de toda a espécie atingiam grande parte da população. Alguma clarividência dos responsáveis políticos de então permitiu-lhes compreender que a economia não poderia crescer e desenvolver-se se os serviços básicos de saúde, de educação e de proteção social não pudessem ser usufruídos por todos os cidadãos.
Foi com este pressuposto que se foi construindo, pouco a pouco, o “Estado Providência”, ou o Estado de Bem Estar que, muito justamente, é considerado como uma grande conquista civilizacional. As funções sociais que o Estado garantia aos cidadãos eram gratuitas, ou prestadas a preços muito reduzidos. Implicavam, no entanto, custos que encontravam a sua contrapartida de financiamento num sistema de impostos progressivos que atingiam mais pesadamente os titulares de rendimentos mais elevados. Tratava-se de uma espécie de remuneração indireta que ajudava a corrigir a desequilibrada repartição de rendimentos decorrente do funcionamento dos mecanismos de remuneração do mercado.
Entretanto, as práticas de política económica e social liberal, introduzidas na Europa pela Sr.ª Tachter, mas continuadas pelos seus sucessores na Grã-Bretanha e em muitos outros países da Europa, foram o sinal de que o capital tinha entendido que estavam criadas as condições para voltar ao estádio existente antes dos anos 30 do séc. XX. A crise iniciada em 2008 mais não veio do que acelerar o processo de destruição do “Estado Social”. Estavam criadas as condições para recuperar o capital que, ao longo de mais de oito décadas, tinha financiado o Estado Social através de transferências de rendimentos dos que vivem na abundância para os que vivem na precariedade.
É a isso que continuamos, hoje, a assistir, através de métodos que não será exagerado designar por terrorismo de Estado. Quase sempre as medidas que suportam aquela destruição escondem-se sob as roupagens da Reforma do Estado. Mas importa averiguar em que é que se poderá estar a pensar quando se usa a designação "reforma", porque o termo reveste-se da maior das ambiguidades.
Tem-se falado de Reforma do Estado para cobrir conteúdos tão diversos como:
1. A melhoria do funcionamento das administrações públicas de modo a que os   serviços prestados possam ser caracterizados por grande qualidade e eficiência;
2. A alteração da estrutura de funcionamento das administrações públicas, para que se possa melhorar a qualidade dos serviços prestados;
3. A alteração da estrutura de funcionamento do Estado, não porque se pretende melhorar a qualidade dos serviços prestados, mas porque se pretende eliminar os serviços existentes, reduzindo as funções do Estado existentes, nomeadamente, as funções principais do Estado Social.
Aquilo a que estamos a assistir em Portugal é à destruição do Estado Social (última hipótese). O financiamento que se destinaria ao Estado Social é afeto a aplicações que importam ao capital financeiro: sustentação bancária (ratios), cobertura de riscos em operações especulativas; transferências para paraísos fiscais e muitas outras.
O que daqui pode resultar não pode ser senão a destruição maciça do modo de estar e de viver, até aqui adquirido, como resultado de conquistas de muitas décadas. A destruição para que caminhamos pode, de algum modo ser comparada à de uma bomba atómica. Nessa destruição estarão envolvidos não apenas os 100 000 funcionários públicos, mas a grande maioria da população do país.
Teremos que encontrar forma de parar este retrocesso civilizacional. O debate ontem promovido pelo Congresso Democrático das Alternativas em torno do tema “Vencer a crise com o Estado Social e com a Democracia” constitui uma excelente contribuição para a clarificação dos caminhos que importa trilhar.

2 comentários:

  1. Já não bastava o encomendado relatório do FMI. Agora o PM vai buscar a Paris (!) uma encomenda entregue pela OCDE e que, claro, também é sobre a "reforma do Estado".Contém anúncios ou propostas de outras bombas (para continuar em metáforas bélicas), como, por exemplo, esta "bomba de fragmentação" que seria o "limitar" (talvez equivalente a "acabar com")a contratação colectiva, que, apesar das suas fraquezas, ainda serve de escudo protector contra tiros de arbitrariedade ou prepotência vindos de algum (muito?) patronato.

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  2. É como dizes: não se trata, já, de uma guerra local; parece que os combates se verificam em todos os territórios!

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