Na semana que terminou, a
sanha devastadora contida nas medidas de política anunciadas pelo Governo
deixou o país atónito. Tendo em conta outras já anteriormente publicitadas
podemos aí encontrar uma boa imagem do avanço destruidor dos exércitos
germânicos sobre a Europa, durante a 2ª Grande Guerra.
Quero aqui focar-me no anúncio feito por um Secretário de Estado de que estava em preparação a redução
de 100 000 funcionários públicos até ao fim da atual legislatura.
Ouve-se e comenta-se: será
que estou a ficar surdo? O que é que eu entendi mal?
Refeitos da surpresa não
podemos deixar de nos interrogar: será que este Sr. sabe o que está a dizer?
Avaliou convenientemente as consequências de uma tal decisão? E porque não
99 999 ou 100 101, ou 56 784, ou qualquer outro número? Não pretendo justificar ou injustificar a medida, pela maior ou menor precisão do número anunciado, mas chamar a atenção para o fato de que a referência a um número tão preciso não pode ser senão ser um exercício de pura irresponsabilidade política e intelectual. Ao Governo
exige-se que nos explique, como e porque chegou àquele número.
Deixemo-nos, no entanto
destes pormenores e procuremos aproximar-nos de algo que é mais substancial. Vamos
admitir que são 100 000. Recorde-se que este número equivale a cerca de
20% do total dos funcionários. Anunciar este número, ou um outro qualquer, do
modo como tal foi feito, só pode encontrar a sua justificação no pressuposto
ideológico de que tudo o que for função pública é mau e é, também, a raiz do mal. Quanto
maiores forem as baixas, melhor, e não importa, o como, o onde e o timing.
A redução do número dos
funcionários públicos é um passo na estratégia da redução do Estado à sua
expressão mais simples: Defesa, Segurança, Negócios Estrangeiros e pouco mais.
Porquê à sua expressão mais simples?
Os detentores do capital financeiro
compreenderam que podem, hoje, maximizar o seu retorno reduzindo as funções do
Estado, à dimensão de Estado mínimo. Querem convencer-nos de que tudo o que andamos a fazer durante os últimos 80 anos foi um puro engano. As áreas funcionais acima mencionadas são
as únicas que lhes poderão prestar serviços úteis. Do seu ponto de vista, todas as
outras manifestações do Estado mais não são, do que formas ilegítimas de transferência de
rendimentos dos seus bolsos para os dos que menos têm.
A construção do Estado
moderno caracterizou-se pelo desenvolvimento da sua intervenção em domínios que
se tem convencionado designar por áreas sociais: Saúde, Educação, Segurança
Social, mas também, Justiça, e organização e regulação do trabalho, etc. Ao
conjunto destas componentes do Estado designou-se por Estado
Social. Convém compreender o porquê do desenvolvimento destas novas áreas.
Após a Grande Depressão, mas
sobretudo depois do fim da 2ª Grande Guerra, a Europa encontrava-se
completamente devastada. A pobreza e a penúria de toda a espécie atingiam
grande parte da população. Alguma clarividência dos responsáveis políticos de
então permitiu-lhes compreender que a economia não poderia crescer e desenvolver-se
se os serviços básicos de saúde, de educação e de proteção social não pudessem
ser usufruídos por todos os cidadãos.
Foi com este pressuposto que se
foi construindo, pouco a pouco, o “Estado Providência”, ou o Estado de Bem
Estar que, muito justamente, é considerado como uma grande conquista
civilizacional. As funções sociais que o Estado garantia aos cidadãos eram
gratuitas, ou prestadas a preços muito reduzidos. Implicavam, no entanto,
custos que encontravam a sua contrapartida de financiamento num sistema de
impostos progressivos que atingiam mais pesadamente os titulares de rendimentos
mais elevados. Tratava-se de uma espécie de remuneração indireta que ajudava a corrigir a desequilibrada repartição de rendimentos decorrente do funcionamento dos mecanismos de remuneração do mercado.
Entretanto, as práticas de política
económica e social liberal, introduzidas na Europa pela Sr.ª Tachter, mas
continuadas pelos seus sucessores na Grã-Bretanha e em muitos outros países da
Europa, foram o sinal de que o capital tinha entendido que estavam criadas as
condições para voltar ao estádio existente antes dos anos 30 do séc. XX. A
crise iniciada em 2008 mais não veio do que acelerar o processo de destruição
do “Estado Social”. Estavam criadas as condições para recuperar o capital que, ao longo de mais de oito
décadas, tinha financiado o Estado Social através de transferências de rendimentos dos que vivem na
abundância para os que vivem na precariedade.
É a isso que continuamos,
hoje, a assistir, através de métodos que não será exagerado designar por
terrorismo de Estado. Quase sempre as medidas que suportam aquela destruição
escondem-se sob as roupagens da Reforma do Estado. Mas importa averiguar em que é que se poderá estar a pensar quando se usa a designação "reforma", porque o termo reveste-se da maior das ambiguidades.
Tem-se falado de Reforma do
Estado para cobrir conteúdos tão diversos como:
1. A melhoria do funcionamento das administrações
públicas de modo a que os serviços prestados possam ser caracterizados por grande qualidade e eficiência;
2. A alteração da estrutura de funcionamento das
administrações públicas, para que se possa melhorar a qualidade dos serviços
prestados;
3. A alteração da estrutura de funcionamento do
Estado, não porque se pretende melhorar a qualidade dos serviços prestados, mas
porque se pretende eliminar os serviços existentes, reduzindo as funções do
Estado existentes, nomeadamente, as funções principais do Estado Social.
Aquilo a que estamos a
assistir em Portugal é à destruição do Estado Social (última hipótese). O
financiamento que se destinaria ao Estado Social é afeto a aplicações que importam ao capital financeiro: sustentação bancária (ratios), cobertura de riscos em
operações especulativas; transferências para paraísos fiscais e muitas outras.
O que daqui pode resultar
não pode ser senão a destruição maciça do modo de estar e de viver, até aqui
adquirido, como resultado de conquistas de muitas décadas. A destruição para que
caminhamos pode, de algum modo ser comparada à de uma bomba atómica. Nessa destruição estarão
envolvidos não apenas os 100 000 funcionários públicos, mas a grande
maioria da população do país.
Teremos
que encontrar forma de parar este retrocesso civilizacional. O debate ontem
promovido pelo Congresso Democrático das Alternativas em torno do tema “Vencer a crise com o Estado Social e com a Democracia” constitui uma excelente
contribuição para a clarificação dos caminhos que importa trilhar.
Já não bastava o encomendado relatório do FMI. Agora o PM vai buscar a Paris (!) uma encomenda entregue pela OCDE e que, claro, também é sobre a "reforma do Estado".Contém anúncios ou propostas de outras bombas (para continuar em metáforas bélicas), como, por exemplo, esta "bomba de fragmentação" que seria o "limitar" (talvez equivalente a "acabar com")a contratação colectiva, que, apesar das suas fraquezas, ainda serve de escudo protector contra tiros de arbitrariedade ou prepotência vindos de algum (muito?) patronato.
ResponderEliminarÉ como dizes: não se trata, já, de uma guerra local; parece que os combates se verificam em todos os territórios!
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