12 dezembro 2020

Um novo tipo de planeamento: a necessidade de flexibilidade e os novos paradigmas

Economia aberta, espaços integrados e a flexibilidade como método de caminhar

Do que se tem vindo a referir nos posts anteriores, conclui-se facilmente que o planeamento não é um processo fechado no tempo, nem o plano é dado de uma vez por todas. E são diversas as razões por detrás deste processo sempre em construção.

Os imprevistos e imponderáveis surgem agora a cada momento. A todo o tempo as economias são confrontadas com os resultados dos jogos de forças a nível internacional, dos fluxos mais ou menos erráticos que se jogam nesse plano, e de que são exemplo os movimentos financeiros especulativos, o fazer e desfazer de acordos e protecções comerciais, o surgimento de novas regulamentações nos espaços integrados economicamente e que, por isso mesmo, se esperaria fossem mais bem regulados, embora tal não suceda necessariamente.

Com efeito, os centros de decisão não são agora, e apenas, estritamente nacionais, antes havendo que considerar também, em cada processo de concepção e lançamento de políticas públicas, os compromissos estabelecidos com outros parceiros internacionais, especialmente no âmbito de organizações económicas e políticas de pertença. Aqui, a tensão entre objectivos nacionais e grandes desígnios comunitários pode, por vezes, ser grande, especialmente no que respeita aos países economicamente mais débeis. Basta que nos lembremos da “regulação” pela troïka na crise económica anterior e nas consequências que daí decorreram para economias e sociedades como a grega e a portuguesa.

Quer os compromissos assumidos, quer, especialmente, a necessidade de acorrer aos fundos comunitários por aqueles compromissos condicionados, levam a que os Estados Membros tendam a cumprir, com mais ou menos disciplina, as regras do jogo económico ditadas centralmente pelas economias mais fortes, mesmo quando percebem como estas lhes são nefastas. É, portanto, de um processo eminentemente político que se trata.

Ora, os impactos que dali decorrem para as economias e sociedades de cada país não são neutros, pelo contrário, desencadeiam impactos cada vez mais drásticos. E se considerarmos aspectos do que constitui hoje a chamada macroestrutura e as necessárias transições climática e digital, por exemplo, transições de que pretendem ocupar-se os planos Estratégico e o de Recuperação e Resiliência que temos vindo a passar em revista, constatamos que aqueles impactos podem ser ainda mais profundos e imprevisíveis.

Nestas condições, o processo de composição de objectivos na função de preferência social tem de ser muito mais flexível. O que exige que o diálogo e a negociação entre os representantes dos diversos interesses da população tenham de ser mais frequentes e, também, mais bem enquadrados para evitar grandes desvios. Com esse propósito, também a actividade de consultoria social e avaliação do plano, uma vez posto em prática, tem de ser mais permanente e mais apta a corrigir desvios mais prováveis.

Em consequência, a redefinição dos processos de afectação de recursos a objectivos específicos será também mais recorrente, com consequências para os padrões de eficácia e eficiência, enquadráveis agora em intervalos mais amplos. Mas que, a todo o momento, deverão ser objecto de auscultação e escrutínio sociais.

 

O ajustamento e a mobilização permanentes

Já em contextos de maior estabilidade, como nos anos 80 do século anterior, se tinha concluído que a revisão periódica do plano era uma necessidade e deveria constituir uma metodologia de recurso normal do processo de planeamento. Falava-se, então, de planeamento deslizante, procedimento que consistia em refazer os cronogramas do planeamento em função do apuramento dos resultados não concretizados em determinado horizonte temporal, tendo por isso de se alargar o correspondente período de realização dos objectivos.

Nesta fase, tem de se ir mais além. O processo de cenarização, através do qual se delineiam e simulam diversas linhas de evolução possível das economias, atendendo aos vários efeitos aleatórios previsíveis, deve constituir um aspecto central. Como tal, deverá também ser servido por instituições públicas dotadas de especial competência. A estas caberá a concepção e ensaio de modelos macroeconómicos susceptíveis de retratar os diferentes tipos de impactos que se prevêem, aferindo os seus efeitos aos níveis macroeconómico, sectorial e regional. Daí resultarão diferentes cenários possíveis, o que não deverá confundir-se com outras tantas “receitas” alternativas. Muito pelo contrário, os imperativos de flexibilidade impõem agora que as pontes de passagem entre aqueles cenários tenham, igualmente, sido simuladas e se encontrem minimamente estabelecidas, a fim de que as eventuais necessidades de mudança de rumo acarretem o mínimo desperdício possível em termos de tempo e recursos.

Mas será este procedimento suficiente? Não, não é.

Numa sociedade democrática, o acesso e o controlo sociais são ainda mais importantes quanto maior for a flexibilidade dos processos de ajustamento e regulação. Precisamente porque agora é maior o risco de desvio face aos objectivos sociais previamente consensualizados, os processos de revisão periódica do plano têm de prever a institucionalização e intervenção do diálogo social, da auscultação e tomada em consideração das aspirações dos diferentes agentes económicos e sociais e da evolução dinâmica das mesmas. Só assim se conseguirá a social accountability que serve de base às democracias.   

Ora, os roteiros que integram o Plano de Recuperação e Resiliência não revestem estas características. Surgem-nos como demasiado rígidos e taxativos, não prevendo a necessidade de reajustamento e reconfiguração dinâmicos perante os imponderáveis. Nem nada é dito de substancial sobre a forma de (re)negociação e de estabelecimento de compromissos regulares que deve caracterizar os diferentes cenários, aí inexistentes enquanto tal, mas indispensáveis. O que é tanto mais inesperado quanto uma das três dimensões basilares do Plano é a vertente Resiliência, que se desdobra nos roteiros ‘vulnerabilidades sociais’, ‘potencial produtivo e emprego’ e ‘competitividade e coesão territorial’.

Este termo ‘Resiliência’ está na moda e a avaliar pelos documentos da OCDE sobre desenvolvimento sustentável, por exemplo, consistirá mesmo num novo paradigma ou arquétipo. Mas como pode a resiliência – enquanto capacidade de superar o imprevisto e de se readaptar – exercer-se neste quadro de tanta rigidez e sem que sejam conhecidos tanto os mecanismos de reajustamento como as formas de exercício da participação e negociação sociais? Por outro lado, para que se trate de um paradigma realmente novo é indispensável que a lógica do compromisso entre todos os actores, públicos, privados e público-privados constitua uma constante do processo, sob pena de, a não ser assim, se estar perante mais do mesmo. Trata-se, em nossa opinião, de mais um aspecto lacunar destes documentos que estamos agora a passar em revista.

 

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