Economia aberta, espaços integrados e a flexibilidade como método de caminhar
Do
que se tem vindo a referir nos posts
anteriores, conclui-se facilmente que o planeamento não é um processo fechado
no tempo, nem o plano é dado de uma vez por todas. E são diversas as razões por
detrás deste processo sempre em construção.
Os
imprevistos e imponderáveis surgem agora a cada momento. A todo o tempo as
economias são confrontadas com os resultados dos jogos de forças a nível
internacional, dos fluxos mais ou menos erráticos que se jogam nesse plano, e
de que são exemplo os movimentos financeiros especulativos, o fazer e desfazer
de acordos e protecções comerciais, o surgimento de novas regulamentações nos
espaços integrados economicamente e que, por isso mesmo, se esperaria fossem
mais bem regulados, embora tal não suceda necessariamente.
Com
efeito, os centros de decisão não são agora, e apenas, estritamente nacionais,
antes havendo que considerar também, em cada processo de concepção e lançamento
de políticas públicas, os compromissos estabelecidos com outros parceiros
internacionais, especialmente no âmbito de organizações económicas e políticas
de pertença. Aqui, a tensão entre objectivos nacionais e grandes desígnios
comunitários pode, por vezes, ser grande, especialmente no que respeita aos
países economicamente mais débeis. Basta que nos lembremos da “regulação” pela
troïka na crise económica anterior e nas consequências que daí decorreram para
economias e sociedades como a grega e a portuguesa.
Quer
os compromissos assumidos, quer, especialmente, a necessidade de acorrer aos
fundos comunitários por aqueles compromissos condicionados, levam a que os
Estados Membros tendam a cumprir, com mais ou menos disciplina, as regras do
jogo económico ditadas centralmente pelas economias mais fortes, mesmo quando
percebem como estas lhes são nefastas. É, portanto, de um processo
eminentemente político que se trata.
Ora,
os impactos que dali decorrem para as economias e sociedades de cada país não
são neutros, pelo contrário, desencadeiam impactos cada vez mais drásticos. E
se considerarmos aspectos do que constitui hoje a chamada macroestrutura e as
necessárias transições climática e digital, por exemplo, transições de que
pretendem ocupar-se os planos Estratégico e o de Recuperação e Resiliência que temos
vindo a passar em revista, constatamos que aqueles impactos podem ser ainda
mais profundos e imprevisíveis.
Nestas
condições, o processo de composição de objectivos na função de preferência
social tem de ser muito mais flexível. O que exige que o diálogo e a negociação
entre os representantes dos diversos interesses da população tenham de ser mais
frequentes e, também, mais bem enquadrados para evitar grandes desvios. Com
esse propósito, também a actividade de consultoria social e avaliação do plano,
uma vez posto em prática, tem de ser mais permanente e mais apta a corrigir
desvios mais prováveis.
Em
consequência, a redefinição dos processos de afectação de recursos a objectivos
específicos será também mais recorrente, com consequências para os padrões de
eficácia e eficiência, enquadráveis agora em intervalos mais amplos. Mas que, a
todo o momento, deverão ser objecto de auscultação e escrutínio sociais.
O
ajustamento e a mobilização permanentes
Já
em contextos de maior estabilidade, como nos anos 80 do século anterior, se
tinha concluído que a revisão periódica do plano era uma necessidade e deveria
constituir uma metodologia de recurso normal do processo de planeamento.
Falava-se, então, de planeamento deslizante, procedimento que consistia em
refazer os cronogramas do planeamento em função do apuramento dos resultados
não concretizados em determinado horizonte temporal, tendo por isso de se
alargar o correspondente período de realização dos objectivos.
Nesta
fase, tem de se ir mais além. O processo de cenarização, através do qual se
delineiam e simulam diversas linhas de evolução possível das economias,
atendendo aos vários efeitos aleatórios previsíveis, deve constituir um aspecto
central. Como tal, deverá também ser servido por instituições públicas dotadas
de especial competência. A estas caberá a concepção e ensaio de modelos
macroeconómicos susceptíveis de retratar os diferentes tipos de impactos que se
prevêem, aferindo os seus efeitos aos níveis macroeconómico, sectorial e
regional. Daí resultarão diferentes cenários possíveis, o que não deverá
confundir-se com outras tantas “receitas” alternativas. Muito pelo contrário,
os imperativos de flexibilidade impõem agora que as pontes de passagem entre
aqueles cenários tenham, igualmente, sido simuladas e se encontrem minimamente
estabelecidas, a fim de que as eventuais necessidades de mudança de rumo
acarretem o mínimo desperdício possível em termos de tempo e recursos.
Mas
será este procedimento suficiente? Não, não é.
Numa
sociedade democrática, o acesso e o controlo sociais são ainda mais importantes
quanto maior for a flexibilidade dos processos de ajustamento e regulação.
Precisamente porque agora é maior o risco de desvio face aos objectivos sociais
previamente consensualizados, os processos de revisão periódica do plano têm de
prever a institucionalização e intervenção do diálogo social, da auscultação e
tomada em consideração das aspirações dos diferentes agentes económicos e
sociais e da evolução dinâmica das mesmas. Só assim se conseguirá a social accountability que serve de base
às democracias.
Ora,
os roteiros que integram o Plano de Recuperação e Resiliência não revestem estas
características. Surgem-nos como demasiado rígidos e taxativos, não prevendo a
necessidade de reajustamento e reconfiguração dinâmicos perante os
imponderáveis. Nem nada é dito de substancial sobre a forma de (re)negociação e
de estabelecimento de compromissos regulares que deve caracterizar os
diferentes cenários, aí inexistentes enquanto tal, mas indispensáveis. O que é
tanto mais inesperado quanto uma das três dimensões basilares do Plano é a
vertente Resiliência, que se desdobra nos roteiros ‘vulnerabilidades sociais’,
‘potencial produtivo e emprego’ e ‘competitividade e coesão territorial’.
Este
termo ‘Resiliência’ está na moda e a avaliar pelos documentos da OCDE sobre
desenvolvimento sustentável, por exemplo, consistirá mesmo num novo paradigma
ou arquétipo. Mas como pode a resiliência – enquanto capacidade de superar o
imprevisto e de se readaptar – exercer-se neste quadro de tanta rigidez e sem
que sejam conhecidos tanto os mecanismos de reajustamento como as formas de
exercício da participação e negociação sociais? Por outro lado, para que se
trate de um paradigma realmente novo é indispensável que a lógica do
compromisso entre todos os actores, públicos, privados e público-privados
constitua uma constante do processo, sob pena de, a não ser assim, se estar
perante mais do mesmo. Trata-se, em nossa opinião, de mais um
aspecto lacunar destes documentos que estamos agora a passar em revista.
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