09 dezembro 2020

A aparente incompatibilidade entre a dinâmica de incerteza na evolução das sociedades e a necessidade de planeamento

 A aparente incompatibilidade

Do ponto de vista ideológico, o contexto não pode parecer mais adverso ao planeamento. As ideias neoliberais desenvolveram-se de tal modo, e de tal forma se tornaram dominantes, que tudo faria crer que o mercado, os mercados, se tornariam conceptualmente os reguladores por excelência, capazes de repor os equilíbrios diversos; e que, como reverso da medalha, a intervenção de um outro tipo de regulador, designadamente o Estado através dos seus instrumentos, como o plano, só contribuiria para gerar maior ineficácia. Esta onda poderosa e avassaladora, que conseguiu formatar o ensino da economia, as mentalidades dos decisores e as políticas ditas públicas, só podia recusar e desacreditar instrumentos que, caricaturalmente, atribuía às sociedades de direcção central ou, quando muito, remetia para a gestão do capitalismo no após segunda guerra mundial, onde havia que prestar contas ao plano Marshall.

Também sucede que, e agora no domínio dos factos, a complexidade e incerteza crescentes que têm vindo a marcar a evolução das economias e das sociedades nos tempos que correm, parecem condenar ao fracasso qualquer tentativa de planeamento como política pública macro global. E, de certo modo, assim é, se considerarmos o plano como ele era concebido em Portugal no Estado Novo ou em França nos anos 60 e 70, por exemplo. Não é certamente do mesmo tipo de planeamento que as economias e sociedades agora necessitam.

Com a globalização das economias aumentaram os graus de liberdade dos decisores. Começando estes por ser, desde logo, os diferentes estados e as empresas transnacionais que entre si densificam a rede de interacções a cada dia que corre, não se vê, de há muito, que uma qualquer instância internacional seja capaz, se para tal estivesse adequadamente mandatada e apetrechada, de compatibilizar e coordenar as vontades díspares em presença. Não tem esse mandato a ONU, não podia esperar-se que o Fundo Monetário Internacional, por exemplo, desempenhasse esse papel, conotado como está com uma perspectiva ideológica que não é de aceitação comum. Entretanto, a multiplicidade de instituições internacionais que se vieram a desenvolver e, ainda mais, a diversidade de acordos e regimes que elas entre si estabelecem e redefinem a todo o tempo, faz-nos descrer da possibilidade de um regulador internacional e considerar que é ao nível de cada país que o processo de planeamento tem ter o seu enfoque e desenvolvimento, como noutro destes posts se salienta.

Ora, se é um facto que a incerteza e a complexidade tendem a tornar muito mais difícil e exigente qualquer tentativa de planeamento, o certo é que, também por essas razões, ele se torna ainda mais necessário.

Numa sociedade dominada pela informação verifica-se o paradoxo de, devido à incerteza, a informação estar cada vez menos acessível em termos úteis e em tempo real. Os já de si difíceis ajustamentos pelo mercado tornam-se agora impossíveis. Por isso, é necessária uma forma de regulação global, capaz de uma visão integrada das economias e das sociedades, susceptível de abarcar holisticamente todo, ou a maioria, do sistema de interdependências entre as variáveis económicas e sociais... Se servido pelas instituições e agentes para tal capacitados, o planeamento globalmente consensualizado dispõe daquela competência.

 

Exigências das democracias

Por outro lado, uma sociedade democrática tem, ou deve ter, como missão promover o bem-estar dos cidadãos. Bem se percebe que a identificação e promoção deste grande objectivo deva constituir uma atribuição dos decisores nacionais, tão dissemelhantes são as diferentes economias deste ponto de vista. O processo de planeamento procede, desejavelmente, à integração dos objectivos gerais da população, previamente auscultados e discutidos/dialogados, numa função de preferência social. Esta deve, por sua vez, hierarquizar esses mesmos objectivos e afectá-los no espaço e no tempo, escalonando-os por sub-domínios sectoriais, regionais e temporais. Assim, virá a tornar-se mais exequível a afectação recursos-objectivos e também a articulação entre os diferentes horizontes temporais resultará mais consistente.

Naturalmente, nada garante à partida a compatibilidade entre os objectivos diversos da população. Daí que surja a necessidade de uma negociação permanente entre os diversos actores sociais, com vista à realização progressiva dos objectivos previamente definidos e sucessivamente revistos. Com base no diálogo apoiado pelo plano e sua regulação torna-se mais exequível o preenchimento progressivo da função de preferência social, assim se ganhando em eficácia económica e social. Por outro lado, torna-se mais fácil e mais concretizado o processo de compromisso e controlo social conducente à melhor afectação entre recursos e objectivos, assim se contribuindo também para uma maior eficiência. A marca determinante do planeamento deixa de começar por ser, apenas, a fixação de objectivos, para passar a ser a disponibilidade permanente para os ajustamentos e compromissos num ambiente de incerteza, como antes não era conhecido.

Se o mercado visa, essencialmente, ajustamentos tácticos e de curto prazo, quando e se o consegue, o plano tem como objectivo enquadrar a médio prazo o andamento e a regulação da economia e da sociedade. Consistência inter-regional e intertemporal dos objectivos das diferentes populações e afectação eficaz e eficiente dos recursos e objectivos sectorialmente diferenciados constituem, então, o móbil central do plano. Conseguindo-o, através das inevitáveis e sucessivas revisões subsequentes à avaliação regular, estará igualmente a contribuir para o cumprimento parcelar da envolvente estratégica de longo prazo, se esta existir.

A palavra-chave definidora de todo este processo parece ser complexidade. E a gestão desta complexidade, que nas actuais condições só pode ser flexível, vai depender também do contributo das tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Tanto mais que a participação da população interessada é um requisito fundamental para o bom ajustamento do plano, participação essa cuja operacionalização em muito dependerá daquelas TIC, da capacidade da sua utilização e, em suma, do acesso da população às mesmas.

Em resumo, se adequadamente desenvolvido, o processo de planeamento contribuirá para que se alcance o objectivo geral de bem-estar das populações, promovendo ao mesmo tempo a capacitação e o enquadramento das mesmas na construção daquele bem-estar. Por ideologia e incapacidade técnica, o mercado, pelo contrário, induz o apoderamento de um número cada vez menor de indivíduos face à exclusão crescente da população em geral que se vê desapossada dos meios e resultados do processo de produção.

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