A aparente incompatibilidade
Do
ponto de vista ideológico, o contexto não pode parecer mais adverso ao
planeamento. As ideias neoliberais desenvolveram-se de tal modo, e de tal forma
se tornaram dominantes, que tudo faria crer que o mercado, os mercados, se
tornariam conceptualmente os reguladores por excelência, capazes de repor os
equilíbrios diversos; e que, como reverso da medalha, a intervenção de um outro
tipo de regulador, designadamente o Estado através dos seus instrumentos, como
o plano, só contribuiria para gerar maior ineficácia. Esta onda poderosa e
avassaladora, que conseguiu formatar o ensino da economia, as mentalidades dos
decisores e as políticas ditas públicas, só podia recusar e desacreditar instrumentos
que, caricaturalmente, atribuía às sociedades de direcção central ou, quando
muito, remetia para a gestão do capitalismo no após segunda guerra mundial, onde
havia que prestar contas ao plano Marshall.
Também
sucede que, e agora no domínio dos factos, a complexidade e incerteza
crescentes que têm vindo a marcar a evolução das economias e das sociedades nos
tempos que correm, parecem condenar ao fracasso qualquer tentativa de
planeamento como política pública macro global. E, de certo modo, assim é, se
considerarmos o plano como ele era concebido em Portugal no Estado Novo ou em França
nos anos 60 e 70, por exemplo. Não é certamente do mesmo tipo de planeamento
que as economias e sociedades agora necessitam.
Com
a globalização das economias aumentaram os graus de liberdade dos decisores. Começando
estes por ser, desde logo, os diferentes estados e as empresas transnacionais
que entre si densificam a rede de interacções a cada dia que corre, não se vê,
de há muito, que uma qualquer instância internacional seja capaz, se para tal
estivesse adequadamente mandatada e apetrechada, de compatibilizar e coordenar
as vontades díspares em presença. Não tem esse mandato a ONU, não podia
esperar-se que o Fundo Monetário Internacional, por exemplo, desempenhasse esse
papel, conotado como está com uma perspectiva ideológica que não é de aceitação
comum. Entretanto, a multiplicidade de instituições internacionais que se
vieram a desenvolver e, ainda mais, a diversidade de acordos e regimes que elas
entre si estabelecem e redefinem a todo o tempo, faz-nos descrer da
possibilidade de um regulador internacional e considerar que é ao nível de cada
país que o processo de planeamento tem ter o seu enfoque e desenvolvimento,
como noutro destes posts se salienta.
Ora,
se é um facto que a incerteza e a complexidade tendem a tornar muito mais difícil
e exigente qualquer tentativa de planeamento, o certo é que, também por essas
razões, ele se torna ainda mais necessário.
Numa
sociedade dominada pela informação verifica-se o paradoxo de, devido à
incerteza, a informação estar cada vez menos acessível em termos úteis e em
tempo real. Os já de si difíceis ajustamentos pelo mercado tornam-se agora
impossíveis. Por isso, é necessária uma forma de regulação global, capaz de uma
visão integrada das economias e das sociedades, susceptível de abarcar holisticamente
todo, ou a maioria, do sistema de interdependências entre as variáveis
económicas e sociais... Se servido pelas instituições e agentes para tal
capacitados, o planeamento globalmente consensualizado dispõe daquela
competência.
Exigências
das democracias
Por
outro lado, uma sociedade democrática tem, ou deve ter, como missão promover o bem-estar
dos cidadãos. Bem se percebe que a identificação e promoção deste grande
objectivo deva constituir uma atribuição dos decisores nacionais, tão
dissemelhantes são as diferentes economias deste ponto de vista. O processo de
planeamento procede, desejavelmente, à integração dos objectivos gerais da
população, previamente auscultados e discutidos/dialogados, numa função de
preferência social. Esta deve, por sua vez, hierarquizar esses mesmos
objectivos e afectá-los no espaço e no tempo, escalonando-os por sub-domínios sectoriais,
regionais e temporais. Assim, virá a tornar-se mais exequível a afectação recursos-objectivos
e também a articulação entre os diferentes horizontes temporais resultará mais
consistente.
Naturalmente,
nada garante à partida a compatibilidade entre os objectivos diversos da
população. Daí que surja a necessidade de uma negociação permanente entre os
diversos actores sociais, com vista à realização progressiva dos objectivos
previamente definidos e sucessivamente revistos. Com base no diálogo apoiado
pelo plano e sua regulação torna-se mais exequível o preenchimento progressivo
da função de preferência social, assim se ganhando em eficácia económica e
social. Por outro lado, torna-se mais fácil e mais concretizado o processo de
compromisso e controlo social conducente à melhor afectação entre recursos e
objectivos, assim se contribuindo também para uma maior eficiência. A marca
determinante do planeamento deixa de começar por ser, apenas, a fixação de
objectivos, para passar a ser a disponibilidade permanente para os ajustamentos
e compromissos num ambiente de incerteza, como antes não era conhecido.
Se o
mercado visa, essencialmente, ajustamentos tácticos e de curto prazo, quando e
se o consegue, o plano tem como objectivo enquadrar a médio prazo o andamento e
a regulação da economia e da sociedade. Consistência inter-regional e intertemporal
dos objectivos das diferentes populações e afectação eficaz e eficiente dos
recursos e objectivos sectorialmente diferenciados constituem, então, o móbil
central do plano. Conseguindo-o, através das inevitáveis e sucessivas revisões
subsequentes à avaliação regular, estará igualmente a contribuir para o
cumprimento parcelar da envolvente estratégica de longo prazo, se esta existir.
A
palavra-chave definidora de todo este processo parece ser complexidade. E a
gestão desta complexidade, que nas actuais condições só pode ser flexível, vai
depender também do contributo das tecnologias da informação e da comunicação
(TIC). Tanto mais que a participação da população interessada é um requisito
fundamental para o bom ajustamento do plano, participação essa cuja
operacionalização em muito dependerá daquelas TIC, da capacidade da sua
utilização e, em suma, do acesso da população às mesmas.
Em
resumo, se adequadamente desenvolvido, o processo de planeamento contribuirá
para que se alcance o objectivo geral de bem-estar das populações, promovendo
ao mesmo tempo a capacitação e o enquadramento das mesmas na construção daquele
bem-estar. Por ideologia e incapacidade técnica, o mercado, pelo contrário,
induz o apoderamento de um número cada vez menor de indivíduos face à exclusão
crescente da população em geral que se vê desapossada dos meios e resultados do
processo de produção.
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