A
autonomia e a interdependência entre os planos de empresas, sectores e regiões,
face ao plano macro
Resumindo
o que se escreveu anteriormente, diremos que o plano económico e social deve
constituir como que um roteiro de navegação que forneça ao governo a percepção
da globalidade das interacções entre entidades económicas e sociais. Mas também
que lhe permita (e a todos os actores), através dos vários cenários concebidos,
simular os efeitos das medidas de políticas alternativas que é suposto serem
implementadas. E, igualmente, que se institua como um espaço de permanente
negociação entre os parceiros económicos e sociais tendo como referência a
consensualização da função de preferência social. Com efeito, o plano desejável
será económico e social.
Sendo
embora autónomos, os diferentes elementos do sistema de planeamento – governos,
empresas e outras organizações, regiões, sectores… - desenvolvem relações de
interacção recíprocas cujos contornos e efeitos têm de ser mapeados e
articulados. Estas relações, ou interacções, são a todo o momento sujeitas à influência
de imponderáveis, choques exógenos que podem fazê-las afastar-se das
trajectórias constantes dos cenários preferenciais previamente simulados e
consensualizados. Deixando o sistema de interacções entregue a si próprio,
deixando, por exemplo, o mercado a funcionar livremente, tender-se-á para um
processo de desvio sistemático face aos objectivos de coerência global e de não
conflitualidade, ou seja, gerar-se-á entropia no sistema.
E
isto porque as diferentes regiões, sectores de actividade e empresas deterão aspirações
específicas, porque distintos e diversos tenderão a ser os respectivos
problemas e necessidades. Por sua vez, em sede de planeamento dever-se-ão ter
simulado as várias opções de afectação recursos - objectivos correspondentes
àquelas diferentes dimensões. E tanto num como no outro caso se terá procedido,
desejavelmente, ao escalonamento daqueles objectivos, forma de afectação e
resultados previstos, pelos horizontes temporais de curto, médio e longo
prazos.
É,
então, ao plano económico e social, enquanto referencial macro, que cabe a
integração consistente daquela diversidade, tendo em vista essencialmente dois
desígnios:
- o da coerência global do conjunto
na sua evolução dinâmica;
-
o da não conflitualidade entre restrições económicas e bem-estar social, sendo
que numa sociedade democrática este último desígnio não pode ser colocado em
segundo plano.
A
análise de sistemas como método de coerência global – o exemplo da pandemia
A
teoria e a análise dos sistemas constituem domínios de recurso fundamental no
processo de planeamento, porque permitem conceber e promover um quadro global
coerente e de interacções tendencialmente não conflituantes.
Aquele
enquadramento teórico oferece-nos o conceito de reflexividade. Trata-se de uma
propriedade fundamental que permite aos elementos do sistema realizar a
reflexão sobre o seu próprio comportamento, o que também se designa por
autoscopia, e a avaliação dos desvios eventuais entre os resultados e os
objectivos previamente afixados. Nos tempos que correm, esta função é
frequentemente exteriorizada e atribuída, por exemplo, a empresas de
consultoria, como sucede recorrentemente na banca. É mais um intermediário no
sistema, fonte de potencial desvio e desajustamento, que o regulador global
deverá ter em atenção. Na situação de infecção pelo COVID – 19, a reflexividade
pode ilustrar-se, por exemplo, com o exercício sistemático de autodiagnóstico a
que tem que proceder cada unidade de saúde, para confrontar recursos e
objectivos, num ambiente de grande complexidade e incerteza como aquele em que
vivemos.
Outro conceito fundamental é o da interacção
entre os elementos do sistema. Se, ainda na presente situação de pandemia, não
se verificar a indispensável articulação e coordenação das decisões de alocação
de vacinas aos diversos utilizadores que delas precisam, como por exemplo os diferentes
Centros de Saúde, gerar-se-á entropia no sistema. Uma tal coordenação deverá
ser assumida por uma instância de regulação central, como o Ministério da Saúde,
sob pena de, perante deficiências prévias de autodiagnóstico, a tentação de apropriação
excessiva por parte de alguns centros ou regiões tender a sobrepor-se ao
objectivo social de garantia do acesso generalizado às vacinas.
A
fim de evitar que desvios deste tipo sucedam, ou para promover a correcção do
percurso reduzindo a entropia (neguentropia), torna-se indispensável que o
regulador central seja uma entidade dotada da capacidade efectiva de apreensão do
todo (percepção holística) mas também capaz de por em prática as medidas
(políticas públicas) de correcção dos eventuais desvios, o que implica que
disponha de efectivo poder político para se sobrepor a possíveis lobbies.
Por outro lado, tem-se como indispensável a abertura do sistema ao exterior, o
seu meio envolvente, com o qual se estabelecem trocas fundamentais à sua
alimentação: a crítica construtiva e informada, exercida no e pelo exercício de
cidadania constituirá, porventura, o exemplo mais cabal das trocas daquela
natureza.
Refira-se,
de passagem, que constituindo a pandemia um choque exógeno de natureza global,
as suas repercussões atingem uma multiplicidade de países bem como as relações
que eles estabelecem entre si, designadamente ao nível da cooperação
científica, ou, pelo contrário, da concorrência pela descoberta de um novo
medicamento e da vacina. Também aqui faria falta um plano de regulação
supranacional. Apesar dos esforços de coordenação que vêm desenvolvendo, poderão
a OMS ou a CE desempenhar, efectivamente, tal papel? Disporão, de facto, da
capacidade de visão global e, sobretudo, do indispensável poder político para
fazer face aos lobbies? As
multinacionais farmacêuticas poderão sentir-se tentadas a agir com vista a
acaparar margens de lucro elevadas, no que toca ao desenvolvimento de novos
medicamentos, e a não socializar as patentes que descobriram, indo contra o bem-estar
geral da população que ou não tem acesso ou tem de pagar aqueles medicamentos a
um preço exorbitante.
São
os governos dos diversos países que detêm, naturalmente, um papel decisivo neste
contexto. Por isso, a nível nacional seria desejável que houvesse um plano
macro com as características que temos vindo a definir. Continuando com o
exemplo da pandemia, confrontado agora com as novas exigências, é natural que o
sector da saúde exija mais do orçamento público, e/ou de recursos exteriores,
do que o inicialmente previsto. O mesmo se verificando em relação aos
profissionais da área da saúde, mais ou menos especializados. A abertura de
concursos públicos é uma das pechas burocráticas de que sofre o País; poderá
então esperar-se que se venham a pôr em prática, mesmo que a título
excepcional, medidas mais ágeis de recrutamento, incidindo por exemplo sobre
médicos estrangeiros imigrados entre nós e a desempenhar neste momento, muitos
deles, tarefas bastante abaixo das suas competências ou mesmo indiferenciadas?
Como reagirão instituições, como a Ordem dos Médicos, a este tipo de medidas
que, tendo necessariamente que garantir segurança, serão mesmo assim mais
expeditas? Também aqui o plano económico e social seria de grande utilidade por
permitir enquadrar a indispensável negociação social e política.
De
uma forma ou de outra, intervindo o Estado como regulador central, tenderá a
afectar ao sector da saúde recursos que, parcialmente, estaria previsto serem afectos,
por exemplo, à área da cultura. Mas a contenção da pandemia impõe a adopção de
medidas que paralisam, em parte, a economia, a par de outras de confinamento
mais ou menos rigoroso das populações, sendo difícil prever-se o tempo que
demorará até à recuperação. O desemprego aumentará, especialmente nos sectores
mais expostos, e bem sabemos como os agentes da cultura o estão a sofrer
também. Para que as condições de vida da população e a contracção da procura
não atinjam níveis desastrosos, é indispensável que sejam adoptadas políticas
de apoio aos rendimentos, da responsabilidade financeira da segurança social, a
qual se vê, por sua vez, mais penalizada agora face à diminuição da actividade
económica…
O
número e a intensidade dos objectivos parcelares conflituantes tende, assim, a
agravar-se, do mesmo modo que surgem, muito provavelmente, novos motivos de
dissensão, por exemplo entre quem defende a prioridade à economia e quem, ao
contrário, coloca em primeiro lugar as condições sociais e os meios de vida.
Ora, nestas condições, só o plano e as suas instituições podem promover os
novos limiares de coerência, uma vez consensualizados os novos objectivos e
redefinida a função de preferência social.
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