No passado mês de julho foi dado conhecimento público do documento intitulado “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”. Trata-se do resultado de um trabalho sobre cenários para o futuro de Portugal, encomendado pelo Governo ao Prof. António Costa Silva e que, por isso, também tem vindo a ser conhecido como “Plano Costa Silva”.
Porquê uma estratégia
O título do documento é muito claro; não se trata do Plano de Recuperação Económica, mas de uma visão estratégica para esse plano, o que naturalmente, precede a elaboração do plano.
O termo “estratégia”, embora pouco usado na terminologia da planificação macroeconómica, antes dos anos 70, passou a ser uma referência corrente depois desse período. Estratégia passou, então, a surgir com o significado de uma inspiração, um suporte, para o comportamento dos actores no longo prazo. Os planos que múltiplas instituições públicas vieram a elaborar desde então passaram a ter a designação de “planos estratégicos”, mas o seu conteúdo não passava, muitas vezes, de uma inspiração que, de facto, se vinha depois a verificar que não inspirava coisa nenhuma.
Estes planos estratégicos não comprometiam ninguém, mas procuravam mostrar que a instituição que os promovia tinha preocupações de longo prazo. Ora, para que houvesse compromisso melhor seria que em vez de planos estratégicos se elaborassem planos de longo prazo, porque estes, sim, teriam que ter objectivos, recursos, gestão de interdependências, controle de execução e avaliação de resultados.
A visão estratégica do Prof. Costa Silva
A visão estratégica para o Plano Costa e Silva tem, no entanto, toda a oportunidade, sobretudo, porque se apresenta como uma visão estratégica para um plano que ainda tinha ou tem que ser elaborado, com vista à recuperação e resiliência de Portugal.
A visão estratégica do Prof. Costa Silva, para um horizonte de 10 anos, decompõe-se em 10 eixos estratégicos verticais que são unidos através de um eixo horizontal onde estão presentes as principais preocupações e desafios do nosso tempo: descarbonização, transição energética, sustentabilidade, protecção da biodiversidade e protecção do capital natural.
Esta visão estratégica possui um conjunto de boas ideias, interligadas que são essenciais para que possa haver planeamento, mas o seu conjunto, só por si, não pode ser considerado um plano. Foi isso que justificou o título da Tomada de Posição, aqui publicada há dias: “As boas ideias e o planeamento. Tomada de Posição”.
Os eixos verticais (páginas 58 e 72 do documento) cobrem os grandes desafios sectoriais que se colocam, hoje, à economia e à sociedade. Não é meu propósito apresentar e analisar, aqui, estes eixos estratégicos e, muito menos, relevar as coerências ou incoerências que os possam atravessar, embora se deva acrescentar que se trata de um exercício de extrema relevância paro o futuro, como poucas vezes se terá feito em Portugal.
Virtualidades e insuficiências da visão estratégica
O que me importa aqui relevar são, antes, alguns dos pressupostos em que assenta a explicitação da “visão estratégica”. O autor começa por dizer-nos que o trabalho de elaboração da visão estratégica não pode ignorar que ele é feito num contexto de crise pandémica. É a partir desse contexto que, no uso regenerativo dos recursos e dentro dos limites dos sistemas naturais, é proposto um modelo de crescimento que se quer mais justo, próspero e eficiente, .
Enuncia, seguidamente, os constrangimentos estruturais e as oportunidades que se oferecem a Portugal, de modo a poder enunciar as oportunidades e vantagens competitivas de Portugal.
Tanto ou mais importantes que estes constrangimentos é, a meu ver, o ponto de partida do autor, segundo o qual, em Portugal, as decisões de política económica, têm andado à deriva, por interesses de natureza conjuntural, sem cimento suficiente para poderem constituir instrumentos de construção, de futuro e de rede de ligação dos comportamentos das opções dos agentes públicos com os dos agentes privados (mercado) que, se tiverem o enquadramento adequado, serão motor de progresso e de eficiência.
Para que esse desiderato possa ser alcançado tem que se promover o diálogo que conduza ao equilíbrio desejável entre Estado e Mercado. De acordo com declarações do autor somos muito mais um país de “eus” com prejuízo da valorização do “nós” que também deveríamos ser. A lucidez que conduz à compreensão da visão sistémica da sociedade e das interdependências que ela encerra, alerta-nos para a necessidade de termos de colaborar muito mais, em termos individuais e institucionais.
Temos uma visão estratégica para o futuro de Portugal? A visão é clara e perspicaz, mas para poder ser considerada como um compromisso com o futuro falta-lhe a adesão dos que hão-de ser seus protagonistas. A proposta de um só homem, qualquer que seja a sua experiência e qualificações, não pode, por golpe de magia, ser transformada, ou tomada, como proposta de e para todo um país.
Não vale dizer que o documento foi posto em discussão pública e que foram tidas em consideração todas as sugestões feitas. Não vale, porque o período de discussão pública foi curto e as contribuições individuais nunca poderão ser consideradas como contribuições sistémicas. Não vale, ainda, porque o resultado das sugestões feitas foi incorporado num anexo ao documento, sem que tenha sido feita uma verdadeira integração de ambos. Por isso se terá que continuar a trabalhar para que de uma proposta individual se passe para uma proposta societária.
Admitamos que temos uma visão estratégica. Já serviu ou vai servir para alguma coisa? Claro que sim, mas com vista a podermos chegar a um instrumento de compromisso societário, que constitui a essência primeira do planeamento, ainda muito trabalho temos pela frente.
A visão estratégica e o Plano de Recuperação e Resiliência
Dir-se-á, mas então esta visão estratégica não enformou já a elaboração do Plano de Recuperação e Resiliência 2021-2026? Recorde-se que este foi um documento preparado, apressadamente, para poder ser apresentado pelo Sr. Primeiro Ministro em Bruxelas, como marcação de presença para mobilização dos fundos da tão propalada “bazuca”. Talvez, dadas as condições da sua preparação, não houve tempo suficiente para no seu conteúdo endogeneizar as opões da visão estratégica. É verdade que nele são feitas várias referências ao trabalho do Prof. Costa Silva, no entanto, não basta encontrar estas referências para podermos dizer que existe uma verdadeira endogeneização.
Uma última interrogação. A Visão Estratégica do Prof. Costa e Silva abrange o período 2020-2030. O Plano de Recuperação e Resiliência cobre um subconjunto deste período, os anos 2021-2026. É legítimo dizer que uma estratégia para um horizonte de 10 anos pode ser transposta, sem mais, para um horizonte de 5 anos? Pura e simplesmente, não pode, embora seja razoável que a estratégia deste possa encontrar fundamento na estratégia do primeiro.
Não nos sintamos tranquilos. Em matéria de planeamento muito trabalho há, ainda, que desenvolver. Se assim não for, os trabalhos promovidos podem ser belos exercícios literários, mas não são verdadeiros instrumentos de progresso social, na justiça e na solidariedade.
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