02 abril 2021

Pandemia e políticas austeritárias: o que nos mostram os dados...

 

Embora ainda estejamos a sofrer, e provavelmente venhamos a sofrer ainda mais, as consequências económicas e sociais da pandemia provocada pelo COVID-19, já começa a ser possível obter alguns resultados empíricos sobre as melhores e piores respostas dos decisores públicos a esta situação crítica.

Destaco aqui o artigo “Austerity Raises COVID Deaths”, de Servaas Storm, publicado pelo Institute for New Economic Thinking em 26 de Março último, através do qual pode verificar-se que, em linhas gerais, a pandemia provocou maior número de casos fatais nos países onde mais se fizeram sentir políticas de tipo austeritário.

Este artigo, no qual a situação portuguesa é também referida, no âmbito dos países da OCDE, merece em nossa opinião uma atenção particular devido ao seu contributo para erradicar muitas ideias feitas do pensamento económico dominante. E conclui mesmo por uma desautorização sistemática de muitos daqueles princípios tidos como “vacas sagradas” pela ortodoxia.

É importante que se considere, antes de mais, que a pandemia afecta mais ou menos as economias e as sociedades não só devido às medidas de política de curto prazo mas, essencialmente, em função de problemas estruturais pré-existentes. Assim, uma canalização reforçada de recursos públicos para famílias mais carenciadas produzirá tanto menos efeito quanto maior for a desigualdade socio-económica pré-existente à pandemia. E, do mesmo modo, uma injecção volumosa e repentina de verbas de apoio aos sistemas de saúde tenderá a esboroar-se por entre as ruínas desse mesmo sistema provocadas por anos de insuficiente investimento público em manutenção, renovação, qualificação e recrutamento de recursos humanos, por exemplo.

Baseado em evidência estatística, e bem documentado graficamente, o artigo chega às seguintes conclusões:

- não há nenhum trade off, de facto, entre salvar a economia e salvar as pessoas.  Acrescento que o bem-estar das pessoas deve constituir o fim último de uma economia e sociedade democráticas; 

- as sociedades onde os poderes públicos mais gastaram em medidas para contrabalançar a pandemia e também nas correspondentes políticas redistributivas foram precisamente aquelas onde se verificaram menos mortes; EXCEPTO nas situações onde a desigualdade social e económica prévia à pandemia era muito elevada. O nosso país é apresentado como um dos exemplos desta situação;

- torna-se agora bem visível o contra senso que constituiram as políticas de austeridade fiscal e de desinvestimento continuado nos sectores sociais, agora totalmente em ruptura mesmo que inundados de dinheiro a curto prazo;

- é falaciosa a existência de uma relação directa entre contenção das despesas públicas com a pandemia, imediatas e de tipo redistributivo, e saneamento fiscal: várias economias, como a francesa e a italiana, entre outras, viram défice e dívida públicos aumentarem a par de despesas públicas com a pandemia relativamente contidas. 

O artigo salienta ainda a importância da despesa agregada, apoiada em adequadas políticas redistributivas, para a redução das proporções da inevitável recessão. E chama a atenção para o papel que a banca e o sistema de crédito deverão ter na reanimação da economia, por grande que seja a tentação do sistema financeiro de reagir em sentido contrário. Finalmente, salienta que uma política fiscal progressiva associada a medidas de revalorização salarial constituirá uma forma muito positiva de intervenção pública, em vários níveis: atenuando a tentação de excesso de liquidez e contribuindo para uma repartição mais equitativa dos rendimentos, estigma estrutural de boa parte das economias em observação.

Em suma, é toda uma revolução no pensamento macroeconómico mainstream que tem de ser posta em prática. Ou as consequências da pandemia arriscar-se-ão a ser incontroláveis.

 

 

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3 comentários:

  1. Mas parece-me haver aqui um problema nessa "revolução do pensamento macroeconómico mainstream".É que o conflito entre a urgência conjuntural dos apoios a perda de rendimentos salariais e de micro, médios empresários e a necessidade estrutural de combinação de fiscalidade progressiva e valorização salarial será um conflito entre horizontes de tempo e perspectivas "táticas" e estratégicas. A não ser que os apoios sejam já desenhados e implementados com sentido estratégico.

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  2. Muito obrigada pelo seu comentário, Meu Caro Amigo: não tinha ainda reparado nele.
    Tem razão no que diz: os apoios urgentes de curto prazo serão tanto mais necessários, substanciais e também ...ineficazes quanto mais e por maid tempo se tenha feito sentir a ausência de uma estratégia de longo prazo...

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  3. Muito obrigada pelo seu comentário, Meu Caro Amigo: não tinha ainda reparado nele.
    Tem razão no que diz: os apoios urgentes de curto prazo serão tanto mais necessários, substanciais e também ...ineficazes quanto mais e por maid tempo se tenha feito sentir a ausência de uma estratégia de longo prazo...

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