Em
artigo da edição de ontem do jornal Público, um Professor da Faculdade de Belas
Artes chamava a atenção para os riscos da campanha encetada pelo Ministério da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior intitulada “Skills 4 pós-COVID –
Competências para o Futuro” (sic)[1]. Tendo constatado que,
para além das sessões de divulgação on line
já realizadas, surgira entretanto um documento escrito, se bem que em versão
preliminar, entendemos ser de nos debruçarmos sobre o mesmo.
À
primeira vista, pareceria tratar-se de uma intervenção essencialmente de curto
prazo, visando a resposta à crise desencadeada pela presente pandemia. E mesmo
assim, o que aí se lê já seria preocupante. Mas é-o ainda mais porquanto em
diversos momentos se refere no documento uma intenção de intervir estruturalmente
nas articulações entre os sistemas de Ciência, de Ensino Superior e das entidades
públicas e empresariais. E se explicitam, de entre os principais objectivos, o
de “Empregar melhor (…)” e “(…) conciliar(ando) a oferta de cursos e a
introdução de práticas inovadoras de ensino e aprendizagem com as competências
requeridas pelo mercado de trabalho”. Não conseguimos encontrar, em todo o
documento, mais do que uma mera referência ao objectivo científico, em
abstracto, nada se dizendo sobre as dimensões ética, de aprofundamento
científico e estímulo à investigação, de desenvolvimento humanista, de
responsabilidade social da formação superior, de formação crítica e plural…
Tudo
indica estarmos, uma vez mais, perante uma deriva funcionalista da concepção do
Ensino Superior que faz do ajustamento ao mercado de trabalho a principal razão
de ser da Universidade. Esta convicção reforça-se quando lemos que esta
iniciativa estará intimamente associada a diagnósticos das necessidades de
qualificação entretanto desenvolvidos em outros programas e projectos[2]. E não nos deixa
praticamente margem para dúvidas quando vemos insistir-se tantas vezes na
prioridade às “formações modulares, curtas e micro-credenciais”, na formação
profissionalizante do ensino superior e no “Reforço generalizado de formações
pós-graduadas de âmbito profissional, em estreita colaboração com empregadores,
públicos e privados …”. Não falta, sequer, uma menção de importância às
actividades de “up-skilling” e “re-skilling” dos anteriores diplomados de modo
a um melhor reajustamento às novas exigências dos mercados de trabalho. Como se
de formação profissional de alto nível se tratasse. E, mesmo quando se referem
as necessidades de formação em competências transversais, cognitivas, sociais e
emocionais, de imediato se acrescenta que estas são cada vez mais valorizadas
pelo mercado de trabalho no qual a capacidade de transformação e adaptação são
indispensáveis.
Importa
perguntar: Deve o Ensino Superior ignorar o que se passa no mercado de
trabalho?
Não,
não deve! E não o faz. De há muito que as universidades se abrem ao tecido
económico envolvente. E que aí procuram os interlocutores e os informantes
privilegiados sobre a natureza e características dos perfis de diplomados que as
empresas e outras instituições empregadoras procuram. Aliás, vai-se mesmo muito
mais longe e cada vez mais, estabelecendo-se parcerias de negócios entre as
instituições do ensino superior e o mundo empresarial, nacional e internacional,
o qual vem assegurando crescentemente boa parte do financiamento deste nível de
ensino. E, naturalmente, assim se tendendo para uma dimensão cada vez maior da
faceta mercantil dos ensinos universitário e politécnico…
Mas,
até aqui, o ensino superior –
especialmente o público - tem-se estribado na sua missão de desenvolvimento e
aprofundamento científicos, no incentivo e estímulo à investigação fundamental
e não só aplicada, na concepção e aplicação da inovação pedagógica, como tão
adequadamente soube fazer em resposta à pandemia… Neste documento, a total ausência
de invocação desta missão fundadora, bem como de qualquer das suas componentes,
é confrangedora.
Em
boa verdade, estamos a correr o risco de deixar de ter ensino superior na sua
verdadeira acepção.
[1] João Cruz, “A utilidade do vírus no Ensino Superior”, Público, 5 de Outubro de 2020.
[2] Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) e EY-Augusto Mateus (2019).”Evolução da procura empresarial e necessidades de qualificação do capital humano” e OCDE (2018). “Labour Market Relevance and Outcomes – LMRO”.
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