Tem já 48 anos a fundação do 1º dia do ano como Dia da Paz, depois Dia Mundial da Paz. Devemos a iniciativa ao Papa Paulo VI que, através de uma mensagem inovadora, entendeu dirigir-se não apenas aos católicos, mas a todos os homens de boa vontade, incentivando-os a serem construtores da verdadeira Paz, sustentada pela verdade, pela justiça, pela liberdade e pelo amor. Desejou, ainda, que o dia 1 de Janeiro viesse a dominar o processar-se da história no futuro. Assim veio a acontecer, nos 48 anos seguintes, tendo cada um dos Papas escolhido, para cada um, um tema específico, cada um deles constituindo como que uma condição de construção da verdadeira Paz.
A palavra dos Papas sempre constituiu um apelo à humanidade como um todo mas, certamente, que terá tido impacto mais ou menos imediato em determinadas situações vividas por certas comunidades, em particular. Para nós portugueses, a primeira mensagem de Paulo VI foi particularmente assertiva. Recordemos a visita do Papa à Índia em 1964 (alguns anos depois da anexação dos territórios indianos sobre administração portuguesa), que provocou reações violentíssimas por parte do governo português de então. A mensagem de 1968 foi mais uma pedra no charco que impedia a construção da Paz entre os portugueses. Recordemos que estávamos na fase mais acesa da guerra colonial; falar, então, de Paz, equivalia a ser-se apelidado de traidor. Lembremos, ainda, que foi Paulo VI quem, no Vaticano recebeu os três principais dirigentes dos movimentos independentistas das colónias. Estas iniciativas eram fraturantes, mas tiveram o caráter profético de mostrar que era por aí que passava a construção da Paz sustentável.
Há 48 anos que os papas se vêm pronunciando sobre os fundamentos da construção da paz e, apesar disso, as mensagens dos dias da Paz continuam a ter a maior das atualidades. Quer isso dizer que não perderam a sua eficácia. Longe disso, por um lado, porque não sabemos qual seria o diagnóstico da Paz caso não tivessem existido as mensagens; por outro, porque a atualidade revela, também, que a perversão das mentes do mal não cessa de se sofisticar e porque a guerra sempre foi e continuará a ser fonte de acumulação de riqueza para alguns e destruição de vida para muitos.
Na sequência da sua Exortação em Davos, em que recordou que a Paz só pode ser obtida se fundada na Justiça e se for assumida como responsabilidade de todos e cada um, o Papa Francisco envia-nos, este ano, a sua segunda mensagem sobre o Dia Mundial da Paz. A primeira, em 2014, centrou-se sobre a fraternidade, enquanto fundamento e caminho para a Paz. Este ano, Francisco centrou a sua mensagem sobre a indignidade humana, constituída pelas novas formas de escravatura que campeiam e se normalizam em múltiplos países do mundo, em particular, nos países desenvolvidos, em que a nossa “boa consciência” já considerava o mal erradicado. Francisco diz-nos que, sob novas formas, a escravatura está aí à vista de todos e que só o caminho da verdade, da justiça, da liberdade e do amor, de todos e com todos, pode ser a estratégia para a sua superação e para a garantia da Paz.
A mensagem, à semelhança do que tinha acontecido com os seus predecessores, é dirigida a todo o povo de Deus mas, também, a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões.
O Papa tem presente as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais e deixa um apelo a que nos comportemos de forma digna da nossa humanidade, salientando uma aspiração essencial da natureza humana à fraternidade e a consciência de que todos formamos uma mesma família e devemos construir relações interpessoais e societárias inspiradas pela liberdade, pela justiça e pela caridade.
A mensagem do Papa Francisco para 2015 convida-nos, ainda, a tomar consciência dos flagrantes desvios em relação a este desígnio que podemos observar no mundo contemporâneo que é capaz de globalizar a economia e as finanças, a escravidão e a indiferença, consentindo o flagelo da exploração do homem pelo homem sob múltiplas formas, mas que é incapaz de globalizar a fraternidade.
A mensagem é, também, um apelo a que revisitemos os nossos comportamentos individuais e coletivos, bem como as bases em que fundamentamos as nossas instituições, tomando por critério de referência a palavra de Deus «já não escravos, mas irmãos» (Carta de Paulo a Filémon).
Apesar de abolida à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nunca é demais relembrar, que a escravatura, sob as antigas e novas formas, continua a existir em várias partes do mundo, acoplada às mais variadas situações: de trabalhadores nos mais diversos setores económicos e sociais, dos migrantes, de pessoas obrigadas a prostituírem-se, do tráfego de pessoas para a remoção e comércio de órgãos, de pessoas transformadas em pedintes e correios de droga, ou crianças objeto de comércio para adoção e, finalmente, os prisioneiros transformados em combatentes de causas que não desejam.
Do mesmo modo que há 48 anos, também hoje, as palavras do Papa têm um profundo eco no nosso País, onde se assiste à passividade de um Estado que se demite das suas responsabilidades com o bem comum, na senda, aliás, de políticas europeias contrárias aos princípios fundadores da União Europeia. A coesão social, persistentemente construída durante as últimas décadas, está, de novo, ameaçada, pondo em causa não apenas situações que se consideravam irreversíveis mas também valores de solidariedade que os portugueses consideravam como seu património inalienável e que, em tantas situações do passado constituíram motivo de orgulho nacional (regresso das colónias nos anos 70, independência de Timor, etc.). De novo temos:
- Situações de verdadeira “escravatura” que nos deveriam envergonhar e deveriam mobilizar os nossos esforços para suscitar formas de as combater;
- Trabalhadores e trabalhadoras a quem são negados direitos fundamentais de remuneração condigna, higiene e segurança no trabalho, estabilidade no emprego, tempo de lazer e condições de conciliação da sua vida profissional com a vida pessoal e familiar;
- Imigrantes sem documentação sujeitos ao livre arbítrio de patrões sem escrúpulos, obrigados a aceitar baixos salários e mantidos em condições de vida sem dignidade;
- Pessoas, incluindo crianças, abusadas sexualmente;
- Pessoas obrigadas a prostituírem-se, incluindo menores de ambos os sexos;
- Crianças e jovens raptados;
- Situações de recrutamento de crianças, adolescentes e jovens para servirem como correios de droga;
- Situações de extrema pobreza em que se incluem os que são remetidos para situações de “sem-abrigo”;
- A escravatura que representa a excessiva duração dos horários de trabalho, a irregularidade dos mesmos em algumas profissões, o abuso do trabalho extraordinário sem a devida compensação, etc.
Não se deve esquecer, também, o que se passa em outras partes do mundo onde, como Francisco sublinha, para além das formas de exploração antes mencionadas, outras podem ser mencionadas, por ex., a de menores e adultos que são objeto de tráfico e comercialização para a remoção de órgãos ou recrutados à força para servirem como soldados ou formas disfarçadas de adoção internacional. As zonas de conflito regionais têm-se vindo a multiplicar de forma perigosa, com situações de desprezo da vida humana para zonas de sombra que há muito julgávamos ultrapassadas.
Estes problemas assumem tal magnitude que não podem ser abordados numa perspetiva individual, antes exigem formas de intervenção de política pública, através do aperfeiçoamento de leis nacionais e internacionais e da criação de serviços ad hoc. Contra a globalização da escravidão têm que se mobilizar todas as boas vontades, individuais e coletivas, com vista a eliminar o mal da exploração do homem pelo homem e globalizar a solidariedade e a fraternidade. De outro modo, que resposta daremos à pergunta: ”que fizeste do teu irmão?”
O ambiente de indiferença de muitos e a sensação e expressão de impotência de muitos outros, perante as desigualdades - que se tornam ainda mais gritantes face a escândalos de corrupção ou de ostentação - fazem com que nesse ambiente dificilmente se sinta que somos irmãos. apesar de muitos gestos individuais, familiares e institucionais felizmente o contrariarem.
Todos os cidadãos e, em particular, as nossas comunidades cristãs, paroquiais ou religiosas, devem empenhar-se de forma muito ativa na denúncia destas novas formas de escravatura e na prestação de auxílio efetivo às suas vítimas.
Só com homens e mulheres livres, orgulhosos da sua dignidade, da sua fraternidade e da sua condição humana, é que se pode aspirar à vivência da Paz, ao progresso, à harmonia e à felicidade entre os homens.
A palavra dos Papas sempre constituiu um apelo à humanidade como um todo mas, certamente, que terá tido impacto mais ou menos imediato em determinadas situações vividas por certas comunidades, em particular. Para nós portugueses, a primeira mensagem de Paulo VI foi particularmente assertiva. Recordemos a visita do Papa à Índia em 1964 (alguns anos depois da anexação dos territórios indianos sobre administração portuguesa), que provocou reações violentíssimas por parte do governo português de então. A mensagem de 1968 foi mais uma pedra no charco que impedia a construção da Paz entre os portugueses. Recordemos que estávamos na fase mais acesa da guerra colonial; falar, então, de Paz, equivalia a ser-se apelidado de traidor. Lembremos, ainda, que foi Paulo VI quem, no Vaticano recebeu os três principais dirigentes dos movimentos independentistas das colónias. Estas iniciativas eram fraturantes, mas tiveram o caráter profético de mostrar que era por aí que passava a construção da Paz sustentável.
Há 48 anos que os papas se vêm pronunciando sobre os fundamentos da construção da paz e, apesar disso, as mensagens dos dias da Paz continuam a ter a maior das atualidades. Quer isso dizer que não perderam a sua eficácia. Longe disso, por um lado, porque não sabemos qual seria o diagnóstico da Paz caso não tivessem existido as mensagens; por outro, porque a atualidade revela, também, que a perversão das mentes do mal não cessa de se sofisticar e porque a guerra sempre foi e continuará a ser fonte de acumulação de riqueza para alguns e destruição de vida para muitos.
Na sequência da sua Exortação em Davos, em que recordou que a Paz só pode ser obtida se fundada na Justiça e se for assumida como responsabilidade de todos e cada um, o Papa Francisco envia-nos, este ano, a sua segunda mensagem sobre o Dia Mundial da Paz. A primeira, em 2014, centrou-se sobre a fraternidade, enquanto fundamento e caminho para a Paz. Este ano, Francisco centrou a sua mensagem sobre a indignidade humana, constituída pelas novas formas de escravatura que campeiam e se normalizam em múltiplos países do mundo, em particular, nos países desenvolvidos, em que a nossa “boa consciência” já considerava o mal erradicado. Francisco diz-nos que, sob novas formas, a escravatura está aí à vista de todos e que só o caminho da verdade, da justiça, da liberdade e do amor, de todos e com todos, pode ser a estratégia para a sua superação e para a garantia da Paz.
A mensagem, à semelhança do que tinha acontecido com os seus predecessores, é dirigida a todo o povo de Deus mas, também, a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões.
O Papa tem presente as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais e deixa um apelo a que nos comportemos de forma digna da nossa humanidade, salientando uma aspiração essencial da natureza humana à fraternidade e a consciência de que todos formamos uma mesma família e devemos construir relações interpessoais e societárias inspiradas pela liberdade, pela justiça e pela caridade.
A mensagem do Papa Francisco para 2015 convida-nos, ainda, a tomar consciência dos flagrantes desvios em relação a este desígnio que podemos observar no mundo contemporâneo que é capaz de globalizar a economia e as finanças, a escravidão e a indiferença, consentindo o flagelo da exploração do homem pelo homem sob múltiplas formas, mas que é incapaz de globalizar a fraternidade.
A mensagem é, também, um apelo a que revisitemos os nossos comportamentos individuais e coletivos, bem como as bases em que fundamentamos as nossas instituições, tomando por critério de referência a palavra de Deus «já não escravos, mas irmãos» (Carta de Paulo a Filémon).
Apesar de abolida à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nunca é demais relembrar, que a escravatura, sob as antigas e novas formas, continua a existir em várias partes do mundo, acoplada às mais variadas situações: de trabalhadores nos mais diversos setores económicos e sociais, dos migrantes, de pessoas obrigadas a prostituírem-se, do tráfego de pessoas para a remoção e comércio de órgãos, de pessoas transformadas em pedintes e correios de droga, ou crianças objeto de comércio para adoção e, finalmente, os prisioneiros transformados em combatentes de causas que não desejam.
Do mesmo modo que há 48 anos, também hoje, as palavras do Papa têm um profundo eco no nosso País, onde se assiste à passividade de um Estado que se demite das suas responsabilidades com o bem comum, na senda, aliás, de políticas europeias contrárias aos princípios fundadores da União Europeia. A coesão social, persistentemente construída durante as últimas décadas, está, de novo, ameaçada, pondo em causa não apenas situações que se consideravam irreversíveis mas também valores de solidariedade que os portugueses consideravam como seu património inalienável e que, em tantas situações do passado constituíram motivo de orgulho nacional (regresso das colónias nos anos 70, independência de Timor, etc.). De novo temos:
- Situações de verdadeira “escravatura” que nos deveriam envergonhar e deveriam mobilizar os nossos esforços para suscitar formas de as combater;
- Trabalhadores e trabalhadoras a quem são negados direitos fundamentais de remuneração condigna, higiene e segurança no trabalho, estabilidade no emprego, tempo de lazer e condições de conciliação da sua vida profissional com a vida pessoal e familiar;
- Imigrantes sem documentação sujeitos ao livre arbítrio de patrões sem escrúpulos, obrigados a aceitar baixos salários e mantidos em condições de vida sem dignidade;
- Pessoas, incluindo crianças, abusadas sexualmente;
- Pessoas obrigadas a prostituírem-se, incluindo menores de ambos os sexos;
- Crianças e jovens raptados;
- Situações de recrutamento de crianças, adolescentes e jovens para servirem como correios de droga;
- Situações de extrema pobreza em que se incluem os que são remetidos para situações de “sem-abrigo”;
- A escravatura que representa a excessiva duração dos horários de trabalho, a irregularidade dos mesmos em algumas profissões, o abuso do trabalho extraordinário sem a devida compensação, etc.
Não se deve esquecer, também, o que se passa em outras partes do mundo onde, como Francisco sublinha, para além das formas de exploração antes mencionadas, outras podem ser mencionadas, por ex., a de menores e adultos que são objeto de tráfico e comercialização para a remoção de órgãos ou recrutados à força para servirem como soldados ou formas disfarçadas de adoção internacional. As zonas de conflito regionais têm-se vindo a multiplicar de forma perigosa, com situações de desprezo da vida humana para zonas de sombra que há muito julgávamos ultrapassadas.
Estes problemas assumem tal magnitude que não podem ser abordados numa perspetiva individual, antes exigem formas de intervenção de política pública, através do aperfeiçoamento de leis nacionais e internacionais e da criação de serviços ad hoc. Contra a globalização da escravidão têm que se mobilizar todas as boas vontades, individuais e coletivas, com vista a eliminar o mal da exploração do homem pelo homem e globalizar a solidariedade e a fraternidade. De outro modo, que resposta daremos à pergunta: ”que fizeste do teu irmão?”
O ambiente de indiferença de muitos e a sensação e expressão de impotência de muitos outros, perante as desigualdades - que se tornam ainda mais gritantes face a escândalos de corrupção ou de ostentação - fazem com que nesse ambiente dificilmente se sinta que somos irmãos. apesar de muitos gestos individuais, familiares e institucionais felizmente o contrariarem.
Todos os cidadãos e, em particular, as nossas comunidades cristãs, paroquiais ou religiosas, devem empenhar-se de forma muito ativa na denúncia destas novas formas de escravatura e na prestação de auxílio efetivo às suas vítimas.
Só com homens e mulheres livres, orgulhosos da sua dignidade, da sua fraternidade e da sua condição humana, é que se pode aspirar à vivência da Paz, ao progresso, à harmonia e à felicidade entre os homens.
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