Consta que
Voltaire terá criado Candide para ironizar e pôr a nu o excessivo optimismo de
Leibniz, seu contemporâneo. Num período de grandes tumultos e catástrofes
naturais, como o terramoto de Lisboa de 1755, o Dr. Pangloss, tutor de Candide
(instruía em metafísico-teológico-cosmoloni-gologia…),
educou o seu pupilo num mundo imaginário, “o melhor dos mundos possíveis”, já
que “Things cannot be otherwise than they are, for since everything is made to
serve an end, everything necessarily serves the best end”…
Vem isto a
propósito da enumeração do que o Primeiro Ministro chamou reformas estruturais,
na prelecção com que acompanhou a
apresentação das Linhas Orientadoras do programa eleitoral da coligação PSD-CDS
(http://www.portugal.gov.pt/pt/reformas.aspx). Dois pequenos excertos
ajudam-nos a situar melhor a questão. Disse o Primeiro Ministro:
O nosso programa de reformas teve
e tem [três grandes] objectivos:
-…
- democratizar
a sociedade e a economia portuguesas, quebrando os privilégios injustificados,
anulando os protecionismos que favoreciam apenas alguns, reduzindo as rendas
excessivas e alargando a todos a participação na vida económica;
- …
E
continuou:
· Reformámos todas as grandes áreas da
governação: da Justiça às Forças Armadas; da Concorrência à Educação; da
Administração Pública aos Fundos Europeus; da Saúde à Fiscalidade. Reformámos a
economia, o Estado e as Instituições. Fizemo-lo com sentido estratégico (…).
Tal como Pangloss, o
Primeiro Ministro faz-nos crer que vivemos num mundo imaginário. E ficamos a
ver bem o que nos espera:
- a continuação da quebra
dos privilégios injustificados?
Só se se refere aos
imprudentemente anunciados, e muito mal desmentidos, cortes futuros (além dos
passados) nas pensões e à continuidade da flexibilização e depressão salariais,
“privilégios” em que os reformados e a classe média portuguesa têm vivido nos últimos
anos… Já que a “redução das rendas excessivas”, como as do sector energético ou
das PPP, ainda não se vislumbram no horizonte. “Alargando a todos a
participação económica” só poderá interpretar-se como reduzindo drasticamente o
desemprego massivo que tem marcado dolorosamente, como todos sabemos, a nossa
sociedade nesta legislatura… Mas com que passe de mágica tenciona (tenciona
mesmo?) o Governo fazê-lo? Garante que o fará “na medida em que de nós depender”…
Ora, também as medidas de austeridade que nos conduziram a este dramático
desfecho dependeram, em grande medida, do Governo actual, no seu afã de se
tornar ainda melhor aluno face aos imperativos da troïka que suplantou em larga
medida…
- e as reformas de “todas
as grandes áreas da governação …”?
No que respeita à Justiça
e à Saúde, por exemplo, o cidadão comum não consegue senão ver, e ser vítima,
da incompetência em que consistiu a reforma dos tribunais e do processo
informático que lhe esteve associado, condenando como bodes expiatórios dois
funcionários de base, já que o poder político ao assumir de responsabilidades
disse nada. Os processos avolumam-se nos tribunais como os doentes nas
urgências hospitalares, face a magistrados incapazes de dar vazão a tanto
dossier e a jovens médicos de aluguer, contratados à pressa por empresas
privadas, eles próprios vítimas de exploração.
- e quanto à Educação?
Quererá o Primeiro Ministro
significar por “reformas estruturais”, feitas “com sentido estratégico”, a
destruturação total do sistema de educação e formação da população adulta? A
hesitação política entre o combate ao centralismo e o desvio municipalista que
agora parece ter-se tornado a coqueluche? A incapacidade, de facto, de reformar
profundamente os currículos e programas de ensino, contrapondo-lhe a legislação
avulsa e estapafúrdia que permanentemente dá o dito por não dito, como no que
respeita ao Inglês no primeiro ciclo – que, na recentíssima versão, se propõe
vir a ser acompanhado pelo ensino do Latim e do Grego…? A falta de preparação
para enveredar por uma apreciação e revisão críticas dos programas de formação
de docentes e educadores, substituindo-a por uma fiscalização, a jusante e via
exame, dos conhecimentos que os docentes efectivamente não terão tido mesmo
quando formados em escolas públicas?
Muito mais se poderia acrescentar
neste último domínio. Muito se analisou, propôs e discutiu no Projecto Pensar a
Educação. Portugal 2015, da iniciativa deste Grupo Economia e Sociedade, como
consta do espaço próprio neste blogue.
Mais não iremos
desenvolver agora. Resta-nos pensar, que tal como Pangloss face a Cândido, nos
querem fazer crer que vivemos no melhor dos mundos e que outras alternativas
não existem.
E resta-nos, sobretudo,
combater contra isso.
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