1. Justificação
Tem vindo o Grupo Economia e Sociedade, da Comissão Nacional Justiça e Paz a preparar e a levar a público a sua reflexão sobre a crise e a necessidade de procurar novos rumos para a economia. É disso exemplo o Manifesto Para uma Nova Economia, apresentado a subscrição pública no final ano passado e que recolheu uma ampla adesão.
Entre outras dimensões da presente crise, a exigir reflexão, preocupam-nos as ameaças que vêm sendo dirigidas aos modelos europeus de protecção social adoptados pelos diferentes Estados membros da União Europeia e defendidos pelos Tratados e instâncias comunitárias. Aqueles modelos, sendo diversos, tinham em comum a missão de tornar o bem-estar das pessoas tão independente quanto possível da aleatoriedade e das forças de mercado.
Reconhece-se que as novas realidades socioeconómicas emergentes impõem ajustamentos à forma como se pode atingir aquele objectivo, mas é imperioso que tal não conduza ao desmantelamento do Estado Social, mormente quando o futuro que se pode antever exigiria, antes, o seu reforço: as despesas sociais, agora olhadas quase exclusivamente como um custo, são fundamentais na promoção da estabilidade politica e social, ao mesmo tempo que são também factor de crescimento da economia e como tal hão de continuar a ser consideradas como um investimento.
Em particular, a arquitectura e a gestão dos sistemas de saúde são um elemento nuclear na promoção do bem-estar individual e colectivo, pelo que devemos estar atentos à observação das suas tendências de evolução, para que, atempadamente, se previnam e atalhem os erros já cometidos e, prontamente, se restabeleça a marcha na boa direcção.
Tal como na generalidade dos países desenvolvidos, também entre nós o sistema nacional de saúde tem vindo a evoluir no sentido de um crescente envolvimento da prestação privada de cuidados de saúde, sem que se tenham adoptado medidas que garantam a sua adequada articulação com o Serviço Nacional de Saúde (S.N.S.). A ausência de uma delimitação rigorosa de fronteiras entre o público e o privado ameaça o sistema no seu conjunto.
Por outro lado, a necessidade de contenção orçamental no muito curto prazo, que nos é imposta, pode determinar medidas que se arriscam a pôr em causa o ganho civilizacional que foi alcançado em 1979 com a criação do S.N.S. que muitos peritos e instâncias internacionais consideram exemplar em termos de concepção e com resultados muito positivos no nível de saúde dos portugueses.
Porque se trata de uma questão da maior relevância, a sociedade civil não pode, nem deve, ficar à margem deste processo que lhe diz respeito em primeiro lugar: está em causa o seu bem-estar assim como o futuro dos seus filhos e o dos seus velhos, a quem todos devemos solidariedade.
Por todas estas razões, entendeu o Grupo Economia e Sociedade ser oportuna uma reflexão alargada sobre a actual situação do Sistema Nacional de Saúde, os desafios que este enfrenta e as opções que importa tomar. É com esse objectivo que elaboramos o presente texto e, agora, o divulgamos. Temos a consciência de que se trata de um documento que não esgota as questões relacionadas com o direito à saúde, mas acreditamos que contem um conjunto válido e fundamentado de tópicos que merecem, desde já, um amplo debate e tomada de posição pública.
2 - A Reforma dos Sistemas de Saúde Europeus
Desde o inicio da década de 90 do século passado, países europeus que tinham já alcançado objectivos de cobertura universal dos cuidados de saúde com qualidade elevada, começaram a reformar os seus sistemas de saúde, em linha com o crescente domínio de politicas liberais, defensoras do papel central dos mercados em matéria de eficiência e da redução dos encargos sociais por parte do Estado de modo a reduzir as despesas públicas e, assim, libertando recursos para a economia de mercado.
Por outro lado, factores diversos, tais como a evolução tecnológica, o envelhecimento da população e, sobretudo, o aumento dos níveis de vida, tendiam a provocar maiores gastos com a saúde e faziam crescer o seu respectivo peso no PIB.
Em 1994, no âmbito da U.E., os Estados-membros comprometeram-se a reformar os seus sistemas de saúde, respeitando três objectivos: a igualdade de acesso, a garantia da qualidade dos cuidados e a viabilidade financeira daqueles sistemas.
Terá também contribuído para acelerar as reformas dos sistemas nacionais de saúde a pressão exercida por uma parcela da população que, podendo pagar cuidados de saúde privados, queria aceder, sem limitações, aos mais recentes progressos da medicina.
Por influência do pensamento neo-liberal, o caminho seguido para as reformas foi o da introdução da concorrência entre prestadores de cuidados no sector público e privado, com o argumento de que assim se obtinha maior eficiência e eficácia e se resolvia a questão das listas de espera, um dos problemas dos S.N.S..
A experiência tem mostrado que o recurso aos mecanismos de mercado tem sido feito sem a necessária ponderação, e sem ter na devida conta que a concorrência na prestação dos cuidados de saúde é, muitas vezes, fonte de despesas excessivas por parte dos particulares e do próprio Estado com consequente agravamento de desigualdades, em prejuízo do direito universal à saúde .
A crise financeira desencadeada em 2007 e com ela toda uma série de efeitos económicos e sociais, vieram trazer novos problemas ao S.N.S., como nos dá conta o Relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS): A crise está a afectar a coesão social em muitos países, reduzem-se as opções de escolha dos cidadãos, prevendo-se assim um aumento da procura de serviços públicos.
Considerando a pressão exercida sobre os governos para a contenção da despesa pública, o que não deixará de afectar os recursos dos S.N.S., é de recear um retrocesso quanto ao acesso e à qualidade dos cuidados, se não se conseguirem alcançar ganhos de eficiência. Para alguns analistas, as estratégias para mitigar o impacto da crise devem ser encaradas como oportunidades de reforma dos sistemas de saúde e sua legitimação junto das comunidades e não apenas um exercício de equilíbrio entre receitas e despesas.
Como sublinha Bruno Palier, a principal questão a enfrentar é, de facto, uma arbitragem difícil entre quatro objectivos fundamentais: igualdade de acesso aos cuidados, qualidade dos cuidados, viabilidade financeira, satisfação da liberdade e do conforto, tanto dos utentes como dos agentes prestadores de cuidados.
E, porque não é possível conseguir tudo isto em simultâneo, há que tornar claras para as pessoas as consequências das diferentes escolhas, designadamente a escolha da liberdade e do conforto em detrimento da igualdade.
3– O S.N.S.: crise, cortes orçamentais, eficiência e participação.
É este também o panorama em Portugal, onde medidas avulsas vão sendo tomadas no domínio da saúde, a prestação privada de cuidados aumenta, ilustrando bem a preferência dos grandes investidores pelo sector não transaccionável, com elevados lucros empresariais, enquanto o serviço público se debate com cortes orçamentais, podendo conduzir à perda ou ao enfraquecimento de valores tão fundamentais como o da coesão social.
Sakellarides enuncia com clareza no seu livro Novo Contrato Social da Saúde – Incluir as Pessoas, o que pode ser a resultante de cortes cegos susceptíveis de afectar, de forma imprevisível e incontrolável, o acesso das pessoas aos cuidados de saúde e aos apoios de que necessitam para a prevenção da doença e para a promoção e protecção da saúde, para além de acarretarem maior injustiça social no financiamento da saúde e ineficiências no funcionamento do sistema irredutíveis a vários níveis. Por isso, defende uma outra estratégia em que a participação das pessoas é a tónica dominante.
O S.N.S., que é uma rede de serviços de saúde articulados e complementares, apoiados solidariamente pelos contribuintes através do Orçamento de Estado, terá que fazer face a um duplo desafio: por um lado, será obrigado a adoptar medidas de contenção de custos; por outro, terá que preparar-se para uma procura crescente, visto que, para muitas pessoas, a possibilidade de pagar cuidados privados de saúde deixará de existir. Acresce que tudo se conjuga – maior desemprego, pobreza e insegurança quanto ao futuro – para que a própria saúde individual acabe por ser afectada, induzindo, também, maior procura de cuidados.
Sem exagero, pode afirmar-se que vivemos um tempo em que estão em risco princípios básicos do S.N.S., em termos de equidade, solidariedade e inclusividade. A menos que, como alguns sustentam, esta seja uma oportunidade de reformar o sistema, seguindo uma metodologia de maior envolvimento dos agentes da saúde e dos cidadãos, associando-os ao levantamento das necessidades, ao debate acerca dos motivos e da orientação das reformas para que estas não desvirtuem o que é essencial no S.N.S..
A alimentar esta esperança está a opinião favorável que, de modo geral, a população portuguesa tem acerca do desempenho do S.N.S. e o valor que atribui ao que dele espera em termos de segurança e bem-estar . Iniciativas relativamente recentes como a da criação da Rede de Cuidados Continuados ou a das Unidades de Saúde Familiar foram bem acolhidas.
Temos também a convicção de que a percepção das pessoas sobre o seu direito constitucionalmente protegido de acesso a cuidados de saúde de boa qualidade se torna particularmente visível quando se assiste ao agravamento de factores socioeconómicos desestabilizadores, ao mesmo tempo que, pouco a pouco, os apoios do Estado Social vão sendo reduzidos e cada vez mais selectivos: é bem sintomática a viva reacção popular a algumas reformas recentes, que vieram alertar para a necessidade de processos decisórios mais participados.
O princípio constitucional de que o Serviço Nacional de Saúde tem gestão descentralizada e participada (Artigo 64º, nº4) está ainda longe de aplicação suficiente.
Outro efeito dos cortes orçamentais, igualmente preocupante, é o possível aumento dos sinais de insatisfação por parte dos prestadores de cuidados no S.N.S., com resultados – que já se estão a notar – na migração para fora do sistema, incentivada por disparidades de remuneração e/ou condições de trabalho, alteração do regime de pensões de reforma, etc.
De tal forma os cortes orçamentais são potencialmente perigosos para uma cobertura universal dos sistemas de saúde que a Directora Geral da O.M.S. aconselha aos países o seguinte: … Antes de olhar para onde cortar nos gastos em saúde, olhem primeiro para as oportunidades de aumentar a eficiência, recomendando, nomeadamente, melhores práticas de procurement, uso mais vasto de produtos genéricos, melhores incentivos aos prestadores de cuidados e maior controlo sobre procedimentos administrativos e financeiros. Estima a O.M.S. que entre 20% e 40% de todos os gastos em saúde são desperdiçados por ineficiência. Em Portugal, o Tribunal de Contas estimou o desperdício resultante da não utilização e da utilização indevida ou abusiva de medicamentos em, pelo menos, 25%.
Entre os domínios que carecem de revisão urgente destacam-se os seguintes:
a) - As Parcerias Público-Privadas
O lançamento em 2002 de um vasto programa de parcerias público-privadas (P.P.P.) para a construção e gestão de hospitais do S.N.S. veio a revelar-se uma opção insuficientemente ponderada. O Tribunal de Contas, que tem vindo a acompanhar este programa, refere que o Estado optou pela implementação de um modelo de parceria complexo e sem paralelo no campo internacional, no âmbito de um Ministério – o da Saúde – que não possuía experiência prévia em parcerias público-privadas.
Um aspecto fundamental para justificar o recurso às P.P.P., que é o da demonstração da vantagem desta alternativa face ao empreendimento directo pelo Estado, não foi acautelado com o rigor que se impunha. Entre as fragilidades apontadas, esteve a falta de clareza das peças concursais e a insuficiência na sua elaboração por parte do comparador público.
Acresce que a avaliação das dificuldades levantadas por estas P.P.P. levou já a restringi-las à construção dos hospitais, excluindo do seu âmbito a gestão hospitalar. Em todo o caso, a magnitude dos encargos futuros decorrentes destas parcerias impõe que elas sejam objecto de renegociação, o mais profunda possível.
b) - As Convenções
A crescente complexidade das relações económicas entre os serviços de saúde e os operadores privados convencionados tem suscitado problemas que a Entidade Reguladora da Saúde expõe nos seus relatórios e nas tomadas de posição difundidas através dos meios de comunicação social.
Nos últimos anos, a maioria dos processos naquela área envolveu acordos ou convenções dos prestadores de cuidados de saúde com os seus financiadores (S.N.S., A.D.S.E. e outros subsistemas).
Para além dos prejuízos financeiros para os utentes, importa salientar o impacto (difícil de quantificar) sobre as finanças públicas que decorre de práticas incorrectas, nomeadamente os preços desajustados das convenções e o seu âmbito mal definido, as irregularidades na facturação, a indução artificial da procura quando existe financiamento de terceiros.
c) - A despesa com medicamentos
O elevado peso da despesa pública (e também dos encargos por parte das famílias) com os medicamentos tem vindo a justificar, nos países desenvolvidos, a adopção de medidas de contenção, que variam consoante a forma como está organizada e regulada a prestação de cuidados de saúde.
A prescrição preferencial de medicamentos genéricos (ou daqueles que, tendo o mesmo efeito terapêutico, são menos dispendiosos) é uma prática corrente: em certos casos, já atinge 50% das prescrições.
Em Portugal, o encargo do S.N.S. com medicamentos tem registado, nos últimos anos, um grande aumento: de cerca de 1.000 milhões de euros em 2000, aproximou-se de 1.600 milhões em 2009, suportando o utente, neste ano, 723,5 milhões de euros ou seja quase metade. A despesa per capita com medicamentos é, também, elevadíssima quando comparada com a de outros países europeus, como se conclui com base em dados do Infarmed . Com efeito, o esforço financeiro português com medicamentos é o dobro do holandês, mais do dobro do dinamarquês e também muito superior ao francês, belga, alemão, finlandês, sueco e austríaco. Por isso, mal se compreenderá que, entre nós, aquele mesmo caminho de redução dos custos com medicamentos possa ser entravado por interesses corporativos, mesmo que estes se apresentem sob a capa de sérias razões de natureza científica que, verdadeiramente, não existem.
d) - Outros factores de ineficiência
Alguns outros factores afectam negativamente a eficiência do nosso S.N.S. e merecem consideração.
A título de exemplo, referimos os seguintes:
- Uma atenção demasiado focada nas situações de doença, menorizando o pilar da promoção da saúde que deveria envolver uma multiplicidade de actores sociais num processo participativo organizado visando uma cultura de responsabilização pessoal;
- A falta de comunicação entre Centros de Saúde e Hospitais da informação (escrita e de imagem) sobre os processos clínicos, conduzindo a duplicação inútil de meios complementares de diagnóstico. Acresce que não é suficientemente conhecida e divulgada a capacidade do S.N.S. neste domínio, o que ocasiona gastos desnecessários junto de outros prestadores;
- A Autoridade Reguladora da Saúde chama a atenção, no seu Relatório de 2008, para os “cogumelos privados” de oferta, quase exclusivamente pelos mesmos profissionais de saúde do serviço público, configurando um padrão de duplo emprego muito generalizado;
- A mesma Entidade, no seu Relatório de 2009, refere que o principal problema sistémico detectado nesse ano foi a falta de cumprimento pelos prestadores dos horários definidos;
- Responsáveis hospitalares têm chamado a atenção para a subutilização de instalações e equipamentos disponíveis, por exemplo, os blocos operatórios.
Aumentar a eficiência do S.N.S. é, pois, uma das vias possíveis para minimizar o impacto e a dimensão das restrições orçamentais e evitar que se tomem opções erradas, ditadas por politicas cegas de contenção de custos, designadamente um “racionamento” drástico da oferta ou o recurso a maiores co-pagamentos, contrários à equidade no acesso.
Sintetizando:
Conhecem-se razoavelmente os principais factores explicativos das insuficiências do nosso sistema de saúde, competindo aos políticos e aos especialistas estabelecer objectivos, metas e instrumentos em ordem a corrigi-las. Tal deverá ser feito através de um processo participado, em que se tornem claros os ganhos para o conjunto da população e não apenas apresentados os resultados de compressão de custos.
Sempre que possível, deveriam ser incentivadas propostas de iniciativas locais, apresentadas por entidades públicas, privadas ou do terceiro sector, tanto mais que os cuidados de proximidade podem contribuir, de forma significativa, para reduzir a pressão sobre estruturas pesadas como são as hospitalares. Em termos organizativos seria desejável recuperar a figura das Comunidades Locais de Saúde, envolvendo Centros de Saúde, Escolas, locais de trabalho, Segurança Social e cidadãos.
Em paralelo, devem os profissionais de saúde ser incentivados a uma maior participação responsável no esforço comum de alcançar a maior qualidade dos serviços que prestam com a maior eficiência dos recursos disponíveis.
4 - Mercado e Saúde
Um princípio que defendemos na reforma no S.N.S. é o papel insubstituível do Estado: os cuidados de saúde não podem, por várias razões, ser objecto de comércio, como se de um qualquer bem se tratasse
Como muito bem concluía Kenneth J. Arrow na sua análise publicada em 1963 , o mercado da saúde é bem distinto de um mercado concorrencial, dadas as características particulares de que aqueles cuidados se revestem, nomeadamente a natureza irregular e imprevisível da procura, o custo associado à situação de doença (inclusivamente quando daí resulta a incapacidade de ganhar o sustento), o comportamento esperado do médico, naturalmente diferente de um qualquer vendedor, a incerteza quanto à qualidade do produto (a recuperação da doença é tão imprevisível como a sua incidência), as restrições à oferta, exigindo o cumprimento de certas condições (através do licenciamento) e as práticas relativas ao estabelecimento de preços, muito dependentes dos rendimentos dos doentes, no limite, preço nulo para indigentes.
O facto de só uma pequena parcela da população poder pagar certos cuidados médicos, que o seu estado de doença torna imperativos, deve sempre merecer a atenção de uma sociedade preocupada com o bem-estar geral da sua população, ainda que as soluções encontradas possam ser diversas.
É certo que existem diferentes sistemas de saúde, reflexo, em grande parte, de diferentes posições ideológicas, nem sempre com um fundamento científico ou baseado em resultados de experiência empírica. Esta mostra que alguns aspectos parecem incontroversos: um sistema generalizado de seguros privados de saúde é bem mais dispendioso e menos capaz de responder às necessidades de cuidados de saúde de uma população, pois as empresas privadas defendem o seu lucro, seleccionando as populações de menor risco, reduzindo ao máximo as prestações daqueles cuidados, ao mesmo tempo que, para tal, despendem verbas elevadas em apoios administrativos e jurídicos e em acções de marketing para captação de maior número de clientes.
A este propósito, Paul Krugman sintetiza (…) o seguro privado despende basicamente muito dinheiro em actividades socialmente destruidoras. E acrescenta que (…) não há exemplos de cuidados de saúde satisfatórios baseados nos princípios de mercado livre, por uma razão simples: nos cuidados de saúde o mercado livre não funciona de todo.
Dowbor chama também a atenção para a necessidade dos serviços sociais – e da saúde, em particular – serem prestados pelo sector público, de forma descentralizada e participativa, pois a alternativa de prestação capitalista apenas beneficia uma minoria que a pode pagar. De resto, tratando-se de uma área de consumo colectivo, é mesmo duvidoso que aquela alternativa possa, no limite, ser satisfatória, mesmo para os mais ricos, pois, argumenta Dowbor, não havendo sistemas sociais generalizados, os micróbios não dão importância ao tamanho da conta bancária e tampouco os mosquitos.
É, pois, necessário olhar o sistema de saúde no seu conjunto, como uma cadeia de cuidados, e não extrapolar eventuais ganhos de eficiência obtidos pela prestação privada em determinado ponto do sistema, para, com base nisso, argumentar a favor da privatização. Acresce que a determinação daqueles ganhos dificilmente pode ser rigorosa, nomeadamente porque há recursos, que são apropriados pelos prestadores privados, mas que não são contabilizados nos seus respectivos custos: por exemplo, a formação no S.N.S. de profissionais de saúde que depois transitam para o sector privado com a qualificação naquele obtida. O mesmo se poderia dizer dos custos com a investigação em saúde ou com a prevenção e educação para a saúde a cargo do sector público.
Em síntese, entendemos que:
• A função do Estado como prestador nuclear de serviços de saúde é insubstituível.
• Um sistema de saúde deve assegurar que esteja disponível toda a gama de cuidados, tanto preventivos como curativos, numa lógica de prestação de um bem social, que maximiza o bem estar individual e atende, em simultâneo, às externalidades que os bons cuidados de saúde propiciam ao conjunto da sociedade.
• À iniciativa privada caberá um papel complementar na prestação de alguns cuidados de saúde, mas não são os mecanismos de mercado que podem determinar um sistema de saúde.
5 - Financiamento e Equidade
A despesa com a saúde em Portugal atingiu, em 2008, 16,4 mil milhões de euros e é, maioritariamente, financiada pela Administração Pública (65,6%) , sendo também apreciável a despesa privada das famílias (28%). As despesas das famílias com a saúde aproximaram-se, em 2007, de 6 mil milhões de euros e sabe-se que o seu peso no total do consumo final das famílias tem vindo a aumentar.
É de salientar que os pagamentos directos (co-pagamentos e pagamentos a prestadores privados) pelas famílias em Portugal são estimados entre os mais elevados da U.E., o que, de acordo com as conclusões de estudos internacionais, se revela factor de regressividade no financiamento dos cuidados de saúde, ou seja, o peso da despesa com saúde é relativamente mais elevado no caso das famílias de baixos rendimentos . Também os benefícios fiscais por gastos de saúde (em redução nos últimos anos), acentuam aquela regressividade na medida em que são os contribuintes mais afluentes que deles mais podem beneficiar. O mesmo efeito regressivo tem sido atribuído aos subsistemas do S.N.S. dado que a sua cobertura mais beneficia aquele mesmo sector da população.
Desta situação resulta que os benefícios da prestação de cuidados de saúde, através do S.N.S. não estão a ser distribuídos de forma equitativa pela população portuguesa. Citando a mesma fonte, é referido um estudo da O.C.D.E. onde se lê que Portugal tem dos níveis mais altos de desigualdade por rendimento na utilização de serviços médicos (…) e a maior desigualdade em cuidados especializados entre os 17 países.
Quando se constata uma situação financeira difícil no sector da saúde, que os possíveis ganhos de eficiência só por si não resolverão, estes factos não podem deixar de ser ponderados, pois, caso contrário, a universalidade de acesso ao S.N.S. pode ficar muito comprometida por soluções imediatistas e aparentemente simples. Com efeito, propostas de aumento generalizado dos co-pagamentos pelas famílias no momento da prestação de cuidados pelo S.N.S., acentuariam a já existente falta de equidade.
Por outro lado, a alternativa desses co-pagamentos por acto médico serem graduados consoante os rendimentos das pessoas, consubstancia uma opção de desvio ao princípio geral do pré-pagamento pela via da tributação, considerado o mais equitativo e eficiente , pois, neste caso, é o rico que subsidia o pobre e o saudável o doente. Acresce que não é seguramente quando a doença surge o melhor momento para exigir o pagamento dos cuidados de saúde.
Também não se julga aceitável exigir um pagamento dos doentes se os tratamentos de que necessitam são particularmente onerosos e não existe alternativa para eles.
Outras propostas poderiam passar por tributação específica sobre bens nocivos à saúde (à semelhança do que sucede com o álcool e o tabaco) ou por agravamento de impostos sobre bens de luxo, espectáculos ou serviços de carácter ostentatório, pelo menos enquanto subsistissem graves dificuldades financeiras no S.N.S., ao mesmo tempo que seriam implementadas medidas tendentes a aumentar a sua eficiência. Ou, ainda, pela negociação, no âmbito de um novo contrato social da saúde (conforme defendido por Sakellarides), de fontes complementares de financiamento.
Em qualquer caso, julgamos que as soluções para aumentar os recursos financeiros sem prejudicar a equidade e criar barreiras de acesso, devem sempre ter em linha de conta a complexidade do sistema de saúde português, nomeadamente a forma como nele se articulam os subsistemas públicos e respectivo financiamento, bem como o apoio financeiro público a operadores privados. Defendemos que as prestações dos contribuintes que alimentam o Orçamento do Estado devem ter aplicação no financiamento de regimes de prestação de cuidados de saúde de acesso geral.
6 – A Regulação do Sector da Saúde
Tendo presente que o sistema de saúde português se caracteriza por ser bastante segmentado, com múltiplos subsistemas públicos, uma componente privada significativa e em crescimento, com fronteiras pouco definidas, a exigência aos reguladores de saúde (que são muitos) para que façam prevalecer o bem comum sobre interesses particulares, nem sempre terá encontrado soluções adequadas.
De um modo geral, o que é esperado do nosso sistema regulatório da saúde é que sejam alcançados os objectivos essenciais seguintes, definidos pela O.M.S.:
• melhorar o nível de saúde da população, actuando sobre os múltiplos factores que o podem influenciar;
• garantir o acesso generalizado a cuidados de saúde de qualidade;
• assegurar a justiça no financiamento da saúde, para que não recaia sobre os mais pobres um maior encargo proporcional.
Quanto ao primeiro objectivo – a melhoria do nível de saúde – ele implicaria, dada a multiplicidade de factores que para ele podem contribuir, não só uma efectiva cooperação intersectorial, como, numa formulação mais exigente, a integração da dimensão saúde em todas as politicas públicas.
É um facto que, se no passado, a mudança de regime em 1974 e consequente elevação do nível de vida e de educação, bem como a criação do S.N.S., foram factores convergentes para a melhoria dos indicadores de saúde, existem hoje motivos para antever um efeito contrário. Justificar-se-ia, por isso, dar maior atenção ao impacto previsional sobre a saúde de outras políticas sectoriais.
Se a capacidade da regulação para alcançar o segundo objectivo enunciado fosse medida pelo número de entidades a quem ele é atribuído, teríamos entre nós um forte sistema regulatório. Infelizmente não é o caso.
Com efeito, a opinião do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, no seu Relatório de Primavera de 2010, é bastante crítica e este respeito quando afirma que: A regulação da saúde em Portugal não está regulada” e que existe, por vezes, sobreposição de papeis pelas diferentes entidades reguladoras.
Também tem sido criticado o carácter essencialmente normativo da regulação da saúde, sem que haja a preocupação de assegurar o envolvimento dos agentes a quem se dirige, sendo certo que será o seu respectivo comportamento que, no final, ditará os bons ou os maus resultados. A insuficiente adesão às regras e procedimentos definidos permitiu ao Observatório concluir que existe um défice de regulação da gestão. Há que reconhecer que os mecanismos de regulação formal, só por si, não conduzem aos melhores resultados se não existir uma cultura de regulação nas organizações, o que implicaria explicitar os resultados que se pretendem alcançar, avaliar periodicamente o caminho percorrido e corrigir os desvios que possam existir.
Parece-nos que o terceiro objectivo, o de natureza mais política entre os três, continua nebuloso: não existe ainda um consenso acerca da natureza do sistema de saúde que projectamos no futuro, qual a delimitação de poderes e obrigações entre o público e o privado e se este é ou não complementar. Ou seja, falta clareza ao enquadramento do próprio sistema regulador.
É impossível que o desempenho da regulação seja satisfatório quando o discurso político oscila ao sabor dos factores ideológicos dominantes ou da conjuntura, por vezes dissonante face às posições assumidas pelas entidades a quem se dirige, quer públicas quer privadas. Inclusive, os valores fundamentais da universalidade, acesso a cuidados de qualidade, a equidade e a solidariedade têm vindo a ser objecto de interpretações diversas.
7. Conclusão
Está por fazer um debate sério e democraticamente conduzido acerca do que se pretende com a reforma do nosso S.N.S. e em que termos devemos assegurar a sua viabilidade financeira.
Nesta nossa reflexão, que muito beneficiou do recurso a diferentes fontes acreditadas e de que nos fizemos eco, quisemos também dar expressão às preocupações do cidadão comum, que estima e valoriza o serviço nacional de saúde e o contributo dado à melhoria da saúde dos portugueses nos últimos trinta anos, reconhece o esforço e o empenho dos seus profissionais, aprecia a qualidade com que funcionam alguns serviços mas não ignora as deficiências e ineficiências de muitos outros e deseja vê-las superadas, admite que o sector privado devidamente regulado possa dar o seu contributo, mas receia que os interesses de grupos financeiros ou de certas categorias profissionais se sobreponham ao bem comum e aproveitem da presente crise para desmantelar o benefício civilizacional que o serviço nacional de saúde representa.
O cidadão comum deseja preservar o S.N.S. como um bem público e parte integrante do modelo civilizacional europeu e, assim sendo, a respectiva sustentabilidade deve ser devidamente assegurada, de modo a ter presente não só as necessidades do momento presente como as gerações futuras.
Destacamos, ainda, o alcance de uma cultura de responsabilização pessoal pela saúde individual, de participação dos cidadãos e dos profissionais de saúde na avaliação contínua do sistema e seu aperfeiçoamento, de exigência, transparência e rigor na regulação.
Grupo Economia e Sociedade
31 de Maio de 2011