O
Orçamento de Estado já não o é.
Uma tomada de posição do Grupo Economia e
Sociedade
1. Apreciação geral
A proposta de Orçamento do
Estado para 2015, que contará, antecipadamente, com a aprovação da maioria
parlamentar, não traz novidades substantivas relativamente aos orçamentos
anteriores, os quais foram elaborados sob coação dos credores representados na
Troika e eram defendidos pelos seus autores com esse argumento de imposição
externa, um argumento compreensível, ainda que não inteiramente defensável.
Ao contrário do que seria
necessário e expectável, se tivesse sido feita uma avaliação dos efeitos das
políticas de austeridade seguidas nos últimos anos, não se vê, neste orçamento,
o início da criação de uma sólida base para o desenvolvimento económico
sustentável em anos futuros. Continua a faltar uma estratégia de
desenvolvimento com objectivos e metas bem definidos e com os seus devidos
reflexos no investimento público, na política de salários e de repartição de
rendimento, no emprego, no bem-estar e qualidade de vida das pessoas, na
erradicação da pobreza, na sustentabilidade ambiental e na coesão territorial e
social.
O Governo insiste em subestimar
o preceito constitucional de enquadramento efectivo do OE nas Grandes Opções do
Plano, fazendo destas um exercício assente em pressupostos teóricos que
reflectem uma clara opção ideológica acerca da bondade dos mercados conjugada
com uma concepção de estado mínimo, que inclui a paulatina redução do âmbito do
estado social e a progressiva alienação da prestação dos serviços sociais
públicos (educação, saúde, segurança social) ao capital privado.
Em
suma, o OE 2015 é um orçamento de continuidade, míope em relação às
necessidades de desenvolvimento, à indispensável modernização do sector
produtivo e à coesão social e territorial e não reflecte, com assertividade, as
lições do passado recente.
Por todos estes motivos,
constata o GES que se mantém a pertinência das críticas já apresentadas em
relação ao OE 2014, também ele caracterizado por cortes na despesa, sem o
devido enquadramento em opções de médio e longo prazo em ordem ao
desenvolvimento económico e social equilibrado e sustentável, indiferente à desqualificação
progressiva do modelo social, ao mesmo tempo que privilegia os interesses dos
credores fazendo recair sobre a generalidade dos portugueses o ónus da
consolidação orçamental e da falta de ética na condução dos negócios privados;
em particular, mas não exclusivamente, no sector financeiro.
2. A
obsessão com o défice público
O
Orçamento de Estado já não o é, do Estado; será, quando muito, um orçamento do
Governo.
O OE 2015 reflecte as opções
políticas do Governo que persiste em tomar como objectivo central, e quase
exclusivo, a contenção do défice público, fixando-o em valor apenas
ligeiramente superior ao estabelecido: 2,7% do PIB, em vez de 2,5%. Para
sustentar aquele valor, é construído um cenário macroeconómico assente
nomeadamente numa previsão de crescimento do PIB de 1,5%, bem acima do previsto
para os nossos parceiros europeus. Por outro lado, o anunciado crescimento
económico, através do estímulo ao investimento privado pela via da redução não
selectiva do IRC, levanta sérias dúvidas acerca da sua viabilidade e do seu
real impacto na transformação estrutural da economia, não obstante o esforço
orçamental que implica.
O Orçamento carece, assim, de
credibilidade, prolongando o clima depressivo e de incerteza em que o País tem
vivido nos últimos anos, antecipando, desde já, a necessidade de sucessivos
orçamentos rectificativos.
Das
consequências das políticas de austeridade não se retiraram as devidas lições pelo
que vão repetir-se os mesmos erros decorrentes de uma política neo-liberal e
consequentemente anti-social.
Preocupa-nos que, nem a
constatação da crescente pobreza e desigualdade foi suficiente para inflectir
as opções governamentais de redução ou mesmo neutralização das políticas
sociais. É urgente reconhecer a urgência de uma significativa re-orientação das
políticas sociais e a sua articulação com uma mais ampla política de
rendimentos. Pelo contrário, no OE 2015 acentua-se o pendor assistencialista da
protecção social e deparamos com o escandaloso propósito de fixação de um
limite máximo para as prestações sociais não contributivas, que, como é sabido,
se dirigem às pessoas mais pobres e mais fragilizadas que, por esta via, verão
os seus rendimentos ainda mais reduzidos.
Demonstrando uma visão muito
limitada do valor da educação, da investigação e da formação profissional, estas
funções essenciais do Estado sofrem cortes orçamentais significativos, colocando
estes sectores, como outros serviços essenciais ao bem-estar colectivo, na mira
de sucessivas privatizações.
A projectada afectação de
montantes elevados para resgatar instituições financeiras, cujos accionistas
deveriam suprir as respectivas necessidades de capital, contrasta com a penúria
de verbas para atender aos problemas gravíssimos de largos estratos da
população, atingida pelo desemprego, a precariedade no trabalho e os baixos
salários.
A
coesão nacional não resiste a esta sucessiva degradação e empobrecimento
colectivo que, em última instância, põe em causa a própria democracia.
3. Sob o signo
da visão neo-liberal da reforma do Estado
Preocupa-nos constatar que o
OE vem mudando, paulatinamente, a sua natureza.
Entendia-se que o orçamento deveria
ser uma previsão de receitas e despesas correspondentes a decisões que
procuravam orientar e influenciar as decisões que os restantes agentes
económicos e sociais viriam a tomar, em função de objectivos e estratégias
democraticamente definidos.
A ideologia neo-liberal que
enforma as mentes dos decisores que, desde há alguns anos, tomaram conta do
aparelho de Estado, transformou a natureza do orçamento, subvertendo também, a
natureza do Estado consagrada na Constituição da República. Pretendem que o
Estado seja reduzido à sua expressão mais simples; exige-se-lhe que, apenas,
garanta as designadas funções de soberania: negócios estrangeiros, forças
armadas, segurança e justiça; e, mesmo nestas, são múltiplas as
reconfigurações, com frequentes operações de outsourcing, implementadas ou ainda só anunciadas.
Não surpreende, por isso, que
tanto se fale de “Reforma do Estado”; só que a reforma do Estado na concepção
dos que mais dela falam não é mais do que um suporte jurídico e de propaganda
para a redução do papel do Estado na sociedade, com consequências imprevisíveis,
como já se vai provando, por efeito da redução de competências e recursos em
determinados sectores.
Estamos, por isso, preocupados
com a designada reforma do Estado; em primeiro lugar, com esta reforma do estado
neoliberal, para que ela não aconteça; mas, sobretudo, estamos preocupados na
perspetiva de melhorar o Estado, de modo que ele possa garantir, com mais
eficiência e eficácia, a prestação dos serviços que permitirão obter maior
progresso económico e social. Desejamos um Estado ao serviço de todos os
cidadãos e não apenas de alguns cidadãos e suas organizações; defendemos um Estado que promova a justiça,
a equidade e a coesão social e territorial.
4. O que
não está no OE e lá deveria estar
Na apreciação do Orçamento para
2015, importa apreciar o que lá está, mas também o que lá deveria estar e não
está.
O que lá está é uma conta
previsional de tesouraria subordinada ao objetivo de eliminação do défice das contas públicas, para o que são feitas todas as habilidades
contabilísticas que a tal conduzem, independentemente das consequências que
possam ter sobre o progresso económico e social, sobre a redução das
desigualdades e sobre o aprofundamento da coesão nacional.
O que lá deveria estar, mas
não está, é o motor que, pelas suas acelerações ou desacelerações, manteria o
País no caminho da promoção do crescimento e desenvolvimento económicos, da
repartição mais equitativa dos rendimentos e dos patrimónios, da erradicação da
pobreza, da garantia de prestação aos cidadãos dos serviços básicos e
essenciais nos domínios da segurança, da justiça, da educação, da saúde, da
habitação e da alimentação.
O estiolamento do conteúdo do
Orçamento tem vindo a ter como argumento a necessidade do equilíbrio das contas
públicas e da satisfação dos compromissos do Estado perante os seus parceiros
internacionais; essa ambição não deve ser posta em causa, mas terá que ser
contrastada com outras obrigações que o Estado tem, quer no plano externo, quer
no plano interno, por exemplo, a solidariedade com os mais pobres e
injustiçados, a promoção dos direitos humanos, nomeadamente a garantia do
direito ao trabalho e à segurança social, o acesso à habitação, à alimentação,
à saúde, à educação, à justiça, à água potável, ao saneamento, etc.
As consequências do
abrandamento das preocupações com os direitos sociais e do investimento público
em alguns destes domínios já são visíveis em largos sectores da sociedade. A
recente epidemia de legionella com que nos confrontámos poderá não ser senão a
ponta do iceberg que importa conhecer em profundidade.
Em suma, o Orçamento não tem, mas deveria ter, uma projeção plurianual que
permitisse antecipar as consequências no futuro das decisões actuais ou da
falta delas.
Preocupa-nos que a sociedade
que
o Orçamento implicitamente antecipa é uma sociedade que se auto mutila nas suas
capacidades, nomeadamente a de promover cidadãos mais solidários e mais felizes.
A economia que lhe está subjacente é uma “economia que mata”, na expressão
corajosa do Papa Francisco.
5. O
crescimento económico e a miopia que lhe está associada
O OE 2015 refere, ainda que
timidamente, um objectivo de crescimento económico; contudo, devemos alertar
para o facto de que têm vindo a ser destruídos ou coartados os instrumentos que
permitiriam acelerar o ritmo desse crescimento, o que torna aquele objectivo
dificilmente realizável.
Por outro lado, insiste-se na
estratégia de aumento de crescimento do PIB por via das exportações, em
detrimento das outras componentes do produto.
A miopia que está subjacente a
esta estratégia decorre da ignorância de que o tecido produtivo português é
constituído por mais de 90% de muito pequenas, pequenas e médias empresas que
produzem, sobretudo, para o mercado interno. Privilegiar as empresas que
produzem para o mercado externo, em detrimento das que produzem para o mercado
interno, e nada fazer para que estas possam evoluir para a conquista do mercado
externo é distribuir o bolo apenas por alguns não justificados eleitos e
agravar a dependência em relação ao exterior.
Problema crucial, a nosso ver,
a que não é dada resposta é o da concessão de crédito ou apoio à
recapitalização da grande maioria das pequenas e médias empresas para que
possam evoluir de estruturas produtivas muitas vezes esclerosadas para
estruturas mais dinâmicas e competitivas, quer no mercado interno, quer no
mercado externo.
6. Por uma mais equitativa distribuição do rendimento
No Orçamento para 2015 só
formalmente está presente a preocupação de, por seu intermédio, contribuir para
uma mais equitativa distribuição do rendimento e da riqueza e é, praticamente,
ignorada a dimensão redistributiva que poderia ser obtida através do sistema
fiscal.
Invoca-se o peso exagerado das
já existentes obrigações fiscais dos portugueses; ignora-se, contudo, que esse
peso não é idêntico para todos os cidadãos e que são os titulares de menores
rendimentos os que mais poderão reclamar da existência de um peso fiscal exagerado,
contrariamente ao que se tem vindo a fazer crer.
Com frequência se tem referido
os benefícios que por via do IRS obtêm os titulares de menores rendimentos ou
que suportam maiores encargos; omite-se que (mesmo que o argumento fosse
verdadeiro, que não é) os benefícios obtidos são irrisórios, ficam imunes a
esse benefício as muitas famílias e sujeitos passivos individuais não
abrangidos por obrigação declarativa de IRS, por os seus rendimentos serem
demasiado baixos.
Em contrapartida, salienta-se a
oportunidade da redução da taxa de IRC com o argumento da promoção da
competitividade. Ignora-se que a competitividade depende de muitos outros
fatores, para além do IRC. A redução do IRC não tem dimensão suficiente para
promover aumentos de competitividade sustentáveis e, por isso, os recursos
adicionais obtidos terão, com grande probabilidade, como destino, apenas maiores
aumentos de remuneração do capital.
Esquece-se, ainda, que o
argumento do peso exagerado da fiscalidade perde todo o valor se não tiver em
conta as contrapartidas em termos de serviços de que se pode beneficiar quando
se tem um determinado nível de imposição fiscal; muito provavelmente, quando a
qualidade dos serviços públicos a que se tem acesso é precária, o que terá de
ser feito é diagnosticar e corrigir as insuficiências de eficiência que impedem
os serviços públicos de funcionarem adequadamente.
7. Pelo devido aproveitamento
do Acordo de Parceria Europeu
Consideramos estranho
verificar a incapacidade do OE 2015 para ser interventor activo no desenho e
construção do futuro. Esta deficiência congénita do OE 2015 está bem patente na
forma como acolhe o tratamento dos instrumentos que configuram o próximo período
de programação comunitária ou seja o Acordo de Parceria que substitui os
anteriores QREN e QCA.
Com efeito, o Acordo de
Parceria Europeu constitui o mais importante instrumento de financiamento do
investimento público do País até 2020; apesar disso, o Orçamento para 2015
ignora-o, heroicamente; apenas a ele se refere no art.º 18º, nº 2 e no art.º
122, nº 1, a propósito da regulação de algumas operações financeiras que lhe
estão associadas, passando ao lado do alcance deste instrumento privilegiado de
promoção do desenvolvimento.
8. Pelo debate acerca da
renegociação da dívida pública
Está hoje sobejamente
demonstrada a inviabilidade do pagamento da dívida pública, nos prazos e nos
termos que nos foram impostos externamente, tanto em termos de stock como de juros. Os argumentos que têm
sido apresentados, que nos escusamos a repetir, deveriam merecer a atenção do Governo.
Apesar de se reconhecerem as dificuldades inerentes à renegociação da dívida,
não se tem propiciado um debate sério por parte de muitos dos intervenientes no
espaço público. Esta constatação configura uma subordinação inaceitável aos
interesses dos credores em detrimento de outros compromissos constitucionais assumidos
com os portugueses.
9. Uma palavra de esperança
Nas reflexões anteriores demos
conta de algumas das nossas preocupações que resultam da análise da proposta de
Orçamento de Estado para 2015. Acreditamos que do maior conhecimento do desenho
das políticas públicas e do acompanhamento da sua execução algo de positivo
resultará para o aperfeiçoamento da democracia e da qualidade da vida
colectiva.
Se é certo que Governo e
outros poderes públicos assumem a maior responsabilidade pela condução do nosso
viver em comum e presença no contexto comunitário e mundial, acreditamos que
uma população melhor informada e mais motivada para maior intervenção muito
pode contribuir para as desejáveis e imperiosas mudanças.
Como lembra o Papa Francisco: Não podemos mais confiar nas forças cegas e
na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o
crescimento económico embora o pressuponha: requer decisões, programas,
mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição
dos rendimentos, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção
integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. (A Alegria do Evangelho, 204).
Lisboa. 20 Novembro 2014
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