Dificilmente
se encontrará hoje em dia uma área de maior produção teórica em ciências
sociais do que a que tem a ver com a crise do capitalismo e a transição para
novos paradigmas. De uma maneira geral, esta produção tem origem em correntes e
formas de pensar alternativas ao
mainstream neoclássico por razões óbvias: a este não interessa o enfoque na
crise dos modelos económicos regidos pelo mercado, já que a estes tenta
agarrar-se desesperadamente como forma de sobrevivência. Entre os críticos daquela
visão dominante não têm, no entanto, abundado os consensos. E, do mesmo modo,
tem falhado a apresentação de propostas unificadas e operacionais que se
afigurem como alternativa cabal à actual crise do modo de produção[1].
Para
alguns autores, impor-se-ão concepções favoráveis ao decrescimento, já que no
actual paradigma o crescimento tem até agora significado reforço das
desigualdades sociais, recrudescimento da crise energética, falência dos – modestos
– mecanismos de regulação, em especial nos mercados financeiros. No entanto, a
maioria dos contributos coincide em verificar a inexistência, por agora, de um
conjunto de requisitos indispensáveis a que aquela transição se verifique.
Buch-Hansen,
por exemplo, refere que a ultrapassagem do presente paradigma socio-económico
depende da conjugação das seguintes condições: uma crise profunda do
capitalismo, a existência de um projecto político alternativo, uma ampla
coligação de forças políticas e sociais que, abraçando tal projecto, o promovam
através de acções de luta e um amplo consenso social[2]. Ora, segundo aquele
autor, estes dois últimos requisitos estariam longe de se verificar.
Já
para Mason, neo-marxista que reflecte igualmente sobre as condições de
transição para um novo modo de produção, a perspectiva é bem mais optimista e
funda-se nos aspectos positivos associados à tecnologia da informação: a
proliferação da informação nas sociedades actuais e futuras levará só por si à
erosão dos mecanismos de preços, já que muitos bens e serviços se tornarão de
acesso gratuito. Assim, e por um lado, os mercados deixarão progressivamente de
fazer sentido; por outro, caminhar-se-á para uma sociedade de abundância
alimentada sistematicamente pela produção de nova informação… tendencialmente
gratuita. O papel regulador do Estado é tido como fundamental para que tal
possa ocorrer[3].
Analisando criticamente os marxistas ortodoxos por não terem considerado devidamente
este aspecto virtuoso da tecnologia, especialmente da tecnologia da informação, Mason considera que esta via conduzirá naturalmente à perequação da taxa de lucro e,
subsequente e inevitavelmente, a novo impulso da inovação pela (big) data. E, ainda, o carácter transversal
deste tipo de inovação conseguirá vir a promover a coincidência das agendas da
transição energética e económico-social, até agora de costas relativamente
voltadas.
Em nossa
opinião, esta perspectiva é excessivamente optimista, se não mesmo irrealista,
pelo menos a curto prazo: aquilo a que vimos assistindo é, antes, a uma
tentativa fortíssima de protecção da inovação, quer por parte das empresas que a
dominam quer, mesmo, por parte dos decisores políticos, como bem nos mostra a
última tentativa de Trump de vir a comprar à Alemanha a vacina contra o Corona
vírus de forma a poder usá-la em proveito exclusivo dos – de alguns… –
americanos. Uma intervenção regulatória eficaz a este nível não poderá deixar
de passar pela revisão a fundo das políticas de patentes e, mais geralmente, do
regime de propriedade. No entanto, a indispensável coordenação internacional
num mundo globalizado como aquele em que vivemos mostra-se especialmente
difícil.
A
não ser que…
A
não ser que, eventualmente, um factor crítico global venha a actuar como
mobilizador do interesse comum… Para além do desenvolvimento dos primeiros mercados
financeiros, da intensificação do comércio dos produtos agrícolas, da chegada
dos europeus à América e da invenção da imprensa de caracteres móveis, foi a
Peste, as sucessivas pestes, que contribuíram para o golpe de misericórdia do
modelo feudal na transição para o capitalismo.
A
tentação de comparar os efeitos apercebíveis do COVID-19 com os das pestes é
grande, muitos se lhe têm vindo a referir. Talvez exageradamente, já que sabemos
que a História nunca se repete da mesma forma… Não obstante, coloca-se-nos um
conjunto de questões que aguçam a nossa curiosidade:
- poderá a actual crise epidémica
vir a constituir o cimento do necessário amplo consenso social a que se refere
Buch-Hansen?
- conseguirá ela despoletar a
coordenação dos movimentos políticos e sociais conducentes a acções de luta
eficaz e generalizada no combate ao presente modo de produção?
- estarão os decisores políticos
suficientemente conscientes da urgência da mobilização geral de forma a, de uma
vez, se verificar coordenação de esforços internacionais em tempo de crise?
- e, por fim, que papel poderá estar
a desempenhar a crescente transversalização da produção e circulação da
informação, despoletada pela crise viral através das redes sociais, no processo
de concatenação global que considerámos estar ausente da reflexão de Paul
Mason?
Quem
poderá, e quererá, responder a estas questões?
[1] Ver, por
exemplo, Escobar, A. (2015). Degrowth,
post-development and transitions: a preliminary conversation. Sustain Sci, https://www.degrowth.org/wp-content/uploads/2015/07/ESCOBARDegrowth-postdevelopment-and-transitions_Escobar-2015.pdf
[2] Buch-Hansen, H. (2018). The Prerequisites for a Degrowth Paradigm Shift:
Insights from Critical Political Economy. Ecological Economics, Volume 146, Abril 2018, Pp. 157-163, https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0921800916313726
[3] Mason,
P. (2015). Pós-Capitalismo- Um guia para
o nosso futuro. Penguin Random House. Lisboa: Objectiva.
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