09 março 2020

Manuela Silva planeou, outros não quiserem aprender: uma lição para os dias de hoje


No passado fim de semana, durante todo o dia de sábado (07-03-20) realizou-se, no ISEG, uma evocação da vida e obra de Manuela Silva, que se finalizou com a atribuição póstuma, pelo Sr. Presidente da República, da Grã-Cruz da Ordem de Instrução Pública.
A inspiração
Foram muitas as facetas de Manuela Silva que foram evocadas, sempre na perspectiva do que elas dizem, para os dias de hoje e para o futuro. Uma delas, que, porventura, tem sido menos falada, foi a do planeamento. Pela sua actualidade, importa, aqui, trazê-la à reflexão. Sobre o planeamento, Manuela Silva deixou-nos inspiração através, sobretudo, dos ensinamentos que deixou, no ISEG, na disciplina de Teoria e Técnicas de Planeamento e do legado que permanece, depois da sua passagem pela Secretaria de Estado do Planeamento.

Na Secretaria de Estado e do Planeamento, para além da orgânica de Planeamento que implementou, deixou-nos um valioso Plano de Desenvolvimento a Médio Prazo que, infelizmente, as instâncias políticas de então desvalorizaram, o que levou à sua demissão. Depois disso nunca mais se voltou a falar de planeamento macroeconómico com princípio meio e fim.  Tentarei, mais abaixo, ensaiar uma explicação para que isso tivesse acontecido. São, hoje, várias as figuras de programação de políticas que utilizam a designação de “planeamento ou programa” (grandes Opções do Plano, Plano de Desenvolvimento Regional, Programas Operacionais) que, de planeamento apenas têm o nome ou o aroma.
Porquê, hoje, o planeamento?
Mas que relevância tem estarmos, hoje, aqui, a falar de planeamento? Para melhor o compreendermos, tentemos caracterizar o que é o planeamento e depois ver porque é que voltamos ao assunto.

Planear significa antecipar o que se prevê possa vir a acontecer no futuro, em razão das nossas escolhas, ou de circunstâncias que não dependem de nós, e organizar os meios necessários para que a sua realização possa vir a acontecer, com o máximo de eficácia e eficiência. A necessidade de planearmos tanto se coloca ao nível das realizações individuais, como do que pretendemos realizar enquanto sociedade.

Há uma justificação adicional para a necessidade do planeamento. No planeamento socioeconómico, a prossecução de objectivos comuns implica que todos os que estão envolvidos, quer com os objectivos, quer com os meios, consensualizem, os objectivos que querem atingir e a forma de mobilizar os meios necessários à sua realização.

A vida em sociedade é, necessária e inevitavelmente, uma gestão permanente de interdependências, que podem ter graus diversos, mas não deixam, por isso, de existir. A imagem mais perfeita do que entendo ser a vida em sociedade é a do funcionamento do corpo humano, em que tudo está ligado e dependente de tudo. O mau funcionamento de um órgão, directa ou indirectamente, tem consequências sobre o funcionamento dos restantes, o que tem consequências sobre a sobrevivência do conjunto. A análise sistémica desde há muito que nos alertou e ensinou que assim é.
A construção de infraestruturas
Entre as componentes essenciais de uma vida em sociedade encontra-se a construção de infraestruturas, por ex. um aeroporto, um porto, um terminal de contentores, uma linha ferroviária, as estradas e autoestradas, etc. Poderá a decisão sobre a construção de qualquer destas infraestruturas ser tomada independentemente das decisões que são implementadas sobre as restantes?

O que fica dito, atrás, mostra bem que não. Mais claramente o mostram, as polémicas que temos visto surgir em torno da construção do aeroporto do Montijo, do terminal de contentores do Barreiro, da infraestruturação ferroviária do país e tantos outros. O que pode justificar que se tenha chegado a um ponto em que os principais decisores políticos actuam como que independentemente uns dos outros? O exercício do planeamento teria permitido estabelecer coerência entre as várias iniciativas.

A destruição da orgânica de planeamento e do capital de conhecimento adquirido
Acontece que o planeamento foi, propositada e irresponsavelmente, arredado dos nossos horizontes, enquanto indispensável instrumento de racionalidade das decisões públicas. 

Vários têm sido os argumentos avançados para o justificar:
- Num mundo em mudança e incerteza permanente, a existência do planeamento apenas serve para criar rigidezes que dificultam a necessidade de grande flexibilidade no ajustamento das várias decisões a ser tomadas; o argumento é falso; a incerteza e a mudança são as razões principais para a existência do planeamento; por isso o planeamento sempre foi caracterizado com processo de redução de incertezas;
- O planeamento é um resquício do funcionamento de economias de direcção central que. como está mais que provado, caiu em colapso; aos que assim argumentam apenas podemos chamar ignorantes; enquanto existia planeamento de direcção central, existia, também, e com características completamente diferentes, o planeamento nas economias de mercado.

Vale a pena perguntar, se as famílias e as empresas planeiam a sua actividade, que vírus estranho é que pode impedir que tal não possa acontecer no âmbito das decisões públicas? Há uma explicação que tem características de grande mesquinhez.

A experiência portuguesa de planeamento, embora muito rica, se excluirmos o Plano Manuela Silva, construiu-se ainda antes do 25 de abril. Porque é que não continuou a desenvolver-se com metodologias próprias dos novos tempos.

Tenho uma explicação. O surgimento de novos actores políticos, económicos e sociais fez que cada um deles quisesse construir o seu próprio protagonismo, independentemente das condicionantes que o planeamento lhes poderia impor. Por isso, de forma determinada, se deu início à destruição de toda a orgânica de planeamento, nos vários ministérios e, por essa via, também, a desqualificação da máquina do Estado. Quem ganhou com isso?

Para além da falsa liberdade com que se dotaram os governantes, ganharam os gabinetes privados de projectistas, de advogados, de engenheiros de arquitectos, etc. Muitos anos serão necessários para recuperar o que perdemos, mas enquanto tal não for conseguido, o desperdício de recursos e a ineficiência colectiva terão campo aberto para continuarem a manifestar-se. Os portugueses continuarão mais pobres.

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