17 janeiro 2019

Saúde e Mercado


Desde há longos anos os economistas da saúde reconhecem a inadequação do mecanismo de mercado para satisfazer as necessidades de saúde.

Recordamos o trabalho do americano e Prémio Nobel - Kenneth Arrow - com mais de meio século, o qual em “Uncertainty and the Welfare Economics” pormenorizou as razões profundas pelas quais não se pode confiar ao mercado concorrencial a função de prestação de cuidados de saúde.

É certo que o mundo actual é hoje diferente, em aspectos importantes, desde o extraordinário progresso da medicina ao reconhecimento ao direito à saúde como um Direito Humano, ao mesmo tempo que são bem mais elevados os custos dos tratamentos, entre eles os de alguns medicamentos.

De qualquer forma, o que é intrínseco à situação de doença e os requisitos exigidos a quem cabe a prestação de cuidados de saúde mantêm-se inalteráveis, pelo que permanecem válidas as ideias defendidas por Arrow.

Como é evidente, sem uma intervenção deliberada das políticas públicas, só um pequeno grupo de pessoas teria acesso a cuidados de saúde de qualidade.

Um passo importante neste sentido foi dado, em Portugal, com a criação do SNS, que tem vindo a ser objecto de debate alargado a propósito da nova Lei de Bases da Saúde, trazendo à luz do dia posições que, em alguns casos, se inspiram num modelo de concorrência entre os sectores público e privado.

Parece-nos um dever de cidadania estar atento a este debate e acompanhar o que se vai passando noutros países, desde logo o SNS do Reino Unido, bem mais antigo do que o nosso, pois foi criado em 1948.

Um artigo publicado em Project Syndicate, 3 de dezembro de 2018, (“Putting the Public Back in Public Health” por Mariana Mazzucato, economista e professora na Universidade de Sussex, chama a atenção para a subida de preços pela indústria farmacêutica, que está a afectar de forma insustentável o SNS inglês, ao mesmo tempo que, a nível mundial, cria uma barreira de acesso a medicamentos para 2 mil milhões de pessoas e, em cada ano, empurra 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema.

Como a autora refere “as doenças que não criam um crescimento potencial dos mercados são largamente ignoradas”. Entre 2000 e 2011, só 4% dos medicamentos com aprovação recente foram para doenças que afectam predominantemente os países de rendimentos baixos e médios. (…) Na Europa, entre 2000 e 2014, 51% das novas drogas aprovadas foram versões modificadas de medicamentos existentes, e assim sem benefício adicional para a saúde. (…) Entre 2007 e 2016, as 19 empresas farmacêuticas cotadas no índice S&P 500, focadas unicamente na criação de valor para o accionista, despenderam 297 mil milhões de USD na recompra das suas próprias acções para elevar a cotação de mercado, e assim a remuneração dos seus executivos. Aquele valor corresponde a cerca de 61% dos seus gastos em I&D nesse mesmo período”.

Perante estes factos, Mariana Mazzucato salienta o papel que os governos devem assumir não só para reorientar as inovações no domínio da indústria farmacêutica, como também no combate à financeirização desta indústria, que está mais focada no valor para o accionista do que no investimento em I&D.

A autora conclui o seu artigo da seguinte forma:

 “Para que os cuidados de saúde possam de novo corresponder aos interesses da população, ainda nos podemos inspirar no SNS. A missão dos seus fundadores era criar um sistema que servisse a todos, de prestação gratuita, e respondendo às necessidades dos doentes e não à sua capacidade de pagamento. Os decisores políticos actuais deveriam reafirmar esta missão essencial.“

Esta conclusão é a mensagem que, apesar de muitos obstáculos a vencer, esperamos venha a inspirar a nova lei de Bases da Saúde e as reformas que, a partir dela, haverá que concretizar, com seriedade e respeito pelo bem-comum.

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