08 julho 2018

Política Europeia de Acesso Livre à Ciência: gato escondido com o rabo de fora?

Como tantas vezes vemos referido, o conhecimento constitui hoje em dia o principal factor de produção e, também, de competitividade. Por essa razão têm vindo a desenvolver-se mecanismos cada vez mais sofisticados de restrição ao seu acesso: o que se passa nos grandes mercados de medicamentos, com as empresas inovadoras a guardarem em carteira muitas das patentes que obtiveram em vez de as sujeitarem à concorrência, assim mantendo elevadíssimas margens de lucro e votando ao sofrimento ou à morte milhões de pacientes, é um bom exemplo destas formas de restrição de acesso ao conhecimento.

Na investigação científica sucede algo de semelhante. Por um lado, grande parte da mesma é financiada por projectos internacionais, muitas vezes associados a fundos de empresas que encomendam a investigação, que serão as principais beneficiárias dos resultados e que tenderão a protegê-los tanto quanto possível; isto, por escassez de fundos a nível nacional mas também pela capacidade de imposição do grande negócio internacional. Por outro lado, e para efeitos de progressão nas carreiras académica e de investigação, é suposto que o processo de investigação seja inovador, no seu objecto, metodologia e/ou resultados. Daqui têm vindo a decorrer dificuldades inúmeras vezes referidas, como por exemplo no que respeita ao acesso a bases de dados ou à possibilidade de publicar resultados intermédios em publicações de referência. Estes dois aspectos constituem importantes obstáculos à investigação científica.

A política de Acesso Livre à Ciência, afixada na maioria dos programas dos governos democráticos dos nossos dias, visa ultrapassar obstáculos como os acima descritos. Por recurso às tecnologias da informação e da comunicação, torna-se possível a divulgação on line e, assim, uma partilha e debate muito mais amplos dos resultados científicos, intermédios e finais, do que o que sucede na publicação tradicional, em revistas da especialidade. Por razões de política editorial e, sobretudo comercial, estas revistas restringem muitas vezes o acesso a jovens investigadores, a temáticas consideradas menos interessantes – e, portanto, menos vendáveis… – e ao conhecimento não mainstream.

Também a União Europeia, através da Comissão, tem vindo a referir a sua preocupação neste domínio e a lançar medidas importantes no domínio da Open Science Policy[1]. Recentemente, foi criado o Open Science Monitor, através do qual a Comissão pretende acompanhar os progressos naquele sentido, promovendo o debate sobre os novos tipos de indicadores bibliométricos, em concepção, sobre indicadores de acesso – tendencialmente livre - a bases de dados indispensáveis à investigação e, ainda, sobre as novas metodologias de divulgação dos resultados. O que sucede é que para gerir o Monitor a Comissão Europeia convidou a Elsevier, uma das maiores editoras científicas e detentora de bases de dados fulcrais para a investigação. Ora, enquanto editora de revistas científicas em formato papel, a Elsevier tem sido objecto de grandes críticas: consegue margens de lucro da ordem dos 37%, superiores às da Apple e de algumas empresas petrolíferas, através do mecanismo de revenda dos resultados da investigação às próprias instituições que a conduziram… Usando e abusando da referenciação cruzada – quem publica em revistas Elsevier cita e referencia outros autores que aí publicam também – através da qual se empolam os muito criticados indicadores bibliométricos que até agora têm sido usados, a Elsevier consegue dominar o mercado da publicação científica da forma … menos aberta possível. De tal modo que a maioria dos centros e institutos de investigação suecos e alemães têm vindo a cancelar em massa os seus contratos com a Elsevier[2].

Não será de estranhar, então, se em vez de uma política europeia de efectivo acesso aberto à ciência viermos a assistir, pelo contrário, ao reforço de mecanismos de controlo e restrição à democratização do conhecimento a operar de forma sub-reptícia e sob a capa do Open Access.


[1] Ver, designadamente, os documentos da Comissão Europeia Open Science Policy Platform (https://ec.europa.eu/research/openscience/index.cfm?pg=open-science-policy-platform) e European Open Science Cloud (https://ec.europa.eu/research/openscience/index.cfm?pg=open-science-policy-platform) .
[2] A este respeito merece ser lido o artigo de John Tennant no The Guardian, de 29 de Junho último, de título Elsevier are corrupting open science in Europe, em https://www.theguardian.com/science/political-science/2018/jun/29/elsevier-are-corrupting-open-science-in-europe?CMP=share_btn_fb.

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