Nas
últimas semanas tem-se falado, com exagero, sobre os responsáveis das últimas
calamidades que nos assolaram (e aqui incluo os incêndios e Tancos) e da
necessidade da sua culpabilização. Vemos na televisão entrevistas a
personalidades a quem, sistematicamente, se pergunta quem na sua opinião, foi o
culpado disto ou daquilo, como se a determinação de culpabilidade dependesse da
opinião de quem quer que seja, por muito relevante que seja a sua posição
institucional ou autoridade científica.
A
culpabilização tem sido o tom dominante, quer de políticos, quer da comunicação
social, tradição que pretendendo recuperar a tradição portuguesa, felizmente
terminada, de celebrar e acompanhar com gáudio a execução, na praça pública, de
condenados. Se não existissem, inventavam-se!
Como
é que se pode admitir tal exagero quando se sabe que os responsáveis só poderão
vir a ser identificados na sequência de inquéritos em curso que, para serem
levados a bom termo, demoram mais tempo que o que cada um de nós desejaria.
Porque
não está dependente da finalização de inquéritos, mais oportuno seria que,
desde já, se começasse a refletir sobre as causas, que sabemos poderem ser
múltiplas e que por serem múltiplas não devem ter como consequência atirar com
o saco para trás das costas, mas antes e desde já, começar a esgravatar o
terreno.
Tem-se
falado pouco, e seria oportuno que se falasse mais, sobre a questão de saber em
que medida é que uma parte das causas não poderá ser encontrada através da
perceção, que generalizadamente se vai tendo, de que as estruturas
institucionais do Estado se vêm degradando e que a qualidade dos serviços que
presta, ou deveria prestar, vai possuindo pior qualidade em número
significativo das suas instituições.
Nesta
matéria nunca tudo esteve bem, mas é reconhecido que o processo de degradação é
contemporâneo do debate de “menos Estado e melhor Estado”. Pode-se ter menos
Estado, aumentado a eficiência do funcionamento das estruturas concebidas para
dar resposta às opções tomadas por um país, mas também se pode ter menos Estado
destruindo as estruturas que suportam a satisfação daquelas opções.
Em
Portugal, é à valorização da segunda alternativa que temos vindo a assistir desde meados dos anos 80. O
argumento mais utilizado é o de que a iniciativa privada, no quadro daquelas
opções, dá respostas de melhor qualidade e de menor custo do que as que seriam
obtidas se a sua satisfação fosse realizada no âmbito do Estado. Não surpreende
que venhamos, agora, a encontrar nos órgãos de gestão das empresas que acolheram as funções privatizadas muitos dos que promoveram o processo de privatizações.
Assim
se justificou e justifica o tsunami das privatizações e operações equivalentes.
Naturalmente que as estruturas do Estado não são estáticas e podem evoluir na
sua configuração, mas isso é uma coisa e outra coisa é cortar na estrutura
alguns dos seus elementos essenciais.
Os
que o promoveram, ou acolheram, o tsunami, esqueceram-se de que a prestação de
bens e serviços públicos possui elevado grau de interdependência entre si e que
a forçada desagregação gera, a mais ou menos longo prazo, ineficiências, tanto
nas instituições públicas, como nas privadas, cujas consequências vemos agora
manifestar-se em toda a sua pujança.
A
propósito da degradação das funções prestadas pelo Estado, não quero terminar
sem referir uma outra dimensão da degradação das funções do Estado. Trata-se da
extinção ou da diminuição da importância e da qualidade técnica de certas
funções do Estado. Por ex., a extinção de instituições como o Conselho Superior
de Obras Públicas ou os Gabinetes de Planeamento dos ministérios. Dizem-me que
isso aconteceu por duas razões. A primeira é a de que dessa forma os titulares
dos órgãos políticos se sentiam mais livres para tomar as decisões que muito
bem entendessem, sem ter que estar sujeitos ao parecer de órgãos técnicos que,
de um modo ou outro, podiam condicionar a sua ação. A segunda é a de que, não
podendo dispensar completamente pareceres técnicos ou jurídicos, esses
titulares de órgãos de poder passavam a ter um bom argumento para poder pedir
esses pareceres aos gabinetes de consultoria (jurídica, engenharia, económica e
gestão) existentes no mercado, em que depositavam maior confiança. A circulação
de titulares de órgãos de poder entre esses órgãos e os gabinetes é conhecida.
São
também conhecidos os malefícios a que tem conduzido esta degradação das funções
do Estado. A ineficiência e a falta de articulação de respostas, que deveriam
ser dadas face às grandes calamidades, estão aí presentes com toda a sua
pujança. Ainda poderemos ir a tempo de corrigir, embora com dificuldade, esta
degradação.
Ela
exige, no entanto, que se inicie uma verdadeira capitalização dos Serviços do
Estado. Não me parece que tendo ela sido considerada como admissível em relação
aos bancos, possa ser descurada quando está em causa o exercício por parte do
Estado de funções que são garantia do funcionamento sustentável do nosso modelo
de sociedade.
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