12 março 2014

O carcereiro mau, o carcereiro bom, de novo o carcereiro mau e o Programa de Ajustamento

Certamente que muitos dos leitores já se terão cruzado com o notável programa que, no âmbito da celebração dos 40 anos do 25 de Abril, a Antena 1 tem vindo a transmitir, aos sábados, logo depois das 9,00 horas, por iniciativa da jornalista Ana Aranha que o designou por “No limite da dor” (ver aqui).
Trata-se de um conjunto de entrevistas aos heróis da democracia que foram prisioneiros políticos antes do 25 de Abril. No programa, a jornalista procura trazer à luz do dia o sofrimento que lhes foi infligido pelos torcionários da PIDE (depois DGS). Os procedimentos da tortura envolviam métodos que exploravam sem escrúpulos, e até ao limite de toda a dignidade, os comportamentos e reações desses seres humanos, com vista a obter informações sobre organizações políticas que trabalhavam na clandestinidade.
De entre os métodos utilizados, um dos mais correntes consistia em começar os interrogatórios com violentíssimas agressões físicas e psicológicas que, depois, eram seguidas pela intervenção de outros PIDES, que se apresentavam como bonzinhos e como amigos, procurando dar conselhos e disponibilizando-se para, se fosse necessário, ajudar o preso a mais facilmente obter a liberdade. Se as confissões que os PIDES desejavam obter por este método não aconteciam, logo se seguiam, de novo, as agressões físicas violentas com vista a quebrar o ânimo, a coragem e o silêncio do detido.
Entendi trazer esta memória ao Areia dos Dias a propósito da tortura a que o povo português tem vindo a estar sujeito no âmbito do designado Programa de Ajustamento. Também aqui, embora de forma menos explícita, se têm vindo a utilizar sofisticadíssimas técnicas de condicionamento psicológico, com vista a levar os portugueses a aceitar como normais e inevitáveis os sacrifícios que lhes têm vindo a ser impostos.
O Programa de Ajustamento foi assinado em 2011, depois de quem governava e instâncias internacionais terem concluído que Portugal estava em risco de deixar de ter acesso a financiamentos no mercado internacional. Como o país necessitava desse financiamento, concluíram que se encontrava em risco de insolvência (bancarrota).
Convém recordar que a percentagem da dívida era em fins de 2008 de 71,6% do PIB, ou seja, uma percentagem de dívida ao nível de muitos outros países considerados como possuindo finanças sólidas. Estamos no ano em que se desencadeou a crise financeira internacional. Foi a partir desse ano que a percentagem de dívida começou a acelerar, atingindo uma percentagem em torno dos 108,2% em 2011, de 124,1% em 2012 e de 129,4% em 2013. Convém recordar que uma componente importante desta aceleração foi o aumento da taxa de juros pagos.
Como se vê, e contrariamente à ideia que inicialmente se procurou transmitir, a dívida, desde 2008, não sessou, de continuar a aumentar, de empobrecer o país e de se tornar insustentável.

A evolução da dívida está condicionada por razões internas e por razões externas. Nas externas há que considerar, nos primeiros anos, o impacto da crise financeira mas, após a intervenção da troika, seria de esperar um diminuição do seu ritmo de crescimento, o que não veio a acontecer. Por outro lado, a austeridade não pode ter deixado de diminuir a importância dos fatores internos, de onde se deduz que são os fatores externos a principal fonte de aumento da dívida embora, para isso, também possa, em alguma medida, ter contribuído a entrada de dinheiro fresco proveniente do empréstimo associado ao Programa de Ajustamento.
E é aqui que podemos fazer entrar a alusão à dança do carcereiro mau e do carcereiro bom. Num outro post já aqui mostrei como é que o capital financeiro passou de ladrão a carcereiro, para assim poder cuidar da reprodução dos benefícios que lhe advêm da apropriação da riqueza roubada.
E o que tem feito o carcereiro? Tem vestido, alternadamente, a farda de carcereiro mau e de carcereiro bom. Os condicionamentos psicológicos, hoje, como outrora, continuam a ser usados para procurar escravizar os que não desistem de ser cidadãos no seu próprio país.
Logo que foi assinado o Memorando veio o carcereiro bom e disse: é verdade que ireis passar um mau bocado, mas é coisa passageira, só uns 3 anos e depois será o paraíso. Não chegou a passar um ano e começaram a chegar novas e piores notícias. O carcereiro com farda de mau, anunciou: impostos extraordinários, alterações na legislação do trabalho, cortes nos salários e pensões, reforma do Estado Social, diminuição da coesão económica e social. Disse mais, a situação era grave e se os prisioneiros não se portassem bem viriam aí medidas mais gravosas, porque tudo isso era necessário para podermos “regressar aos mercados”.
E se bem o anunciaram, melhor o fizeram, até que, já perto de 2014, com a proclamada saída da troika (o que é falso, porque eles vão continuar a andar por aí) e com as eleições europeias a meio do ano, se anunciou uma réstia de sol: a economia estava a portar-se bem (algumas evoluções caem dentro da margem de erro dos apuramentos estatísticos), as taxas de juro a 10 anos estavam a descer, e as exportações a crescer, tudo pronunciando um são regresso ao mercado (financeiro).
Passado mais uns meses eis senão quando a ministra das Finanças, acolitada pelos amigos, (com quem a vemos em sorrisos de menina tímida nas reportagens das reuniões do ECOFIN), vem dizer que temos feito muitos progressos (porque até podemos vir a ter uma saída limpa), mas a coisa não estava para breve (de novo o carcereiro mau). Passado mais algum tempo vem um outro, também travestido de carcereiro mau, dizer que temos que adotar uma estratégia de longo prazo, porque fez bem as contas e a saída do estabelecimento prisional não se verificará antes de 2035 (mais 15 anos de regime forçado). E para isso seriam necessárias taxas de juro nominais de 4%.
Com estes bons (?) e maus humores mais não se pretende do que tentar quebrar a espinha dos portugueses (da grande maioria que ainda a mantêm direita) levando-os a aceitar que os sacrifícios poderão ser cada vez piores, mas que não poderemos deixar de continuar a viver dentro do estabelecimento prisional.

Como nos calabouços da PIDE, a libertação desta tortura só será possível resistindo. Resistamos pois! Só da resistência poderá surgir uma nova aurora de 25 de Abril. O Manifesto hoje divulgado, pronunciando-se sobre a reestruturação da dívida e subscrito por um amplo espectro de personalidades políticas e de cidadãos acima de suspeita, não pode deixar de ser um bom pronúncio de que vale a pena não fraquejar.

2 comentários:

  1. É isso mesmo: "resistamos pois! O Manifesto hoje publicado, além de significar um acto político de enorme relevância, tem que ser utilizado pelos cidadãos para, oportunamente, interpelarmos os candidatos ao Parlamento Europeu, concretamente sobre o processo de reestruturação da dívida, sobre a sua urgência, sobre a actuação junto de outros países europeus e instituições europeias. O exemplo do tratamento dado, há 50 anos, à Alemanha endividada não se pode largar!

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  2. Trabalhemos para que a corrente do rio possa engrossar!

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