28 dezembro 2011

Ainda a "democratização da economia"

No post anterior (anteontem, 26), referi contradições entre essa expressão usada pelo primeiro-ministro (na mensagem de Natal) e as políticas governamentais respeitantes ao trabalho e situações de desemprego, acesso aos cuidados de saúde, redução das desigualdades sociais, privatizações e bem comum.
Mas ecos que a expressão tem tido da parte de alguns comentadores são redutores do seu significado. Parece, com efeito, que segundo essas opiniões, “democratização da economia” equivaleria a “libertação” da actividade económica das peias burocráticas que a tolhem (mas não se caracteriza tal burocracia), de excessos de regulação (mas de que regras se queixam?), de “núcleos de privilégios injustificados” (e quais são?). É claro que abrir o acesso à actividade económica faz parte da “democratização da economia”, mas é muito redutor considerar que ela é apenas ou sobretudo isso.
Sem se pretender apresentar uma “definição” do conceito, talvez valha a pena recordar que o Grupo Economia e Sociedade publicou em 2010, em edição da Comissão Nacional Justiça e Paz um livrinho (69 pp) intitulado “Democracia Económica – Meios e Caminhos”. Da sua 2ª parte consta uma conferência “Da Democracia Política à Democracia Económica” (pp.43-53) proferida pelo Prof. Ladislau Dowbor (economista, professor da Pontifícia Universidade Católica – São Paulo) em 20/10/2009 na Fundação Calouste Gulbenkian. Constam também os textos de comentários do Dr. José da Silva Lopes e do Dr. João Rodrigues (economista, investigador do CES da Universidade de Coimbra).
Sem apresentar “definições”, destacam-se seguidamente frases sugestivas do que implica democratizar a economia nos processos – de decisão, de informação, de “prestar contas” – e nos recursos utilizados e nos frutos ou resultados esperados:

- “A nossa democracia tem um grande ausente que são as futuras gerações. E outro grande ausente que são os 4 mil milhões de pobres do planeta. E a Natureza é silenciosa, está sendo destruída, sangrada de maneira absolutamente abominável e também silenciosa. É uma democracia, no mínimo, desequilibrada. É por isso que eu defendo que não basta a democracia política, ou seja, cada 4 anos chamam-nos para colocar um papelzinho numa caixinha e dizem que somos livres. Acho que temos de criar processos decisórios que permitam que os recursos sejam utilizados de acordo com as nossas necessidades, os nossos ideais e com a nossa prosaica qualidade de vida. Este é o eixo central do que chamaria um mínimo de ética.” (pag. 46).
- “Quando as decisões são democráticas, quando os diversos actores interessados, os chamados stakeholders são ouvidos, os resultados são mais equilibrados, ou seja, as decisões democráticas são mais eficientes.” (pag.47).

- “O PIB não mede se as pessoas estão a viver melhor. Mede quanto gastamos…Quando não funciona o sistema de lixo, jogam-se pneus e fogões velhos para o rio em São Paulo, por exemplo, o que obriga a prefeitura a contratar empresas para desassorear o rio. São grandes contratos que aumentam o PIB…” (pag.52; em outro texto, Dowbor, a propósito do PIB escreve “estamos fazendo a conta errada”).

- A importância da participação ao nível local é enfatizada assim: “O último ponto que queria citar é que vivemos num local determinado. E é lá que podemos participar. Essa descentralização que encontramos na Suécia, na Dinamarca, no estado de Kerala, em diversas cidades brasileiras é que permite as mudanças que se estão a fazer no sentido mais positivo. Não resolve tudo. Claro que precisamos de políticas nacionais, de sistemas de concertação internacional,etc. Mas, na realidade, é no local que podemos realmente participar.”

E a consciência de que os problemas de dimensão local devem ser foco de actividade económica e de que esta pode ter por objectivo a resolução de problemas sociais (economia social solidária, microcrédito, empresa social ou “social business” nos termos de Muhamad Yunus) são aspectos que a 1ª parte do livrinho acima referido enquadra no contexto mais amplo e complexo da globalização actual, especialmente na conferência do Prof. Mário Murteira (em 28/04/2010) a que deu o título interrogativo “A caminho de uma nova ordem económica?”. Os textos comentários são dos Professores José Castro Caldas e José Manuel Pureza, da Universidade de Coimbra.

(Observações:
- O prof. L. Dowbor desenvolveu o conceito de “democratização da economia” em “Democracia Econômica – alternativas de gestão social”, Editora Vozes, Petrópolis, 2008;
- O livro “Democracia Económica – Meios e Caminhos” tem introdução da Prof.ª Manuela Silva e a coordenadora da sua edição é a Drª Eduarda Ribeiro)

O aumento das listas de espera nos hospitais públicos

Em artigo recente, o The New York Times[1] apresenta uma preocupante descrição do que está a ser o impacto das medidas de contenção orçamental sobre o acesso dos gregos ao serviço público de saúde, sendo certo que, para um crescente número de desempregados e pobres, não existe a possibilidade de recorrer, em alternativa, ao sistema privado: faltam bens essenciais nos hospitais públicos, equipamentos computorizados estão fora de serviço, aumentam as listas de espera para operações, o acesso a medicamentos é cada vez mais difícil, os casos de suicídio aumentam, assim como as taxas de HIV.

Tecnicamente, os que não podem pagar têm direito a cuidados gratuitos, … mas a burocracia é um obstáculo.

Perante este estado de coisas, os governantes admitem a existência de alguns problemas mas dizem que o sistema era insustentável e podem fazer ajustamentos no próximo ano. Disse o Secretário-geral do Ministério da Saúde: “tivemos dois anos focados na questão financeira, agora vamos passar à avaliação”.

Sabemos bem que a situação da Grécia é, em muitos aspectos, diferente da portuguesa, nomeadamente não temos a corrupção na saúde que tem sido referida no caso grego.

Mas começam a tornar-se bem visíveis em Portugal, os resultados de uma politica essencialmente virada para a questão financeira, sem que se salvaguarde o acesso e a qualidade do SNS.

Um exemplo é o que se passa com o aumento dos tempos de espera para a realização de exames em hospitais públicos, na sequência de normas que restringem o recurso a prestadores privados convencionados pelo Estado.

Sendo esta uma orientação que faz sentido para utilizar plenamente os meios disponíveis do SNS, já é incompreensível que não se tenham estudado formas de a concretizar sem prejudicar os doentes, que podem assim, em muitos casos, sofrer danos irreparáveis na sua saúde pela demora de exames médicos.

O que não se pode de todo aceitar, por desumano, é seguir, como na Grécia, a politica de contenção orçamental e só depois avaliar os resultados sobre a saúde das pessoas.
[1]
Fiscal Crisis Takes Toll on Health of Greeks por Suzanne Daley, The New York Times December 26, 2011
[Consultar aqui]

26 dezembro 2011

democratização da economia?!

democratização da economia?!

Ao título acima dou-lhe o subtítulo “estragar palavras”. E os pontos de interrogação e exclamação vêm de não esperar ouvir da boca do actual primeiro-ministro, Passos Coelho, a expressão “democratização da economia”. O meu espanto rapidamente virou indignação. Não é que as palavras tenham dono. Mas certas palavras merecem respeito, não podem ser estragadas ou corrompidas por contradições que raiam a desfaçatez.

Pode ser muito bonito (nomeadamente para mensagem de Natal) dizer (após usar a expressão “democratização da economia”) que “queremos colocar as pessoas…no centro da transformação do País”. Mas não posso aceitar que se diga que é “democratizar a economia”:
1) Desvalorizar brutal e cruelmente o trabalho, quer banalizando o despedimento (o Jornal de Notícias, de 21 do corrente titulava, sugestivamente, como “Despedir a torto e a direito” as medidas governamentais apresentadas em Concertação Social que agravam as condições dos desempregados e facilitam ainda mais o despedimento) quer aumentando o tempo de trabalho - a mais meia hora diária, por exemplo, além de ser economicamente irrelevante, significa o desprezo pelo avanço civilizacional que foi o limite de 8 horas por dia.
2) Penalizar os funcionários públicos e os pensionistas(!) com os cortes de 2 meses de remuneração ou pensão.
3) Agravar o acesso à saúde.
4) Retirar o Estado (que é suposto ser dos cidadãos…) da economia, nomeadamente de sectores estratégicos e essenciais ao bem comum e à qualidade de vida (por exemplo, água e correios- neste particular pense-se em tantas terras em meio rural). Aliás, estas são bem o tipo de reformas que decorrem do princípio “Estado mínimo” e “mercado máximo”. Na cabeça do primeiro-ministro quando usa a expressão “democratização da economia” estará provavelmente “economia democratizada” = “tudo é mercado”…

É certo que lá estará o memorando e a troika, mas tais imposições não foram referidas ao falar das reformas, talvez porque ir além da troika significa a adesão entusiástica à lógica político-económica das medidas do memorando. Mesmo quando é cada vez mais evidente que as desigualdades se agravam e os sacrifícios, mesmo quando se diz que são para todos, para alguns serão sempre insignificantes (em toda a plenitude etimológica!). E, a terminar este “post”, não posso deixar de citar a magnífica crónica de José Vítor Malheiros no Público do passado dia 20 do corrente: ”…Que honra é esta que sobrepõe o dever de pagamento da dívida aos ricos ao dever de alimentar os pobres?...”.

21 dezembro 2011

Auditoria Cidadã à Dívida Pública Portuguesa

Realizou-se, no passado sábado, a Convenção de Lisboa para uma auditoria cidadã à dívida pública portuguesa. Trata-se de um acontecimento a que os media não deram o devido relevo, mas que não deve ser silenciado. Ver aqui.
Com esta iniciativa deu-se início a um processo que visa o escrutínio da dívida contraída em nome da República Portuguesa, no entendimento de que, se a dívida é de todos os cidadãos e a todos responsabiliza pelo seu pagamento, todos temos o direito e o dever de conhecer, com rigor, objectividade, transparência e isenção, os objectivos e as condições em que a dívida, que já atinge valor equivalente ao PIB, foi contraída e bem assim avaliar da sua sustentabilidade, tendo em conta critérios de justiça social.

Em que consiste esta auditoria?

Como se esclarece no texto da convocatória da Convenção: Numa auditoria à dívida, verificam-se os compromissos assumidos por um devedor, tendo em conta a sua origem, legitimidade, legalidade e sustentabilidade. Uma auditoria à dívida pública faz essa análise relativamente aos compromissos do sector público perante credores dentro e fora do país, incluindo a dívida privada garantida pelo Estado.

Trata-se, pois, de um processo rigoroso a aplicar a toda e qualquer parcela da dívida contraída em nome da República, no pressuposto de que nem toda a dívida é legítima e/ou legal e que uma tal discriminação é fundamental para se empreender uma eventual renegociação com os credores.

A auditoria à dívida é um direito constitucional, mas é também um dever de cidadania, porquanto, nas condições presentes da sociedade portuguesa, os encargos directos com o pagamento de juros e os indirectos sob a forma de reformas ditas estruturais que vêm sendo seguidas pelo Governo a coberto de imposições da Troika estão prejudicando gravemente a economia e o desenvolvimento e minando os alicerces do modelo social.

O modo como formos capazes de enfrentar a questão da dívida pública tornou-se num factor determinante não só do nosso presente como do nosso futuro colectivo. Importa, por isso, conhecer melhor para melhor agir.

14 dezembro 2011

Não há alternativas?

Não nos dizem porquê, mas os actuais governantes e certos media com eles identificados vão repetindo, até à exaustão, que não existem alternativas às medidas de austeridade que vêm sendo impostas de modo brutal, através de um pacote de políticas conjugadas que comportam o agravamento da imposição fiscal directa e indirecta, cortes directos e indirectos nas remunerações de trabalho, redução de serviços públicos em áreas chave, como sejam a saúde, a educação, as prestações sociais, os transportes, etc.
Não há alternativa, dizem, mas não têm como negar a realidade concreta que, em sua consequência, já está debaixo dos nossos olhos. Dou exemplos:

• Em poucos meses, é notório como se tem degradado o poder de compra das classes de menores rendimentos e como tem aumentado o número de pessoas com necessidade de recorrer à ajuda solidária, inclusive para prover à alimentação.

• Ainda hoje, os serviços de estatística davam conta que a taxa de desemprego vem aumentando significativamente e já ultrapassa os 13% da população activa.

• Também é sabido que a emigração por falta de oportunidades de emprego no País cresce em cada dia e está a incluir uma forte componente de jovens licenciados e de quadros médios e superiores.

Não bastariam estas situações tão dramáticas para, ao menos, fazer abalar as pseudo convicções de quem nos governa e para aconselhar uma urgente mudança de agulha que mobilizasse os diferentes actores sociais a procurar alternativas, que evitem uma mais que provável catástrofe social a curto prazo?

Acresce que não se podem ignorar as experiências empíricas do receituário monetarista e neo-liberal similares já realizadas em outros contextos e hoje amplamente conhecidas e analisadas pela literatura económica e sociopolítica e, de modo geral, tidas por desastrosas do ponto de vista socioeconómico. Se não querem ir mais longe, recorde-se a política de Margaret Thatcher nos anos oitenta, por sinal também ela levada a cabo com recurso ao slogan “não há alternativa.”

Persistir no argumentário neo-liberal de pseudo justificação da inevitabilidade impede, de facto, a procura de alternativas e é erro político que a história julgará.

10 dezembro 2011

I - O Palácio reuniu-se em Assembleia Geral e os Marqueses continuaram na sua

Terminou a Cimeira Europeia e, apesar dos poderosos meios mobilizados para que pudesse ter êxito, o mais que se pode dizer é que, face à amplitude e complexidade dos problemas com que se debate a Europa, os resultados alcançados se traduziram por um estrondoso fracasso.

Por isso, passado o momento da euforia (com alguma precária evolução positiva no mercado financeiro!), vamos continuar a ouvir falar, de crise de dívidas soberanas, de ataques ao euro, de recessão, de aumento da taxa de desemprego, de empobrecimento, de ameaças à economia italiana e, muito provavelmente, se nada for feito, de instabilidade, primeiro na economia francesa e depois na economia alemã. Pelo caminho, irão ficando países considerados, no conjunto europeu, de menor importância, económica e financeira.

No essencial, a reunião no Palácio traduziu-se pelas seguintes decisões:

1. Fixação em 0,5 % do PIB o valor máximo do deficite público;

2. Introdução desta regra na Constituição dos países, ou em outro documento equivalente;

3. Penalizações automáticas sobre os países que violarem a regra;

4. Supervisão do comportamento dos países pelo Tribunal de Justiça Europeu;

5. Antecipação em um ano (Julho de 2012) da entrada em funcionamento do novo Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, que poderá emprestar até 500 mil milhões de euros aos países em risco de entrar numa situação de incumprimento;

6. Empréstimo de 200 mil milhões de euros pelo BCE ao FMI, para que este possa emprestar à Itália (para quê este détournement?).

Apesar de toda a parafernália de comunicação com que temos sido bombardeados, como se algo disto pudesse a dar solução aos problemas com que nos debatemos e com que se debate a Europa, a verdade é que, com exclusão de algumas regras de comportamento de secretaria, nada foi decidido que possa ser considerado substancialmente diferente do que já anteriormente foi adotado: o limite do deficit passou de 0,3% para 0,5 do PIB e o fundo de estabilização financeira mudou de nome, com um acréscimo da sua capacidade financeira de intervenção. Ver aqui uma muito lúcida análise do Nuno Serra sobre o significado das decisões tomadas.

Pergunta-se, se assim é, porque é que o que não deu resultados no passado, irá dar resultados no futuro?

Num post aqui colocado no passado dia 8 de Dezembro, eu terminava dizendo: “mas então o que é que se propõe ou deveria ser proposto para que o futuro da Europa se tornasse sustentável?”

Dar resposta a esta questão e fornecer-lhe elementos de natureza operacional é, certamente, uma grande e complexa tarefa. No entanto, mais do que dar respostas “prontas a servir” o importante é compreender a verdadeira raiz dos problemas e é disso que pretendo falar a seguir (ver aqui).

I I - O Palácio reuniu-se em Assembleia Geral e os Marqueses continuaram na sua

Começarei por referir algo que já aqui tem sido abordado em posts anteriores. A crise na Europa desencadeou-se na sequência dos desmandos financeiros de 2008 e da incapacidade que tiveram os seus países para regular a “livre circulação” (ver post de 8 de Dezembro) do capital financeiro e da sua vontade em, apesar das suas responsabilidades na produção dos desmandos, continuar a atacar as suas presas, de modo a manter e, porventura, aumentar os níveis de rentabilidade que vinham obtendo.

O facto de a crise financeira se ter desencadeado na Europa, nas circunstâncias acima referidas, não quer dizer que a Europa e alguns dos seus países (PIGS) não se “tivessem posto a jeito”, criando, ou permitindo que se criassem, condições de fragilidade que tornaram possível que a raposa entrasse com mais facilidade no galinheiro. O que é verdade é que, com maior ou menor dificuldade em entrar, a raposa permanece nas suas imediações.

Ora estas condições de fragilidade, se bem que possam ter raízes no interior de cada um dos países, não podem deixar de ser encontradas, sobretudo, nas insuficiências que, no processo de construção europeia (pela tomada de decisões ou pela sua ausência) têm vindo a ser permitidas, ou conscientemente procuradas, nas últimas décadas.

A grande ambição da construção europeia (e a única em que vale a pena empenharmo-nos é a da construção da “Grande Casa Comum”. O projeto é enorme e, por isso, a Casa não pode ser construída se não assentar em fundações sólidas que é tudo menos o que tem estado a acontecer.

Desde há muito que a ciência económica baseia o objetivo do progresso económico e social (e também o da Europa), na interdependência dos mercados. Mas quais mercados?

Os mercados são múltiplos, mas são interdependentes, o que quer dizer que o que se verificar num não deixa de ter consequências sobre os restantes: mercado da mão-de-obra, de capitais, dos bens e serviços, da inovação, das exportações, das importações, etc.

Para que os mercados funcionem, de modo a produzir progresso económico, os países, ou os espaços supranacionais, devem dotar-se de instrumentos de regulação (políticas): da mão-de-obra, das remunerações, fiscais, orçamentais, monetárias, financeiras, saúde, educação, etc. Do mesmo modo que nos mercados, também, nada do que se passa com um instrumento de política pode ser pensado sem ter em conta as consequências sobre as restantes.

Não é a uma evolução fundada nestes pressupostos o que temos vindo a assistir na Europa e nos vários países que a integram. Não fora assim, porque é que tanto se insiste na fixação da percentagem do deficit público e se descura a necessidade de fixar, por ex. a taxa máxima de desemprego?

A razão é simples e o seu fundamento reside na circunstância de que o objetivo que se procura alcançar é o de facilitar a vida ao mercado financeiro (será que existe mercado?), considerando que tudo o que se passa nos restantes deve ser considerado como instância de ajustamento.

Mas põe-se a questão de saber porque é que o trabalho deve estar sujeito aos apetites do capital e não o inverso? Eu até poderia aceitar que a percentagem do deficit pudesse ser fixada na Constituição se, simultaneamente, também, aí se fixasse a taxa máxima de desemprego, o nível de desequilíbrio na repartição dos rendimentos, os conteúdos dos serviços públicos de saúde e de educação, etc. Como tal é impossível deduz-se, com merediana evidência, a idiotice da iniciativa, quer em relação deficit, quer em relação aos restantes indicadores.

Em alternativa, o que temos é de construir uma Europa em que a economia esteja ao serviço do Homem e não o Homem ao serviço da economia ou, pior ainda, ao serviço dos apetites da “livre circulação” do capital, quer ele seja o financeiro, quer não.

08 dezembro 2011

Chegou o Inverno e os Srs. Marqueses insistem em manter janelas e portas abertas

Disseram-lhes que, mesmo no Inverno, deveriam manter as portas e janelas escancaradas, porque isso trazia ar fresco, limpava os pulmões e dava energia revigorada. Argumentaram que a “livre circulação” era uma virtude.

Os Srs. Marqueses acreditaram no que lhes tinha sido dito e deram instruções aos seus familiares e subordinados para manterem a livre circulação. A recomendação apresentava-se como credível porque, dizia-se, estava fundamentada em investigações científicas aprofundadas, realizadas na Universidade de Chicago (Escola de Chicago) por um cientista de nome Milton Friedman e pelos seus “rapazes”.

No palácio, nem toda a gente quis cumprir, de ânimo leve, estas recomendações, mas com mais ameaça, ou menos ameaça todos se renderam às instruções da Sr.ª Marquesa (Ângela) e do Sr. Marquês (Nicolau). Aliás, a Marquesa era a maior defensora das novas teorias; o marquês limitava-se a seguir-lhe os passos.

Sabia-se que algumas das pessoas que viviam no palácio, eram mais frágeis e se poderiam vir a constipar com as correntes de ar frio, com mais facilidade que outras, mas isso não era considerado problema demasiado sério. É certo que os que poderiam apanhar gripe iriam passar um mau bocado mas, mesmo assim, valia a pena correr o risco porque, no fim, todos lucrariam com os bons ares que continuamente limpavam o palácio de todos os maus vírus.

A grande surpresa estaria para vir. É que, a percentagem das pessoas infectadas pelo vírus veio a revelar-se muito mais elevada do que o que era inicialmente previsto. E rapidamente se transmitiu a quase toda a gente. O efeito de contágio estava a gerar uma epidemia.

Em certa altura, apesar de todas as vitaminas que tinham tomado, até os marqueses começaram a ter dores de cabeça, mas insistiam que as suas causas não estavam na livre circulação mas, antes, nos desmandos da criadagem que nas férias de Verão se tinham fartado de passear e gastar dinheiro e, agora, não tinham dinheiro para comprar os agasalhos necessários. Os marqueses viram-se obrigados a adiantar dinheiro para os agasalhos, mas a epidemia grassava cada vez com mais intensidade. Que fazer, então?

Gerou-se grande discussão, mas os marqueses insistiam na sua de manter portas e janelas abertas. Houve quem se começasse a pôr a questão de saber porque é que a livre circulação trazia consequências que não tinham sido previstos pela Escola de Chicago e pelos seus animadores?

Desde há muito era do senso comum que o ano se desenvolvia segundo um ciclo de estações (Primavera, Verão, Outono e Inverno) e que durante cada uma das estações havia comportamentos diversificados, de modo a que cada um pudesse dai retirar os maiores benefícios. Por isso, não fazia muito sentido que no Inverno se semeassem os cereais, se andasse a comer cerejas e se mantivessem as portas e janelas abertas. Daí não viriam, certamente, bons resultados. Isto é, as várias fases do ciclo económico não podem ser tratadas, todas, com as mesmas políticas.

Creio que já terão compreendido que a alegoria que acaba de ser descrita é como que a de um pequeno presépio da situação económico-financeira que hoje se verifica na Euro Zona. Nos próximos dias vai-se realizar uma Cimeira para a qual é anunciada a tomada de decisões importantes que poderão implicar a revisão dos Tratados.

Bem precisam os Tratados de ser revistos, mas não é, certamente, no sentido de que se vem falando, ou seja o de impedir que a criadagem seja “libertina” durante o Verão, obrigando-a a que no código de conduta de cada um fique inscrito o compromisso de renúncia à libertinagem.

Com efeito, nunca a vida no palácio passará a ser robusta e salutar se ela não tiver como fundamento os princípios da vida em comunidade, em que todos sabem que precisam de todos e em que, as decisões que vierem a ser tomadas, o têm que ser, no pressuposto de que, com mais ou menos tempo, o que hoje é mau para uns o será mais tarde, também, para os restantes.

Daí que se deva irradiar do clima das discussões a ideia de que para que os PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha) se salvem será necessário que países como a Alemanha façam sacrifícios. Em primeiro lugar, porque está longe de ser verdade que esses sacrifícios existam; em segundo, porque mesmo que existissem eles não poderiam deixar de ser encarados como investimento, cujos frutos serão colhidos no futuro.

Chegados aqui, a pergunta é: mas então o que é que se propõe ou deveria ser proposto para que o futuro da Europa se tornasse sustentável? São essas as propostas que deveriam fornecer a substância da revisão dos Tratados.

Este post já não contem espaço que permita que se avance na reflexão sobre essas propostas. Fá-lo-ei num próximo.

05 dezembro 2011

Abençoada lucidez

Helmut Schmidt, ex-chanceler da Alemanha, com a sabedoria dos seus 92 anos, teve a coragem de denunciar publicamente, no passado domingo e no seio do SPD, o risco de isolamento do seu país, quando são evidentes os sinais de uma tomada de poder alemão sobre os destinos da Europa.

Para Helmut Schmidt, a União Europeia é necessária, bem como a continuidade do Euro “ muito mais estável do que o Dólar americano” e também “ mais estável do que o marco alemão nos seus últimos 10 anos”.

Contudo, reconhece que é insuficiente a consciência dos alemães de que a sua economia está integrada no mercado comum europeu e, em simultâneo, globalizada, e desta forma dependente da economia mundial, onde os seus excedentes só têm paralelo nos da China. E todos os seus excedentes são deficits de outros.

Sublinha que o poderio económico da Alemanha tem suscitado o receio, por parte de uma crescente maioria dos seus vizinhos, de que a periferia fique dominada por um centro demasiado poderoso. No limite, a Alemanha ficaria isolada na U. E. ou na zona Euro, o que seria altamente perigoso.

Acresce que a Alemanha tem motivos para sentir gratidão para com outros países, nomeadamente os seus vizinhos da Europa, que lhe prestaram ajuda sem a qual a reconstrução no após guerra não teria sido possível. Mas a classe política não parece ter perfeita consciência do imperativo da solidariedade europeia, em que uns são necessariamente credores e outros devedores.

Assim, a teimosia da Alemanha em preconizar austeridade a todo o custo para combater a crise é fortemente criticada por Helmut Schmidt que preconiza, como objectivos a prosseguir desde já, mais democracia na U. E., menos poder à finança (os dealers, os gestores financeiros e as agências de rating continuam a operar da mesma forma) e uma politica eficaz de defesa da moeda comum.

Entre as medidas apresentadas destacamos: a regulação do mercado financeiro (cross- regulation), a separação dos bancos comerciais dos de investimento e dos “shadow banks”, proibição do “ short selling” dos títulos bem como do comércio de derivados não sujeito a controle.

Para assegurar o futuro imediato do Euro há uma série de passos a percorrer: fundos de resgate, controlo de dívidas, politica económica e fiscal comum, politicas de despesa e sociais bem como reformas do mundo laboral.

Mas uma dívida comum será inevitável. O que não pode é prolongar-se através de Europa politicas extremamente deflacionistas.

Não se duvida que este discurso de Helmut Schmidt venha a ter um grande impacto entre os apoiantes do SPD e dos alemães em geral, provavelmente mal informados acerca do que está em causa e das consequências das ideias defendidas por Ângela Merkel.

Bom seria que também entre nós ele fosse lido e comentado, quebrando o asfixiante discurso que todos os dias nos é oferecido.

Podemos esperar que os responsáveis nas instâncias da U. E. ganhem alguma força para as reformas que se impõem, dando um horizonte de esperança aos que atravessam situações bem dramáticas?

02 dezembro 2011

Algumas coisas sobre a “dívida” que você gostaria de saber e que porventura ainda não sabe

De entre um conjunto de países em que se incluem, a Alemanha, a Espanha, os EUA, a França, a Grécia, a Irlanda, a Itália, o Japão, Portugal e o UK, Portugal é o país que, em valores absolutos, possui a dívida externa mais baixa. A alemã é 10,5 vezes superior à portuguesa, a do UK é 18,3 vezes superior e a dos EUA 27,3 vezes superior.

Se em vez do total da dívida externa, tomarmos apenas a dívida pública, Portugal continua a ser o país com menor montante de dívida, seguido da Grécia, Espanha, UK, Itália, França, Alemanha, Japão e EUA.

É verdade que não tem muito sentido compararmos a dívida em valor absoluto mas, mesmo assim, não é totalmente despiciendo fazê-lo, já que por aí vai correndo a ideia de que a dívida nos PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha) ultrapassa todos os limites, o que pode levar muitos dos leitores a pensar que se trata dos valores absolutos.

Vejamos então indicadores mais sensatos como o da dívida per capita. Surpresa: a Espanha, a Alemanha, a França e o UK possuem dívidas per capita superiores à portuguesa; a Grécia, os EUA, a Itália e o Japão possuem dívidas mais baixas. No entanto, por ex., a dívida portuguesa é, apenas 8% superior à dos EUA; em sentido contrário, a da Alemanha, é superior à de Portugal, em 33%, a da França 74%, a do UK, 208%, etc.

Uma outra questão interessante é a de saber qual é o peso das dívida pública no total da divida externa: em Portugal é de 42%, na Alemanha é de 47%, na Grécia é de 66%, nos EUA é de 99%.

Tudo isto parece muito estranho, pelo menos quando comparado com a empastada informação que nos tem sido transmitida.

Tudo isto e muito mais pode ser encontrado aqui. Este aqui é a BBC.

Alguma da explicação para esta perplexidade poderá ser encontrada se, no sítio acima referido, formos ver quem é que possui a dívida de cada um dos países, nomedamente a dos PIGS.

Cá está o tal efeito “sistémico”!