26 junho 2017

Os ventos cruzados em Pedrógão, mas também, ali e acolá

Todos os ventos cruzados provocam inação e estupefação. Uns são voluntários, outros involuntários. Pode demorar-se mais ou menos tempo a reagir a eles e às suas consequências; a rapidez da reação depende da previsibilidade que o fenómeno possuir e da capacidade de que se dispõe para, quando acontecem, lhe fazer face.
O grau de previsibilidade não é uma total indeterminação, para trás da qual possamos atirar, sempre, a irresponsabilidade dos que com os ventos têm que se confrontar. O grau de previsibilidade depende da forma como nos tivermos preparado para combater os efeitos dos que venham a acontecer. Do mesmo modo que, face à possibilidade da verificação de um fogo urbano, a lucidez não aconselha, a que se construam edifícios mal preparados para lhes resistir ou, a que se não façam exercícios de evacuação envolvendo todos os residentes de um prédio ou os componentes de uma comunidade, também, face à possibilidade de ventos cruzados nos incêndios florestais, os cidadãos e as suas estruturas organizativas, não podem esperar que os fogos aconteçam, para saber o que são ventos cruzados. A isto chama-se “proteção civil”. Aquela de que temos vindo a ouvir falar é uma sua componente indispensável, mas, porventura, a de menor peso. Proteção Civil, sem cidadãos mobilizados, não é digna desse nome.
Vamos ouvindo dizer que “já tudo foi dito”, como que a querer significar que já basta de conversa. É verdade que basta de conversa, mas, ainda nos é insuficiente, a sua mastigação e digestão. As dores de barriga, que lhe são consequência, tornam-se ano após ano, cada vez mais insuportáveis.
Os incêndios exigem, certamente, uma discussão técnica e uma discussão política, mas requerem, antes de mais, um envolvimento cidadão, que é tudo o que menos tem sido incentivado. Aqui, o Prof. Álvaro Vasconcelos escreveu: “Há tempos, como os que vivemos, em que a intervenção cívica é uma obrigação. É a mobilização da cidadania, da sociedade civil, que está a travar a vaga nacionalista, e poderá mesmo derrotá-la. Está aqui, talvez, a pista para compreender as surpresas, agora positivas, que estão a surgir um pouco por toda a parte”. Não posso estar mais de acordo com esta afirmação e entendo que ela se aplica a todos os domínios da nossa vida coletiva: o nacionalismo, o desenvolvimento, o euro, a organização e a crise financeira, os sismos, os incêndios, etc.
Quando ouvimos dizer que o incêndio, qualquer que ele seja, teve origem criminosa, ou uma causa natural, e se desenvolveu de forma devastadora, as interrogações vêm em catadupa. Deixem que vos transcreva uma conversa que qualquer um de nós poderia ter imaginado.
P - Porque é que o fogo não parou 500 ou 600 m, à frente do local onde se iniciou?
          R – Vinha com tal força que não havia nada que o pudesse dominar!
P - Mas, então, as faixas de proteção e gestão do combustível (que podem ter 150 m de largura) não serviram para nada?
R - Talvez servissem, mas não estavam lá; a sua criação implicava que se comesse mais de 2/3 da área de um, ou mais proprietários.
P – Não estavam, mas certamente que havia cortinas corte fogo de árvores bombeiro e devem ter tido algum efeito?
R - Também não; essas árvores são de crescimento muito lento e não são suficientemente rentáveis para cada um dos proprietários.
P – Mau, e os caminhos e aceiros estavam limpos e desimpedidos?
R – Já há bastante tempo que ninguém lá tinha ido ver e, por isso, não se sabia o estado em que estavam
P – E não havia tanques de reserva de água?
R – Eram pequenos e estavam vazios, com a sequeira que houve este ano.
P – E os terrenos estavam limpos?
R – Estavam 2 ou 3, mas esses também arderam, porque os outros que os rodeavam, não estavam.
P – E como é que foram mobilizadas as populações para o combate?
R – Não podiam ser, porque a maioria são idosos e os novos, apesar do heroísmo que vieram a revelar, não estavam suficientemente preparados para o efeito.
P - E o que fizeram os bombeiros e os meios aéreos?
R – Fizeram o máximo que lhes era possível fazer, mas também não conheciam bem o terreno, porque em grande maioria vieram de fora; quanto aos meios aéreos mal puderam intervir, porque a cortina de fumo era de tal dimensão que os impedia de ver onde deveriam fazer as suas descargas.
P – Então, se é assim, só nos resta cruzar os braços e esperar que chegue a próxima tragédia?
R – Pois!
A conversa não pode acabar com um “pois”. Transcrevo-vos um belo pedaço de prosa que o Rui Gustavo, hoje publicou no Expresso Curto: No dia seguinte ao fogo que lhe destruiu as hortas e queimou tudo o que tinha plantado, Maria do Céu, uma mulher de 61 anos de Barraca da Boavista, no Pedrógão Grande, insistia em regar os cebolos calcinados: “Talvez a raiz tenha força. Parar é morrer.” Grande mulher! Que outra coisa se poderia dizer que não fosse: “A esperança é o nosso alimento”.
No entanto, e contrariamente ao que habitualmente é entendido, a esperança convida à ação, não aos braços cruzados. A ação significa aqui:
- O reconhecimento de que a gestão da floresta privada, nomeadamente, a floresta do minifúndio, possui demasiadas externalidades, para que se possa pensar que qualquer resultado positivo pode ser obtido pela simples intervenção do gestor individual;
- Impõe-se a articulação da ação do Estado e dos seus diferentes corpos administrativos, com a dos proprietários privados;
A reforma da floresta é urgente, mas não parece que o conteúdo da que vem sendo anunciada nos últimos meses seja mais do que mais uma reforma da floresta;
- Nenhuma reforma da floresta pode ter o pressuposto de que se podem obter todos os resultados a curto e médio prazo e, não sendo assim, há que mobilizar meios a distribuir pelos proprietários, de modo a que possam ver antecipados os resultados que, de outro modo, só obteriam a longo prazo;
- Qualquer reforma só pode ser sustentável se for suportada pela diversidade de espécies cultivadas, pelo respeito pela variedade ecológica, pelo conhecimento das características físicas dos terrenos, pela mobilização cidadã, etc;
- A reforma da floresta não se pode suster na simples “prevenção dos fogos”; a nossa vida em sociedade exige que a floresta não seja moldada, apenas, em função da possibilidade da existência de fogos, mas sobretudo, em função do equilíbrio entre a intervenção do Homem e as exigências da sustentabilidade da mãe natureza.
Começar por encontrar resposta às questões colocadas pelo diálogo atrás transcrito poderá ser um bom princípio. Por isso, mãos à obra, sem que nos deixemos embalar pelos numerosos cenários encantatórios que por aí tanto pululam, ao serviço dos mais variados macro interesses, escondidos por trás de poderosos lóbis que, tal como o periscópio dos submarinos, raramente mostram a sua configuração, mas o submarino está lá.
Muitos dos ventos cruzados com que temos de nos confrontar, que nos provocam inação, têm aí a sua origem.

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