Todos os ventos
cruzados provocam inação e estupefação. Uns são voluntários, outros
involuntários. Pode demorar-se mais ou menos tempo a reagir a eles e às suas
consequências; a rapidez da reação depende da previsibilidade que o fenómeno possuir
e da capacidade de que se dispõe para, quando acontecem, lhe fazer face.
O grau de
previsibilidade não é uma total indeterminação, para trás da qual possamos
atirar, sempre, a irresponsabilidade dos que com os ventos têm que se
confrontar. O grau de previsibilidade depende da forma como nos tivermos
preparado para combater os efeitos dos que venham a acontecer. Do mesmo modo
que, face à possibilidade da verificação de um fogo urbano, a lucidez não
aconselha, a que se construam edifícios mal preparados para lhes resistir ou, a
que se não façam exercícios de evacuação envolvendo todos os residentes de um
prédio ou os componentes de uma comunidade, também, face à possibilidade de
ventos cruzados nos incêndios florestais, os cidadãos e as suas estruturas
organizativas, não podem esperar que os fogos aconteçam, para saber o que são
ventos cruzados. A isto chama-se “proteção civil”. Aquela de que temos vindo a
ouvir falar é uma sua componente indispensável, mas, porventura, a de menor
peso. Proteção Civil, sem cidadãos mobilizados, não é digna desse nome.
Vamos ouvindo
dizer que “já tudo foi dito”, como que a querer significar que já basta de
conversa. É verdade que basta de conversa, mas, ainda nos é insuficiente, a sua
mastigação e digestão. As dores de barriga, que lhe são consequência, tornam-se
ano após ano, cada vez mais insuportáveis.
Os incêndios
exigem, certamente, uma discussão técnica e uma discussão política, mas
requerem, antes de mais, um envolvimento cidadão, que é tudo o que menos tem sido
incentivado. Aqui,
o Prof. Álvaro Vasconcelos escreveu: “Há tempos, como os que vivemos, em que a intervenção cívica é uma
obrigação. É a mobilização da cidadania, da sociedade civil, que está a travar
a vaga nacionalista, e poderá mesmo derrotá-la. Está aqui, talvez, a pista para
compreender as surpresas, agora positivas, que estão a surgir um pouco por toda
a parte”. Não posso estar mais de acordo com esta afirmação e entendo que ela
se aplica a todos os domínios da nossa vida coletiva: o nacionalismo, o
desenvolvimento, o euro, a organização e a crise financeira, os sismos, os
incêndios, etc.
Quando ouvimos dizer que
o incêndio, qualquer que ele seja, teve origem criminosa, ou uma causa natural,
e se desenvolveu de forma devastadora, as interrogações vêm em catadupa. Deixem
que vos transcreva uma conversa que qualquer um de nós poderia ter imaginado.
P - Porque é que o fogo não
parou 500 ou 600 m, à frente do local onde se iniciou?
R – Vinha
com tal força que não havia nada que o pudesse dominar!
P - Mas, então, as faixas de
proteção e gestão do combustível (que podem ter 150 m de largura) não serviram
para nada?
R - Talvez servissem, mas não
estavam lá; a sua criação implicava que se comesse mais de 2/3 da área de um,
ou mais proprietários.
P – Não estavam, mas certamente que
havia cortinas corte fogo de árvores bombeiro e devem ter tido algum efeito?
R - Também não; essas árvores são
de crescimento muito lento e não são suficientemente rentáveis para cada um dos
proprietários.
P – Mau, e os caminhos e
aceiros estavam limpos e desimpedidos?
R – Já há bastante tempo que ninguém lá
tinha ido ver e, por isso, não se sabia o estado em que estavam
P – E não havia tanques de reserva
de água?
R – Eram pequenos e estavam vazios, com
a sequeira que houve este ano.
P – E os terrenos estavam
limpos?
R – Estavam 2 ou 3, mas esses
também arderam, porque os outros que os rodeavam, não estavam.
P – E como é que foram
mobilizadas as populações para o combate?
R – Não podiam ser, porque a
maioria são idosos e os novos, apesar do heroísmo que vieram a revelar, não
estavam suficientemente preparados para o efeito.
P - E o que fizeram os bombeiros e
os meios aéreos?
R – Fizeram o máximo que lhes
era possível fazer, mas também não conheciam bem o terreno, porque em grande
maioria vieram de fora; quanto aos meios aéreos mal puderam intervir, porque a
cortina de fumo era de tal dimensão que os impedia de ver onde deveriam fazer
as suas descargas.
P – Então, se é assim, só nos
resta cruzar os braços e esperar que chegue a próxima tragédia?
R – Pois!
A conversa não pode
acabar com um “pois”. Transcrevo-vos um belo pedaço de prosa que o Rui
Gustavo, hoje publicou no Expresso Curto: No dia seguinte
ao fogo que lhe destruiu as hortas e queimou tudo o que tinha plantado, Maria
do Céu, uma mulher de 61 anos de Barraca da Boavista, no Pedrógão Grande,
insistia em regar os cebolos calcinados: “Talvez
a raiz tenha força. Parar é morrer.” Grande mulher! Que outra coisa se poderia dizer que
não fosse: “A esperança é o nosso
alimento”.
No entanto, e contrariamente
ao que habitualmente é entendido, a esperança convida à ação, não aos braços cruzados.
A ação significa aqui:
- O reconhecimento de que a gestão da floresta
privada, nomeadamente, a floresta do minifúndio, possui demasiadas
externalidades, para que se possa pensar que qualquer resultado positivo pode
ser obtido pela simples intervenção do gestor individual;
- Impõe-se a articulação da ação do Estado e
dos seus diferentes corpos administrativos, com a dos proprietários privados;
- A reforma da floresta é urgente, mas não parece que o conteúdo da que vem
sendo anunciada nos últimos meses seja mais do que mais uma reforma da floresta;
- Nenhuma reforma da floresta pode ter o
pressuposto de que se podem obter todos os resultados a curto e médio prazo e, não
sendo assim, há que mobilizar meios a distribuir pelos proprietários, de modo a
que possam ver antecipados os resultados que, de outro modo, só obteriam a
longo prazo;
- Qualquer reforma só pode ser sustentável se
for suportada pela diversidade de espécies cultivadas, pelo respeito pela
variedade ecológica, pelo conhecimento das características físicas dos terrenos,
pela mobilização cidadã, etc;
- A reforma da floresta não se pode suster na
simples “prevenção dos fogos”; a nossa vida em sociedade exige que a floresta
não seja moldada, apenas, em função da possibilidade da existência de fogos,
mas sobretudo, em função do equilíbrio entre a intervenção do Homem e as
exigências da sustentabilidade da mãe natureza.
Começar por encontrar
resposta às questões colocadas pelo diálogo atrás transcrito poderá ser um bom
princípio. Por isso, mãos à obra, sem que nos deixemos embalar pelos numerosos
cenários encantatórios que por aí tanto pululam, ao serviço dos mais variados
macro interesses, escondidos por trás de poderosos lóbis que, tal como o
periscópio dos submarinos, raramente mostram a sua configuração, mas o
submarino está lá.
Muitos dos ventos
cruzados com que temos de nos confrontar, que nos provocam inação, têm aí a sua
origem.
(Publicado, também,
em: http://circuloculturaedemocracia.pt/circulando/)
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