29 outubro 2013

Austeridade e dívida privada


A insistência com que os nossos governantes têm argumentado com os malefícios da dívida pública, procurando assim justificar uma brutal austeridade, tem feito passar para segundo plano a outra dívida, a dívida privada, a das empresas e das famílias. 

Contudo, um estudo[1] recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) vem alertar para que uma elevada dívida privada é mais prejudicial ao crescimento do que uma elevada dívida soberana. E conclui afirmando que o impacto negativo de uma dívida soberana excessiva só se faz sentir, reduzindo o crescimento, quando as famílias e as empresas também estão muito endividadas.

É bem sabido como as políticas de austeridade têm afectado a saúde da economia: empresas com dívidas elevadas, perante a contracção da procura que aquelas politicas reforçam, entram em acrescidas dificuldades para pagar os empréstimos bancários e não pensam em investimento de expansão nem se modernizam.

Por seu turno, os bancos ficam mais vulneráveis com os créditos “mal parados” e tendem a avaliar com redobrado rigor os riscos de novos empréstimos, deixando de cumprir a sua função, na medida desejável, em particular junto das PME.

É claro que estes mecanismos de propagação são de há muito conhecidos, mas a verdade é que as politicas de austeridade na zona euro, têm dado a primazia à redução, a todo o custo, das dívidas soberanas, como se elas fossem a raiz de todos os problemas e como se, uma vez atingidas as metas arbitrariamente impostas, ficasse aberto o caminho para a prosperidade.

Em Portugal, está em foco permanente a dimensão da dívida pública, enquanto o mesmo não se passa quanto à dívida privada.

 Contudo, é preocupante notar que a dívida privada portuguesa excedia, em 2012, 250% do PIB (ou seja, o dobro do peso da dívida pública que era então de 124% do PIB), colocando-a entre as situações mais críticas na zona euro.

Se, para além disto, tivermos em conta que a maior parte da dívida privada portuguesa respeita, não às famílias, mas às empresas não financeiras, e que este endividamento tem vindo a aumentar desde o início da crise, torna-se clara a dimensão das dificuldades que as nossas PME estão a atravessar, quando, para muitas, os seus lucros antes de impostos são absorvidos pelo pagamento de juros, tornando-as em empresas em situação precária.

Metade da dívida das empresas não financeiras seria detida, em Portugal, por estas empresas em situação precária!

A sobrevivência de um tecido empresarial, de que depende o futuro da nossa economia e a criação de emprego digno, torna assim inadiável a adopção de políticas de apoio especialmente dirigidas às PME, ao mesmo tempo que se deve por um travão ao caminho destruidor da austeridade.

Sobram as interrogações:

Até que ponto pode esperar-se alguma inflexão nas políticas de austeridade, ditadas, como têm sido, pelos interesses imediatos dos credores e pela vontade de um núcleo de países da União Europeia?

Quantas vezes mais será necessário ouvir reputados economistas comprovarem que nenhuma economia retomou a via da prosperidade com medidas de austeridade?

Que perspectivas de solução para a excessiva dívida privada?

Até quando a economia real continuará a ser secundarizada por causa dos interesses dos investidores especulativos que lucram com a crise das dívidas soberanas?
 

[1] Conforme referido pelo semanário The Economist no artigo The Euro crisis – Debtors’prison na sua edição de 26 de Outubro de 2013

2 comentários:

  1. Que solução para a excessina dívida privada? Que o estado gaste menos e com isso cobre menos impostos...

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  2. Excelente e oportuníssimo texto.
    Alerta, com perspicácia, para o fato de que nesta questão das dívidas pública e privada tudo está ligado. Não perceber isto dá as asneiras, escritas e praticadas, que se têm visto.
    O argumento dos impostos que retirariam capacidade de financiamento às empresas é conhecido, mas também se sabe que os próprios empresários não o utilizam para justificarem a falta de investimento.
    As questões colocadas pela Isabel são como o levantar de uma pedra cujo buraco está cheio de lacraus.
    Sabe-se que a dívida privada é, pelo menos três vezes superior à pública. Então porquê tanta preocupação só com a pública?
    A razão não é complicada. É porque os credores internacionais (e não poucos nacionais, como as instituições financeiras), como seria de esperar, estão preocupados é, sobretudo, com a dívida privada. Eles sabem que se as coisas correrem mal é o Estado que vai servir de instância de intermediação para reaverem os créditos concedidos, em primeiro lugar os das instituições financeiras que se endividaram, para emprestarem ao setor produtivo e sobretudo para realizarem aplicações especulativas (derivados, derivados, . . .).
    E como as coisas não estão a correr bem é ver as receitas do Estado a esvaírem-se, para financiar rendas, PPP, garantias bancárias, outsourcings, etc.
    As receitas não chegam? Não faz mal, vai-se ao Estado Social!

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