Sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2012
- Reflexões do Grupo de Trabalho «Economia e Sociedade» da Comissão Nacional Justiça e Paz
1. Considerando a importância de que se reveste o Orçamento do Estado para 2012 elaborado pelo Governo e em fase de apreciação na Assembleia da República, o Grupo «Economia e Sociedade» (GES) da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) torna pública a sua reflexão sobre a orientação estratégica e as medidas propostas pelo Governo, no entendimento de que, se as mesmas vierem a ser aprovadas e implementadas, terão, certamente, consequências muito negativas para o futuro da economia e da sociedade portuguesa nos próximos anos.
2. Movem-nos preocupações éticas e de responsabilidade cívica pela construção de uma sociedade mais justa, mais inclusiva, mais solidária e onde o ser humano seja o primeiro sujeito de um desenvolvimento sustentável, os mesmos princípios que ditaram as nossas anteriores tomadas de posição, designadamente a propósito do PEC 4.
3. Reconhecemos o alcance dos actuais constrangimentos de ordem financeira e outros com que o Governo se depara na tarefa difícil da elaboração do Orçamento do Estado para 2012, mas entendemos que estes constrangimentos não podem ser eleitos como objectivos per se e bem assim que os critérios de avaliação de desempenho não devem confinar-se à mera redução do défice ou do endividamento público.
4. Em nosso entender, é falsa uma dupla premissa em que assenta a elaboração do OE-2012 segundo a qual as medidas de severa austeridade são necessárias para ganhar a confiança dos mercados financeiros e os efeitos esperados de diminuição do défice e redução da dívida criarão um círculo virtuoso que virá a restabelecer o crescimento económico.
Trata-se de um raciocínio que ignora a complexidade e a opacidade de tais mercados, faz tábua rasa do conhecimento empírico acumulado acerca do impacto negativo das medidas de austeridade sobre a economia, minimiza a importância da conjuntura recessiva europeia e do efeito de contágio da crise noutros países da zona euro.
5. Os argumentos apresentados para uma estratégia de grande austeridade tão pouco são convincentes: tão depressa os compromissos do Memorando da Troika são ditos intocáveis, como são esquecidos para satisfazer interesses de alguns sectores ou caem por serem ostensivamente mal fundamentados. Este discurso errático, hoje como no passado, mina a confiança dos cidadãos e cidadãs nos governantes em geral e na sua capacidade para definir políticas credíveis.
Do mesmo modo, a forma como vão sendo “descobertos” e dados a conhecer sucessivos “buracos” orçamentais leva a descrer da capacidade governamental e das administrações para ter sob efectivo controlo as finanças públicas, como é desejável e imprescindível. Certo é que assim se alimenta a insegurança das pessoas que ficam na expectativa de ondas sucessivas de nova austeridade, sempre dita inevitável, à semelhança do que vem sucedendo em outros contextos.
Seria desejável que fossem encontrados mecanismos suficientemente robustos que, aos vários níveis de decisão, dessem garantia de transparência e prestação de contas permanentes.
6. Preocupa-nos, igualmente, que o OE-2012 pondere de forma muito desequilibrada os vários interesses em presença, favorecendo os dos credores, que são quem dita as regras de jogo, em prejuízo dos interesses legítimos da população portuguesa.
7. Damo-nos conta, também, e com particular cuidado, de que o OE-2012 revela uma chocante insensibilidade social, expressa em múltiplos aspectos com destaque para os seguintes: a drástica
redução dos rendimentos disponíveis das famílias, quer pela via dos cortes salariais, quer pelo aumento de impostos directos e indirectos, com consequências dramáticas para um aumento drástico da incidência da pobreza e das desigualdades na repartição do rendimento. Por outro lado, o facto de serem os salários e as pensões dos funcionários públicos o alvo prioritário da austeridade põe em causa princípios de justiça e de estado de direito.
Acresce que estas medidas não ponderam, como se imporia, a sua respectiva incidência em outras variáveis macroeconómicas, nomeadamente o consumo e a procura interna, que tenderão a contrair-se e, por essa via, a diminuir as receitas do Estado e a concorrer para a desaceleração da actividade económica.
O argumento da inevitabilidade de cortes nos rendimentos do trabalho é, ainda, menos convincente quando, por exemplo, se verifica que ficam praticamente intocados os rendimentos de capital, que são, como se sabe, prevalecentes entre os mais ricos
8. Não é difícil descortinar que, por detrás das medidas propostas, está uma opção ideológica pelo chamado “Estado mínimo”, mas há que salientar que esta não foi validada democraticamente, embora configure uma alteração do modelo constitucional em matéria de direitos sociais.
A mesma ideologia inspira cortes acentuados em sectores onde a responsabilidade do Estado deveria ser inquestionável, como é o caso da saúde, educação, segurança social, sectores em que a preocupação maior deveria ser garantir o seu funcionamento eficiente.
9. Também nos merecem reparo as alterações propostas em relação ao mercado do trabalho, pois aquelas rompem o contrato social construído nas últimas décadas, fragilizam de forma inaceitável os trabalhadores e potenciam maior conflitualidade social.
Acresce que é mais do que duvidoso que assim se aumente a competitividade das empresas, já que aquela depende, como é sabido, de múltiplos factores.
Mesmo em relação aos sectores exportadores, cabe notar que, em muitas situações, a remuneração do trabalho é apenas uma pequena parcela do custo de produção.
Com alterações tão penalizadoras para o factor trabalho e a previsão de um desemprego crescente, tudo se conjuga para que aumente a emigração por parte sobretudo dos jovens mais qualificados e com isso se acentue o empobrecimento do País.
10. Em suma, nesta proposta do OE-2012, por razões ideológicas e não tanto por razões de inevitabilidade funcional, o Governo parece ter escolhido o caminho da facilidade, o de atacar o elo mais fraco, em vez de aproveitar a crise para afrontar interesses instalados e proceder a um definitivo saneamento das contas públicas e à necessária reforma do Estado.
É preocupante, por exemplo, que não se assista, ainda, a uma renegociação urgente das Parcerias Publico - Privadas (PPP), cujo impacto futuro nas contas públicas se anuncia como muito gravoso e insustentável.
Também não se vislumbra qualquer intenção de promover uma renegociação da dívida, de modo a expurgá-la da respectiva componente especulativa e reavaliá-la no quadro das reconhecidas disfuncionalidades da zona euro. Acreditamos que esta via deve ser equacionada como caminho para ultrapassar o actual estrangulamento financeiro que obstaculiza o desejável desenvolvimento económico e social do nosso País.
Concluindo: Lembramos que o Orçamento do Estado não é uma peça técnica, com uma lógica contabilística de deve e haver. Trata-se de um instrumento de orientação e de estratégia política que exprime, promove, efectiva (quer pelas medidas que contém quer pelas que omite ou rejeita) uma ideia do papel a desempenhar pelo Estado, tendo em vista uma dada concepção de vida em sociedade, nas suas dimensões política, cultural, social e económica.
Ao partilhar as suas reflexões no espaço da comunicação social, o GES não tem outra pretensão que não seja a de contribuir para uma maior participação cívica na busca de melhores soluções para causas comuns.
No momento presente, trata-se de enfrentar os desafios de uma crise que, assumindo uma natureza reconhecidamente sistémica, exige que todos nos empenhemos em viabilizar um modelo de economia e de sociedade que dê prioridade às pessoas e ao bem comum.
Novembro 2011
Grupo Economia e Sociedade da Comissão Nacional Justiça e Paz