Nos últimos dias os jornais têm vindo a fazer eco de uma anunciada
"revolução no Ensino Superior (ES)". Infelizmente já estamos a
habituar-nos a estas parangonas e letras de caixa alta. Mas interessa que nos
questionemos sobre o que possa estar, de facto, por detrás disto.
Como se sabe, as restrições impostas pela pandemia de COVID-19
levaram à necessidade de substituir as aulas presenciais por modalidades
diversas de ensino à distância, também no ES. Assim aconteceu em diversas
instituições de ensino, no país e fora dele.
Ora, o que aparenta estar senão em curso, pelo menos em mente, sob
a capa daquela “revolução”, é nem mais nem menos do que um aproveitamento desta
situação pandémica para induzir no ES uma quase total erradicação das aulas
presenciais. Com vantagens para a política de recursos humanos, provavelmente.
Mas não é necessário que se reveja o actual “figurino” do ES?
Certamente que sim,
diversos estudos têm apontado nesse sentido e, também, alguns que temos vindo a
desenvolver no âmbito deste GES. Temos vindo a analisar, e a referir, que se
constata uma grande falha de formação teórica ao nível da Filosofia das
Ciências, da Epistemologia, da Ética, da História das Ciências, entre outros
domínios. E que essas lacunas são fatais para a formação criteriosa de
profissionais conscienciosos e socialmente responsáveis. Também temos
denunciado a grande limitação existente na formação em contexto real, desde
logo em Economia, mas profissionais de outros domínios se queixam do mesmo. Não
é, no entanto, legítimo que se deduza que se deva proceder a uma limitação da
mancha das aulas teóricas a favor de um incremento de tempos práticos e situações de
contacto com a realidade: ambas são necessárias!
Mais abusivo se torna, ainda, associar aulas teóricas a aulas que
possam e devam transitar, generalizadamente, para modalidades de ensino online,
como parece deduzir-se dos "fumos de informação" entretanto propalados. Com
efeito, há algum diagnóstico sério feito nesse sentido que baseie esta eventual
decisão política? Não, não há. Infelizmente.
Mas a nós interessa-nos conhecer a realidade. Assim, e por exemplo
no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), no primeiro semestre da
pandemia procedeu-se à quase completa substituição de aulas presenciais por
modalidades diversas de ensino à distância. Mas constatando-se os efeitos,
decidiu-se enveredar no semestre seguinte, e ainda em pandemia, por um regime
misto: oferecendo simultaneamente aulas presenciais e ensino à distância e
organizando a formação “em espelho”, isto é, de modo que metade dos alunos se distribuíssem
por aquelas modalidades e trocando entre si de duas em duas semanas.
Estamos neste momento a explorar os resultados de um inquérito que
visa, entre outros aspectos, proceder à comparação entre aqueles dois semestres
no ISEG. Embora ainda em fase muito embrionária, os resultados apontam para uma
preferência nítida pelo segundo regime, valorizando muito mais os alunos as
aulas presenciais, seguidas das aulas online síncronas, e do mesmo modo o
esclarecimento de dúvidas e as tutorias em regime de “face to face” ou, quando
muito, em tempo real…
A quem interessa, então, a redução ou eliminação das aulas
presenciais?
Não é, de certeza, aos alunos, sobretudo àqueles que se defrontam
com maiores restrições financeiras. Com efeito, os primeiros resultados dos
inquéritos que estamos a analisar apontam isso mesmo, revelando-se uma forte
associação entre ter mais dificuldade em adaptar-se e em identificar as
principais dificuldades de aprendizagem e pertencer a famílias menos bem
apetrechadas em recursos indispensáveis para o ensino à distância,
designadamente uma boa rede de internet, posse de webcam e outros recursos de
estudo complementares. Concordando com análises anteriores sobre o sistema de
ES no nosso país[1],
parece constatar-se mesmo mais: a persistência do efeito de inércia na
transmissão intergeracional do “capital escolar”, sobretudo por parte das mães.
As mães mais escolarizadas continuam a ter com maior probabilidade filhos que
se adaptaram melhor às novas modalidades de aulas e que obtêm melhores resultados,
facto que não deixará também de estar eventualmente associado a um maior nível
de rendimento familiar, relação ainda a confirmar.
O certo é que, uma vez questionados, os alunos sabem igualmente
indicar com grande clareza quais as políticas de educação e de acção social que
melhor os poderiam favorecer na transição para um ensino à distância em que se
encontrassem mais bem equiparados quanto a oportunidades: políticas de
propinas, de empréstimos públicos e bancários, de acção social indirecta, entre
outras modalidades.
Será que os decisores políticos estão a levar isto em conta quando
nos fazem chegar os primeiros “fumos” da desejada “revolução”? Não temos nenhuma
evidência que assim seja.
O mais preocupante é que as preferências e limitações expressas
pelos alunos do ES não constituem uma particularidade portuguesa, antes pelo
contrário!
Com efeito, os inquéritos lançados no ISEG e que estamos a
analisar são suportados por um questionário idêntico ao utilizado pela European
Students Union[2]
num inquérito sobre os efeitos da COVID lançado num conjunto amplo de países
europeus. E cujas conclusões antecipavam já, em geral, as tendências que por cá
estamos a começar a obter. Se bem que alguns desses países se note também uma
preferência dos decisores políticos por aulas à distância no ES.
Mas teremos nós atendido suficientemente ao nosso atraso relativo
em matéria de ES ou estaremos, uma vez mais, a querer apenas seguir a moda? E,
ainda para mais, sem cuidar das políticas de promoção da equidade social
indispensáveis a um ensino democrático.
[1] Como nos
demonstram diversos relatórios anuais Education at a Glance da OCDE (www.oecd.org/eag/).
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