13 junho 2021

As fragilidades da “festa” da nossa aldeia: porque é que se convidaram os russos?

 

Tomou-se conhecimento, durante a semana passada, de que a Câmara Municipal de Lisboa transmitiu à Embaixada da Rússia de informações de natureza pessoal sobre os organizadores de uma manifestação realizada nas suas proximidades. Simplesmente lamentável, ponto final.

Não deve, nem pode, no entanto, haver ponto final para a compreensão das razões porque é que tal aconteceu agora e pode ter acontecido em muitas outras ocasiões, para casos semelhantes, tendo em vista corrigir a existência de procedimentos inaceitáveis existentes e evitar que tal se possa vir a verificar no futuro.

O alarido em torno dos factos foi enorme, mas creio que de pouco terá servido para evitar a sua repetição. É o que pretendo aqui explicar.

Em primeiro lugar, as razões do alarido. É evidente que todas as violações de direitos fundamentais, como foi o caso, justificam a maior das denúncias com todo o barulho que for justificado, mas entendo que não devemos ficar por aqui, por muita satisfação que o foguetório dê à populaça.

É verdade que estamos em tempo de festas e, apesar da pandemia não as aconselhar, são muitos os que, mesmo com todas as restrições, insistem em promovê-las. Pensam, certamente, que sempre vale a pena correr alguns riscos e ter alguma animação. A comunicação social cá da terra tem um papel muito importante nessa promoção. Procuram estar sempre atentos para descobrir e nos alertar para as boas oportunidades de fazer uma festa, sobretudo se for possível acrescentar-lhe alguma pitada de condimento agridoce.. É verdade que a festa também é oportunidade para que com ela faça negócio. Tenho dúvidas sobre se o programa das festas tem ajudado a compreender a substância do problema, mas deveria ajudar.

São múltiplas as condicionantes da substância e não pretendo clarificá-las todas, mas apenas recordar algumas razões do comportamento das nossas administrações públicas que contribuem para que os seus efeitos possam ser os que venho denunciando.

Todos estamos de acordo que os dirigentes máximos dessas organizações terão que ser considerados como responsáveis políticos de tudo o que dentro delas possa acontecer. Contudo, as consequências do que é que daí possa decorrer não poderá deixar de ser objecto, também, de juízo político. Não devem ser tomados como responsáveis operacionais a menos que que estejam directamente envolvidos nas acções que são objecto de reprovação.

É aqui que importa compreender como são constituídas e como funcionam as máquinas burocráticas destas organizações. Vivemos em democracia há 47 anos, mas, infelizmente, os aparelhos burocráticos, apesar dos progressos registados, ainda continuam herdeiros dos comportamentos que eram adoptados durante o Estado Novo. Vejamos de que é que estamos a falar.

No regime anterior não se pedia aos funcionários públicos que pensassem, mas apenas que executassem, de acordo com procedimentos, que se pretendiam ser rigorosos, as directrizes que lhes eram transmitidas pelos seus superiores. Em termos de iniciativas tomadas poderiam ser penalizados pelas que acontecessem a mais, mas raramente o seriam pelas que estivessem a menos. Isto ajuda a compreender porque é que se os funcionários se comportavam como bons cordeiros, nunca se lhes pedindo que fossem responsáveis por coisa nenhuma.

Pouco disto se alterou após o 25 de abril. Os novos dirigentes tinham e têm objectivos a cumprir e o tempo que têm disponíveis não lhes dá ocasião para se ocuparem das disfuncionalidades da máquina burocrática. Esta, como antes, cumpre ordens e as disfuncionalidades a existirem serão corrigidas quando houver tempo para isso. Se a falta de resposta impedir o cumprimento de objectivos será sempre mais fácil superar a ineficácia dos serviços mediante o recurso a serviços de outsourcing ou a técnicos de gabinete de confiança, recrutados para o efeito, do que corrigir as ineficiências dos serviços.

Uma pergunta: quando as organizações funcionam mal por culpa dos serviços já alguém viu os seus dirigentes identificar os responsáveis das más decisões, daí retirarem as devidas consequências e fazerem a sua denúncia pública?

Os altos dirigentes da administração pública tinham e têm muito mais do que fazer do que se ocupar da reformulação e requalificação da máquina burocrática, tanto mais que os interesses instalados não se disponibilizam a abdicar, com facilidade, dos “privilegiozinhos”, possuam eles, ou não, interesses materiais, que ao longo do tempo se foram acumulando e que podem ter origem em razões partidárias ou outras. Pelos indícios de que se vai tendo conhecimento, a Câmara Municipal de Lisboa é um exemplo paradigmático do que venho escrevendo. Compreende-se, por isso, que apesar dos esforços feitos pelos sucessivos presidentes de câmara, todos devam ter concluído que para ir mais além seria necessário mexer no “saco de gatos “e, por isso, seria preferível deixarem as coisas andar, enquanto a asneira for tolerável, e continuar a deixá-los estar sossegados.

Tudo leva a crer que foi isto o que se passou com a questão da transmissão de informação. A máquina burocrática fez o que tinha a fazer, copiando o que já vinha de trás, sem que o bom senso e o sentido de responsabilidade tivessem visto a luz do dia.

Todos estaremos de acordo que a transmissão de informação a potências estrangeiras ou outras entidades é um acto grave para a democracia, mas tanto ou mais grave do que isso é a inacção dos responsáveis públicos face à falta de qualificação dos funcionários e a concepção de organizações capazes de dar resposta aos desafios que o mundo moderno coloca, que o funcionamento democrático da sociedade exige e que faz com que as asneiras aconteçam.

Feita a denúncia inicial, acrescento que grande parte da “berraria” que se lhe seguiu não adianta, nem atrasa nada em relação ao que importa ser mudado.  Todos os responsáveis políticos que têm vindo a fazer proclamações na praça pública, perante idênticas circunstâncias, com mais ou menos elegância, teriam tido exactamente o mesmo comportamento, porque o comportamento não era o seu, mas o da estrutura administrativa que eles não dominam, nem controlam e não têm coragem de enfrentar. Ainda por cima existe, hoje a ameaça da "rua"!

Apenas, mais uma referência à invocação que, principalmente, alguns senhores jornalistas têm vindo a fazer do pretenso enquadramento jurídico para os actos que vimos invocando: o Decreto-Lei n.º 406/74. Quase sempre, quem o tem feito não teve a mínima curiosidade em ir verificar o que nele está contemplado. Nada aí é referido quanto a transmissão de informação para o exterior! Também a propósito da invocação do que se não conhece importaria criar mecanismos de maior responsabilidade.

Valeria a pena, também, averiguar quando e porque é que o procedimento adoptado foi instituído. E eu me engano muito ou buracos como aquele de que vimos falando estará reproduzido como ninhadas de ratos em toda a administração pública, fazendo com que esta se torne ineficaz e ineficiente na promoção do desenvolvimento, em comparação com as de outros países, nomeadamente do norte.

Conclusão: mais trabalho, maior reflexão, menos feira e mais participação democrática é o que se precisa.

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