02 dezembro 2019

O equívoco da descentralização e a aplicação de pensos rápidos


Na sequência das eleições do passado dia 6 de outubro, o novo Governo tomou posse. Uma das características inovadoras da estrutura do Governo foi a localização de três das Secretarias de Estado fora de Lisboa, respetivamente em Bragança, Guarda e Castelo Branco (embora, no passado, iniciativas semelhantes já tenham acontecido).

A razão que então foi e continua sendo invocada para a deslocalização é a de que, com esta iniciativa, o Governo, ao tornar-se mais próximo dos cidadãos, mostra a importância que atribui à proximidade e à necessidade de dar resposta aos graves problemas com que o Interior se debate, em comparação com outras regiões do País.

As três Secretarias de Estado deslocalizadas são: a da Valorização do Interior, em Bragança; a da Acção Social, na Guarda e a da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território, em Castelo Branco.

As intenções são muito bondosas, mas não têm eficácia para a realização do objetivo proclamado. Vejamos porquê.

Comecemos por uma questão conceptual. Tanto responsáveis políticos, como comentadores de vários matizes, têm-se referido a este movimento de deslocalização como uma iniciativa de descentralização. Importa desmontar e denunciar esta ideia de descentralização que nada tem a ver com o verdadeiro conceito de descentralização. A descentralização é outra coisa e não existe se, simultaneamente, não se verificar a transferência de competências do Estado Central para outras instâncias, neste caso para as autarquias locais, passando estas a ser autónomas na gestão das competências transferidas.

Apesar da abundante literatura existente sobre o que é a descentralização, parece que quem se tem referido à iniciativa como sendo de descentralização, a ignora completamente o seu conceito e os seus fundamentos. Parece que não tem tempo para parar cinco minutos e sobre isso refletir um pouco. Isto é tanto mais grave, quando tem pouco mais de três meses a divulgação do importante trabalho produzido pela Comissão Independente para a Descentralização, que constitui um contributo inestimável para a compreensão desta e de outras questões. E foi o governo anterior quem criou a Comissão e lhe encomendou o trabalho que esta realizou. Contrair desta forma, e sem mais, o que lá está dito e bem refletido não parece ser de bom conselho.

Haverá quem procure desvalorizar a questão que aqui trago à reflexão com o argumento de que se trata apenas de um pormenor teórico sem importância. Refuto completamente esta ideia. O rigor, nesta e em outras matérias, nunca foi incompatível com a fundamentação de uma boa reflexão e, na sua sequência, da tomada de acertadas decisões políticas. Ignorá-lo só pode dar origem a asneiras que podem ser de difícil e custosa reparação.

A deslocalização das Secretarias de Estado pode ter virtualidades, não são é, certamente, as que lhe têm vindo a ser atribuídas, nomeadamente as que têm a ver com a resolução dos problemas das zonas em que se vão sediar, com o argumento da proximidade.

Qualquer Secretaria de Estado é uma instituição de âmbito nacional e, qualquer que seja o local em que se encontra localizada quando decide fá-lo no interesse do todo nacional e não no interesse particular deste ou daquele território. Uma Secretaria de Estado, localizada em Bragança, Guarda ou Castelo Branco é um órgão do poder central, ponto final.

Nem sequer se pode dizer que é um órgão do poder central desconcentrado na região da sua localização, porque para isso era preciso que tivéssemos bocadinhos de cada Secretaria de Estado localizadas em cada um dos territórios, para, em cada um deles, cuidar dos interesses do poder central.

Evidentemente que não é tudo pura perda. A localização de uma Secretaria de Estado numa cidade tem para essa cidade a potencialidade de aí ser indutora de animação económica, criação de emprego, etc. O que não é politicamente correto é pretender retirar da deslocalização virtualidades que ela não possui. Ficarão alguns muito contentes com a iniciativa, mas o tempo encarregar-se-á de trazer o desânimo resultante da não obtenção de resultados que tinham sido enunciados.

Assim, esta deslocalização das Secretarias de Estado não vai resolver os problemas que com ela se pretendiam superar. Pouco mudará, o que só servirá para descredibilizar o genuíno processo de descentralização. Tapa-se o ferimento, mas nada é feito para que o mal de que ele é manifestação seja curado. Daí a alusão, no título, aos pensos rápidos.

Antes de terminar, uma breve referência ao Congresso, que no passado fim de semana, teve lugar em Vila Real, promovido pela Associação Nacional de Municípios, sujeito aos temas da Descentralização e da Regionalização.  Trata-se de temas muito oportunos, mas fica-se na dúvida sobre se os comentadores e oradores entendem os dois temas como processos separados (alternativos) ou, se como deveria ser entendido, consideram a regionalização como uma componente do processo de descentralização.

Ainda se conhece pouco do que lá se passou. No entanto os media transmitiram alguns ecos. Independentemente de poder voltar a abordar o assunto, comento, desde já, duas das questões aí referidas: as eleições para as CCDR e o ritmo da regionalização.

Quanto à primeira, não vi referido que as CCDR deixavam de ser órgãos delegados da Administração Central. Se assim é, não há volta a dar-lhe: os seus órgãos executivos só podem ser escolhidos pela Administração Central. Proceder de outro modo só pode conduzir por caminhos tortuosos. Mas, mesmo que deixassem de ser órgãos delegados da Administração Central, passando a ser instâncias, com autonomia, de administração regional, não se percebe como é que podem obter legitimidade regional, quando são eleitos por quem só tem legitimidade local.

Quanto ao ritmo da regionalização tem-se referido que em matéria de apreciação tão delicada e com vista a não criar fraturas adicionais entre os portugueses importa adotar uma estratégia de “pequenos passos”. Não se sabe, exatamente, o que isso quer dizer mas, o que se sabe é que os passos sejam grandes ou sejam pequenos devem ser dados depois de reflexão rigorosa, que é algo que tem faltado na maioria dos debates que, no passado, vimos acontecer sobre a questão da regionalização. Não surpreende, por isso, que as iniciativas que em matéria de regionalização têm sido tomadas tenham gerado tantas reações adversas. Até parece que quem as toma pretende precisamente lançar confusão no debate sobre a regionalização para que ela não venha a acontecer.


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