05 janeiro 2012

Da “Limitação de Avarias” à contenção do deficit

Começo com uma “declaração de interesses”. Como há uns anos se dizia, fiz a tropa, isto é, cumpri o serviço militar, na Marinha, tendo sido incorporado para prestar serviço na arma de Administração. Foram muitas e variadas as experiências aí vividas e delas recolhi muitos ensinamentos para a vida.

Uma das coisas que então me surpreendeu foi a circunstância de, tendo sido eu incorporado para prestar serviços de administração, ter sido obrigado, durante a fase de aprendizagem inicial (recruta), a realizar um conjunto amplo de aprendizagens que iam muito para além das questões de administração.

Após a surpresa inicial, pude compreender que aqueles exercícios iniciáticos me ajudavam, por um lado, a melhor compreender o mundo da Marinha e por outro, a estabelecer, com mais facilidade, relacionamentos com os camaradas da minha e de outras especialidades.

O que já disse chega como enquadramento ao que pretendo abordar.

Vamos, então, ao essencial do que me proponho aqui, hoje, trazer, ou seja: a relação da “Limitação de Avarias” com a contenção do deficit. Pode parecer estranho, mas verão que não é tanto quanto isso. Veremos que a aprendizagem feita na vida e com os outros é, na limitação de avarias, tão importante como na contenção do deficit e inversamente. Por isso, é sempre de desconfiar quando nos dizem que encontraram um grande especialista que será capaz de tudo resolver, relativamente a um dado problema, mesmo que pouco tenha pensado nas outras matérias que não são da sua especialidade.

Começo, então, com a “limitação de avarias”. Esta não era mais do que uma aprendizagem que tinha como objetivo dotar os recrutas de competências que lhes permitissem fazer face a anomalias, não previsíveis, na vida da Marinha e, nomeadamente, durante a navegação.

Um dos exercícios práticos desta aprendizagem de limitação de avarias consistiu em distribuir aos recrutas um conjunto de instrumentos, entre os quais se incluíam, baldes, panos, vassouras, tábuas, vigas de madeira, pregos, martelos, etc. Seguidamente, fomos encaminhados para dentro de uma construção que se assemelhava a um navio, sem sabermos muito bem o que, em seguida, se ia passar. Estranhei logo de início a dimensão destes instrumentos. Por ex., os baldes mais pareciam os baldes com que os meninos brincam na praia!

Entrados dentro do navio, rapidamente compreendemos no que é que estávamos metidos. De repente, começámos a ser envolvidos por água por todos os lados e tivemos que ir à procura da origem de tal anomalia. Não foi difícil encontra-la; tinha-se verificado um rombo no casco.

Que fazer? Naturalmente, limitar a avaria. Todos nos mobilizámos para o efeito. Uns pegaram em baldes e procuraram retirar a água do navio; outros em tábuas, martelos e pregos e foram tentar tapar o rombo. Depois de um bom duche lá conseguimos levar a nossa missão a bom porto. O rombo foi tapado e a água que se espalhava no chão foi lançada fora. Aí percebi porque é que os baldes tinham que ser pequenos; é que se fossem maiores, a sua manobra impediria o trabalho uns dos outros.

O que tem isto a ver com a contenção do deficit? Certamente que já adivinharam que, tem tudo. O deficit corresponde à água que entra; para não ficar com os pés molhados há que deitá-la fora, usando os baldes. O tamanho dos baldes corresponde à intensidade das medidas de austeridade adotadas para conter o deficit.

Os jovens recrutas que tinham aprendido algo mais do que os rudimentos da sua especialidade de administração, rapidamente compreenderam que se ficassem pela estratégia dos baldes não iriam longe: a água continuaria a entrar e cada vez mais com maior intensidade.

Isto é, tornava-se necessário usar os baldes (austeridade) mas, sem mais, isso deixava de ter sentido, porque quanto mais água retirassem mais água tinham que retirar (isto é a austeridade gerava mais austeridade). Era necessário tapar o rombo, ou seja ir ao encontro da razão do ser da entrada de água (do deficit) no navio (na economia) e eliminá-la (vide, por ex. o seguinte excelente post). De outro modo, cada vez o rombo (deficit) ficaria maior e mais água haveria para lançar fora (mais austeridade). E assim foi feito.

Contudo, na economia portuguesa e na grande maioria das outras economias europeias em situação idêntica à portuguesa, para conter o deficit, não é isso o que tem acontecido . Não tem havido quem se ocupe do rombo no casco (das razões da falta de crescimento e desenvolvimento na economia, de modo a que as condições que justificam o aumento do deficit possam ser eliminadas).

Moral da história:

1. Não basta ser especialista em panos, vassouras e baldes (ou em finanças) para ser capaz de dar resposta adequada à resolução das avarias do navio (ou da economia do país);

2. Para dar resposta aos problemas com que o país se defronta torna-se necessário um intenso trabalho de equipa, embora tenha que haver, sempre, no navio, um comandante que coordene o trabalho da guarnição.

A continuarmos assim, hoje estamos mal, amanhã estaremos pior.

Mas não temos que continuar assim (mais uma vez, ver aqui)!

2 comentários:

  1. Excelente post! Concordo.
    Uma das origens do problema que enfrentamos é a proliferação dos especialistas que não olham de um modo tranversal aos efeitos dos seus actos no conjunto. O resultado podia ser bom para o própio ou para o seu grupo, mas tóxico para a sociedade.

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  2. É evidente que o exercício da governação é, apesar dos desvios que esta possa ter, uma questão de responsabilidade política (de cidadania plena) e não de sobreposição de especializações que tendem a anular-se mutuamente.
    A ação dos políticos deve ser informada pelos contributos das especializações, mas não pode ser por ela ser substituída.

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