Notas sobre o Acordo de um empréstimo à República no valor de 78 mil milhões de euros assinado entre o Governo e as entidades financiadoras (BCE, EU e FMI)
O Acordo imposto pelas entidades credoras, como contrapartida de um empréstimo de 78 mil milhões de euros, não só compreende um vasto e pormenorizado conjunto de medidas visando alcançar equilíbrios financeiros a curto prazo (3 anos), como traça caminhos de estratégia política e económica com grandes consequências para a construção do nosso futuro colectivo. Por isso, não deve a sociedade civil ignorar o que foi acordado ou desinteressar-se do modo como venha a ser implementado e, eventualmente, renegociado o referido Acordo.
O Acordo está baseado no pressuposto de que o problema do desequilíbrio financeiro existente no nosso País e que obrigou a recorrer ao empréstimo decorre exclusivamente da deficiente gestão pelo Estado das nossas contas públicas.
Sem subestimar a necessidade de pôr em ordem as contas públicas, introduzir maior eficiência nos serviços e fazer adoptar melhor comportamento ético e prudencial por parte de todos os responsáveis das diferentes entidades nacionais, o certo é que o desequilíbrio financeiro actual também está associado à crise bancária e financeira internacional e suas consequências no funcionamento das economias bem como decorre de uma muito deficiente arquitectura económica e financeira da U.E e da União Monetária (U.M.) com consequências particularmente gravosas para as economias nacionais mais fragilizadas dos Países da Zona euro.
Na aplicação do Acordo há, pois, que ter em conta esta sua dupla fragilidade de concepção de base e não desistir de procurar viabilizar com urgência as medidas que se impõem no plano mundial e comunitário (eliminação de offshores, regulação e tributação das transacções financeiras, acreditação das agências de notação, e uma outra política económica e financeira europeia, que, em articulação com o BCE, promova o desenvolvimento do conjunto e de cada um dos seus membros, com as especificidades que lhes são próprias, revendo, em consequência, o mandato do BCE e criando mecanismos de suporte, nomeadamente eurobonds. Só por este modo se poderão ultrapassar as causas da presente crise financeira.
O Acordo tem por suporte a teoria económica que tem prevalecido nas últimas décadas como fundamentação para a tomada de decisões por parte dos agentes económicos e financeiros, ignorando outros paradigmas teóricos da ciência económica, o que é, em si mesmo, uma limitação, pois não permite dar visibilidade aos verdadeiros objectivos que deveriam ser visados (qualidade de vida das pessoas, erradicação da pobreza, repartição equitativa do rendimento, emprego, desenvolvimento e sustentabilidade, …), dando apenas relevo às variáveis representativas dos equilíbrios financeiros. Trata-se de uma grande limitação, tanto maior quanto tais equilíbrios não são neutros do ponto de vista da incidência que têm na economia e na coesão social.
Por outro lado, o Acordo omite o reconhecimento das potencialidades do País no que se refere a recursos humanos qualificados, investigação e inovação, capacidade produtiva já instalada, recursos esses paradoxalmente por aproveitar, a par de necessidades básicas de largos estratos da população, por satisfazer.
Poder-se-á argumentar que não se pretende com o Acordo traçar um plano de desenvolvimento para o País e que essa é missão das autoridades nacionais competentes. Assim é; contudo, as exigências impostas em metas e prazos estabelecidos pelo Acordo possuem tais características que a opção pelo desenvolvimento é, completamente, ignorada ou tornada impraticável no futuro.
Se tal vier a suceder, não só as consequências serão gravosas para as pessoas (mais desemprego, menos acesso e menor qualidade nos serviços públicos, redução significativa no nível de rendimento da classe média, maior pobreza, por exemplo) como também terão incidência na vida das empresas e no desempenho do conjunto da economia, o que não deixará de repercutir-se no cumprimento do próprio Acordo (menor crescimento económico e recessão mais acentuada, menores receitas do Estado, maiores custos sociais, maiores dificuldades em honrar a dívida).
Assim, impõe-se colocar a questão de saber se é a correcção das contas que permite o crescimento e o desenvolvimento, se é o crescimento e o desenvolvimento que arrastam o desaparecimento dos desequilíbrios financeiros ou, ainda, se não deverá ser perspectivada alguma estratégia que pondere, adequadamente, um e outro dos pontos de partida.
A este propósito, a sociedade civil deverá mobilizar-se para impedir que tal suceda, assumindo um papel activo em defesa da sociedade do bem-estar, promovendo o desenvolvimento local, a promoção e qualificação da economia social, exercendo pressão junto do Governo e das Autarquias no sentido da viabilização de estratégias de desenvolvimento a prazo que se baseiem na valorização de recursos locais (recursos humanos, materiais e de conhecimento) e na satisfação de necessidades materiais ou de serviços pessoais, estratégias essas que envolvam uma participação efectiva das próprias pessoas.
O Acordo comporta também compromissos em termos de modelo económico e sociopolítico de forte pendor neo-liberal, nomeadamente os seguintes: impondo maiores compromissos no tocante a privatizações de empresas, até agora, directa ou indirectamente, sob orientação estratégica do Estado; nova legislação em matéria de relações laborais no sentido da respectiva desregulação; medidas de política no domínio da justiça, da educação, da saúde ou da segurança social. Não se atreveram a propor que se venda a Berlenga ou algumas das ilhas do Atlântico… como chegou a acontecer no caso da Grécia, mas não será demais imaginar que algumas veleidades poderão vir a surgir nessa direcção.
São certamente de ponderar algumas das soluções preconizadas e já acordadas, medidas que vêm ao encontro da necessidade de uma gestão pública mais eficiente e consequente redução de gastos públicos, mas cabe ao povo português e aos seus legítimos representantes ajuizar da pertinência e oportunidade da respectiva concretização. Por exemplo, não se compreende que se recomende prosseguir na política de criação de grandes agrupamentos escolares, sem uma rigorosa avaliação da experiência havida, com base nos já implantados. Por maioria de razão, não pode aceitar-se, à luz dos princípios constitucionais que nos regem, que qualquer revisão da legislação em matéria de relações laborais prescinda da prévia concertação social ou que, insidiosamente, se passe de um serviço de saúde tendencialmente gratuito para um tendencialmente pago …
A cumprir-se o Acordo tal como previsto, são de recear consequências muito negativas para certos sectores de população a saber:
• os funcionários públicos, cujas remunerações e outros complementos remuneratórios sofrerão reduções significativas (reduções em valor nominal nuns casos e em valor real em todas as situações) e cujo stress aumentará por efeito das previstas reduções de pessoal por cessação de contrato ou passagem à reforma sem direito a substituição do respectivo posto de trabalho;
• os reformados, que verão reduzido o valor real das respectivas pensões por efeito do seu congelamento ou mesmo redução;
• os sem emprego, cujo número aumentará significativamente, (taxa de desemprego prevista de 13%);
• os assalariados, sobretudo os de baixos salários, cujos níveis salariais tenderão a estagnar e a conhecer agravamento da desigualdade já elevada;
• os proprietários de casas com hipoteca bancária, obrigados que são a suportar juros cada vez mais elevados e, em algumas situações, incompatíveis com os rendimentos auferidos ou com a situação de desemprego em que possam vir a encontrar-se.
Ameaçados ficam também os serviços públicos (educação, saúde, segurança, justiça) devido aos cortes orçamentais previstos, nomeadamente se estes forem feitos de maneira cega e sem cuidar de critérios de qualidade e de garantia de equidade na prestação desses serviços de utilidade pública. A recomendação da centralização e concentração de serviços públicos não poderá deixar de se traduzir, em muitos casos, numa forte degradação das condições da sua prestação e de impacto negativo sobre o desenvolvimento local a que tais serviços estavam associados.
Por todas estas razões, é de recear que a incidência e a severidade da pobreza aumentem, que as desigualdades de rendimento e de oportunidades se agravem, que a confiança no futuro se desvaneça, que a coesão social enfraqueça, tudo se conjugando para dar lugar a manifestações de descontentamento social de consequências imprevisíveis.
Num tal contexto social, os incentivos que segundo o Acordo se pretendem dar ao sector privado dificilmente encontrarão ambiente favorável ao investimento na economia real com criação de novos empregos, antes poderão ser desviados para outras aplicações e paragens.
O acordo estabelecido é vasto e suscita muitas outras observações sobre múltiplos aspectos específicos como sejam a taxa social única e sua incidência na segurança social, a facilidade de despedimento, as privatizações, a falta de equidade fiscal na tributação do capital. São temas já abordados ou a abordar futuramente neste blogue.
Não obstante o carácter aparentemente fechado do Acordo (quantificação de metas, medidas e prazos a cumprir como condição de desbloqueamento das prestações acordadas), não são despiciendos nem o modo como as soluções previstas serão concretizadas nem o recurso que venha a fazer-se de outro tipo de medidas não contempladas no Acordo e que poderão atenuar os efeitos negativos atrás mencionados.
De tudo o que pode ser visto e analisado no Acordo decorre uma preocupação destemperada de, por esta via, dar satisfação aos interesses das instituições que concedem o grande empréstimo e, de forma mais recuada, mas sempre presente, salvaguardar os interesses dos credores de dívida passada, sem qualquer vislumbre de preocupação com as condições de desenvolvimento da economia e sociedade portuguesas e do bem-estar, presente e futuro, dos portugueses, nomeadamente dos que se encontram em situação de maior precariedade.
À medida que as condições o permitirem, o Acordo deverá ser revisto em conjugação com uma necessária auditoria à dívida que lhe está subjacente.
Nota: Este texto foi relaborado com os contributos dos membros do Grupo Economia e Sociedade da Comissão Nacional Justiça e Paz
Manuela Silva
28 06 2011