15 outubro 2010

A crise e “os outros”

Trago aqui algumas, poucas e breves reflexões, que me ocorreram na sequência da entrevista a António B., à Antena 1, difundida há dois dias. Ela serve-me mais como pretexto, do que como objecto de apreciação.

A crise tem vindo a ser o centro de reflexões e debates, apreciada de pontos de vista diversos, conforme as perspectivas e os interesses dos seus animadores. As balizas dos debates passam muito pela adopção de horizontes de curto, ou de médio e de longo prazos, pelos interesses económicos e financeiros dos que neles se encontram envolvidos, etc. Conforme a plataforma em que cada um se coloca assim, um mesmo resultado, ou medida de política, pode ser considerado bom ou mau.

Tem sido confrangedor verificar como o “tempo”, passado e futuro, tem estado ausente dos debates. É comum identificar-se a crise com deficit público, sem se procurar compreender, como as razões de médio e longo prazos o podem explicar e como o planeamento do crescimento e do desenvolvimento podem constituir a única via da sua superação.

No curto prazo, as medidas de política propostas poderão ser inevitáveis (o que é discutível), mas é completamente diferente tomá-las sem cuidar do que se quer que se passe amanhã, ou procurando preparar e construir, já, esse futuro. Sem perspectiva de futuro, não há presente que nos valha!

O Orçamento do Estado tem sido, nas últimas semanas, a estrela do circo da crise. Vai continuar a sê-lo. Curiosamente, nem uma palavra se tem ouvido sobre o conteúdo das Grandes Opções do Plano que, obrigatoriamente, o têm de acompanhar. Ora, o mesmo orçamento pode ter significados diferentes, conforme as Opções do Plano, que o projectam no futuro. Não basta que existam; é imperioso que as Grandes Opções do Plano sejam parte do debate e reflexão em que o país se vai envolver nas próximas semanas.

Por outro lado, não se compreende que a discussão do deficit português adopte a lógica redutora, que a centra na discussão do deficit público. O deficit do país, como oportunamente o recordou o Presidente Jorge Sampaio, é constituído pelas suas componentes pública e privada. Possuindo esta uma muito maior dimensão e um conteúdo de risco muito mais gravoso, uma vez que suporta aplicações financeiras cujo reembolso é muito mais problemático que o dos empréstimos ao Estado, não é legítimo pensar-se que resolvido o deficit público o outro estará necessariamente superado e assim, também, os problemas do país. Pelo contrário, é a dimensão do privado que condiciona as boas soluções para lutar contra o deficit público e não o contrário.

Não posso, também, deixar de explicitar a minha profunda aversão à lógica dos analistas e comentadores da situação portuguesa, que se colocam num pedestal de observação, a apreciar a passagem da procissão da crise, como se não devessem, quer em relação a responsabilidades do passado, quer em relação a envolvimentos futuros, tornar transparente o seu compromisso.

Esta postura é tanto mais grave, quando esses analistas e comentadores exprimem pontos de vista, segundo os quais estaríamos chegados ao fundo do poço, sem encontrar luz para perspectivar uma saída. Colocam-se numa posição e transmitem-nos o sentimento de que já não há lugar para a Esperança. Ora esta não pode deixar de ser considerada como o condimento central para a obtenção de qualquer solução para a crise. Enquanto fundadora da ultrapassagem de todas as situações de dificuldade colectiva, a solução da crise não pode ser considerada como dependendo de “os outros”; ela é com “os outros” e com todos e cada um de nós.

Só sairemos do deficit, de forma sustentável se, hoje, em conjunto e cada um à sua medida, colaborarmos para construir soluções de futuro, que são garantes de que, com ou sem deficit, seremos todos donos de nós próprios.

As margens de liberdade têm-se vindo a estreitecer, mas a força da acção colectiva ainda pode, deve e é capaz de abrir novas portas à Esperança.

3 comentários:

  1. Mas...fará sentido pensar num Plano para Portugal que navegue à margem das rotas da esquadra da UE ? E qual é o plano de navegação Europeu, onde anda o Norte por onde nos orientarmos ? Se não existe, que alternativas temos à cabotagem que criticamos?

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  2. Tem toda a razão, o Manuel Rocha, ao colocar a sua questão e dúvidas. Com efeito, a apresentação das Grandes Opções do Plano é obrigatória, com o Orçamento, mas não faz qualquer sentido ter grandes opções para o plano e não ter plano.

    Não existe Plano porque em algum momento alguém pensou que ter plano era tolher a liberdade dos agentes económicos, o que era e é falso. O Plano deve ser um compromisso dos agentes económicos quanto ao seu comportamento no futuro, tendo em vista a redução da incerteza decorrente do desconhecimento do comportamento dos outros agentes.

    Argumenta-se que o futuro é cada vez mais incerto, mas é precisamente por causa disso que as grandes empresas preparam planos tanto mais rigorosas quanto maior é o grau de aleatoriedade.

    Em algum momento, houve alguém que pensou que havendo o QREN, já não era preciso mais plano, o que é falso, porque para além do que está no QREN, há muito ainda sobre que temos que conversar e deveríamos conversar mais sobre o QREN.

    É certo que a adesão à UE nos impõe limitações de decisão, mas também é verdade que a UE não é nenhum monstro que não possamos derrubar, nomeadamente, atraves da accção dos Estados mas, também, da acção e mobilização dos cidadãos.

    É o que estamos fazendo com os grãos de areia que juntamos no dia dia.

    Pode, assim, o Manuel Rocha ter a certeza de que correrá menos riscos de encalhar levando o seu navio para o alto mar do que permanecendo em navegação de cabotagem.

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  3. Só muito recentemente tive conhecimento do vosso blog. Parabens!

    Só hoje li " A crise e os outros" que veio responder à "tristeza" que sentia em ver que a maiora das soluções apresentadas pelos "especialistas" para a resolver ... mais parecem uma cortina de fumo para manter uma situação insustentável.

    Concordo com o Manuel Alves.
    Abraço
    Manul P. Magalhães

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