26 fevereiro 2014

No acautelar é que está o ganho!

Possuir sentido de previdência, com moderação, é, normalmente, entendido como uma postura de sabedoria. Mas há, também, quem creia que adotar previdência exagerada tolhe a liberdade e a capacidade de iniciativa, que permitem ir ao encontro de coisas novas e, sobretudo, de ir ao encontro das pessoas que nos são próximas, com um coração sincero para, com eles, fazer “o caminho” em comum (o Presidente José Mujica do Uruguai tem-nos dado, a este propósito, testemunhos infindáveis, por ex., quando nos mostra que não necessita, mesmo como Presidente, de mais do que uma casa de 3 assoalhadas e o seu carocha. Ver por ex. aqui Porventura, a verdadeira sabedoria poderá estar algures entre as duas situações extremas. A previdência e a cautela são virtudes que não se deverão antagonizar.
 
Trouxe, aqui, o mote do “acautelar” a propósito do muito que, entre nós, se tem falado da necessidade da necessidade de virem a ser adotados “programas cautelares” ou, em alternativa, da possibilidade de virmos a ter uma saída “limpa”, após a designada saída, no próximo mês de Maio, da troika. Um programa é cautelar, porque acautela; uma saída é limpa, porque supõe que o caminho a trilhar é seguro e nenhuma cautela exige. Importa perceber, no primeiro caso, o que é que e quem é que se acautela; no segundo, convém, igualmente, ajuizar sobre o que é que e quem é que foi ao banho, e se dele sai limpo.
 
Algo de muito estranho se tem passado na discussão desta matéria em Portugal. Os responsáveis da governação falam das duas alternativas, como se fosse indiferente optar por uma ou por outra, afirmando, insistentemente, algo de parecido com: “estamos igualmente preparados para poder vir a adotar uma solução ou outra”. Contudo, o vir a adotar uma ou outra das alternativas é tudo menos indiferente.
 
Além disso, tem-se deixado difundir a ideia de que a troika brevemente se vai embora e que, depois, mais nada teremos a ver com troikas. Trata-se de uma mistificação; do “encobrimento do verdadeiro negócio”. A verdade é que enquanto houver dívida a pagar, os inspetores que tutelam os interesses do capital em dívida vão andar por aí, com muita frequência, e só nos largarão quando a dívida deixar de existir. Há quem pense que, pelo fato de nos termos “portado bem até aqui”, vamos passar a ter acesso aos salões e poder conversar de igual para igual com os restantes convivas. Puro equívoco. Olhar-nos-ão de soslaio, como quem diz, estes são os tais e, quando muito, aceitarão que possamos ouvir as conversas dos crescidos através das quais nos transmitem os comportamentos que deveremos continuar a adotar.
 
Para compreender melhor o imbróglio em que estamos metidos convém entender o que é isso de “saída limpa” e de “programa cautelar”. Fala-se de “saída”, para significar que terminou o “programa de assistência”, como que se já pudéssemos ir para a rua apanhar sol. A saída será “limpa” se a pudermos realizar sem termos que ir apoiados por muletas e sem que nos seja exigido que transportemos um pancarta em que está escrito ”doente em estado de convalescença”. Podemos ir às compras, aos mercados, e ninguém nos reconhecerá como anteriores delinquentes.
 
Ir aos mercados e não ser discriminados nas compras que fazemos significa que pagamos o mesmo que os restantes clientes. Ora, neste momento, pagamos taxas de juro entre os 4,5 e os 5%; alguém poderá pensar que em dois meses vamos passar em ser gente credível, isto é, a ser uma economia robusta de que já não há que esperar qualquer risco e vir a pagar taxas de juro 2 ou 3 pontos mais baixas?
 
 A robustez da economia continuará alheada de nós e, por isso, mesmo que se diga que a roupagem usada está limpa, o teste dos glutões não se deixará enganar. Consequência? Mesmo que não haja programa cautelar, as taxas de juro permanecerão afastadas do que são as nossas possibilidades de pagamento; a dívida cairá na banda da insustentabilidade; continuaremos a pedir emprestado para pagar juros e os inspetores poderão por aí ser encontrados, para garantir que os recursos do país serão afetos, antes de tudo, ao reembolso do capital financeiro. É isto a saída limpa.
 
Se a alternativa for a de “programa cautelar”, convém esclarecer que há dois tipos de programas cautelares: o PCCL (Precautionary Conditioned Credit Line) que é uma sua versão leve e o ECCL (Enhanced Conditions Credit Line) que é uma versão pesada. O que distingue uma de outra é, no essencial, o seguinte: no primeiro caso, admite-se que o Estado já possui alguma capacidade de se financiar nos mercados, mas o MEE (Mecanismo de Estabilidade Europeu) pode conceder empréstimos e comprar até 50% da nova dívida emitida, possibilitando desse modo um acesso sustentado, mas assistido, aos mercados de emissão da dívida; no segundo, existe o pressuposto de que o país continua sem acesso aos mercados e, por isso, o MEE pode conceder um empréstimo, ficando o Estado obrigado a adotar medidas corretivas que possibilitem a alteração da situação em que se encontra. Tanto na versão leve, como na versão pesada, o Estado fica obrigado a assinar um Memorando de Entendimento.
 
Tudo bem entendido, o país continuará sujeito à tutela externa que visa, em primeiro lugar, o reembolso do capital e o pagamento dos juros. Os recursos para esse efeito mobilizados vão tornar inviável qualquer ideia de relançamento da economia. Por isso, a interrupção dos processos de empobrecimento e de exaustão dos recursos do país exigirão que seja incontornável a possibilidade de reestruturação da dívida, tanto em termos de montantes, como de prazos.
 
Dir-se-á que deveremos pagar tudo o que devemos. Mas com certeza! Teremos, no entanto, de determinar, primeiro, se devemos tudo o que nos dizem que devemos.
 
Fica claro, agora, que “no acautelar é que está o ganho”, mas que, contrariamente ao que tem sido voz corrente, quem ganha com as cautelas são os credores e não os devedores. Por isso, as instâncias europeias tanto têm insistido na ideia de que a seu tempo (e já não falta muito tempo) indicarão o modelo de transição que consideram mais adequado para Portugal. Pouco importa, que o Governo diga que é ele quem vai decidir; que o Sr. Draghi o contrarie dizendo que são instâncias europeias a indicar o modelo mais adequado; que meia dúzia de dias depois este se contradiga, vindo afirmar que, de fato, é o Governo a decidir; e que, posteriormente, as instâncias internacionais continuem a comportar-se como se nada tivesse acontecido.
 
“O que tem que ser tem muita força”, se e enquanto nós deixarmos.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Os comentários estão sujeitos a moderação.