Possuir sentido
de previdência, com moderação, é, normalmente, entendido como uma postura de
sabedoria. Mas há, também, quem creia que adotar previdência exagerada tolhe a
liberdade e a capacidade de iniciativa, que permitem ir ao encontro de coisas
novas e, sobretudo, de ir ao encontro das pessoas que nos são próximas, com um coração
sincero para, com eles, fazer “o caminho” em comum (o Presidente José Mujica do
Uruguai tem-nos dado, a este propósito, testemunhos infindáveis, por ex., quando
nos mostra que não necessita, mesmo como Presidente, de mais do que uma casa de
3 assoalhadas e o seu carocha. Ver por ex. aqui Porventura, a verdadeira sabedoria poderá estar algures entre as duas situações
extremas. A previdência e a cautela são virtudes que não se deverão
antagonizar.
Trouxe, aqui,
o mote do “acautelar” a propósito do muito que, entre nós, se tem falado da
necessidade da necessidade de virem a ser adotados “programas cautelares” ou,
em alternativa, da possibilidade de virmos a ter uma saída “limpa”, após a
designada saída, no próximo mês de Maio, da troika. Um programa é cautelar,
porque acautela; uma saída é limpa, porque supõe que o caminho a trilhar é
seguro e nenhuma cautela exige. Importa perceber, no primeiro caso, o que é que
e quem é que se acautela; no segundo, convém, igualmente, ajuizar sobre o que é
que e quem é que foi ao banho, e se dele sai limpo.
Algo de muito
estranho se tem passado na discussão desta matéria em Portugal. Os responsáveis
da governação falam das duas alternativas, como se fosse indiferente optar por
uma ou por outra, afirmando, insistentemente, algo de parecido com: “estamos
igualmente preparados para poder vir a adotar uma solução ou outra”. Contudo, o
vir a adotar uma ou outra das alternativas é tudo menos indiferente.
Além disso, tem-se
deixado difundir a ideia de que a troika brevemente se vai embora e que, depois,
mais nada teremos a ver com troikas. Trata-se de uma mistificação; do “encobrimento
do verdadeiro negócio”. A verdade é que enquanto houver dívida a pagar, os
inspetores que tutelam os interesses do capital em dívida vão andar por aí, com
muita frequência, e só nos largarão quando a dívida deixar de existir. Há quem
pense que, pelo fato de nos termos “portado bem até aqui”, vamos passar a ter
acesso aos salões e poder conversar de igual para igual com os restantes
convivas. Puro equívoco. Olhar-nos-ão de soslaio, como quem diz, estes são os
tais e, quando muito, aceitarão que possamos ouvir as conversas dos crescidos através
das quais nos transmitem os comportamentos que deveremos continuar a adotar.
Para
compreender melhor o imbróglio em que estamos metidos convém entender o que é
isso de “saída limpa” e de “programa cautelar”. Fala-se de “saída”, para
significar que terminou o “programa de assistência”, como que se já pudéssemos ir
para a rua apanhar sol. A saída será “limpa” se a pudermos realizar sem
termos que ir apoiados por muletas e sem que nos seja exigido que transportemos
um pancarta em que está escrito ”doente em estado de convalescença”. Podemos ir
às compras, aos mercados, e ninguém nos reconhecerá como anteriores
delinquentes.
Ir aos
mercados e não ser discriminados nas compras que fazemos significa que pagamos
o mesmo que os restantes clientes. Ora, neste momento, pagamos taxas de juro
entre os 4,5 e os 5%; alguém poderá pensar que em dois meses vamos passar em
ser gente credível, isto é, a ser uma economia robusta de que já não há que
esperar qualquer risco e vir a pagar taxas de juro 2 ou 3 pontos mais baixas?
A robustez da economia continuará alheada de
nós e, por isso, mesmo que se diga que a roupagem usada está limpa, o teste dos
glutões não se deixará enganar. Consequência? Mesmo que não haja programa
cautelar, as taxas de juro permanecerão afastadas do que são as nossas
possibilidades de pagamento; a dívida cairá na banda da insustentabilidade; continuaremos
a pedir emprestado para pagar juros e os inspetores poderão por aí ser encontrados,
para garantir que os recursos do país serão afetos, antes de tudo, ao reembolso
do capital financeiro. É isto a saída limpa.
Se a
alternativa for a de “programa cautelar”, convém esclarecer que há dois tipos
de programas cautelares: o PCCL (Precautionary Conditioned
Credit Line) que é uma sua versão leve e o ECCL (Enhanced Conditions Credit
Line) que é uma versão pesada. O que
distingue uma de outra é, no essencial, o seguinte: no primeiro caso, admite-se
que o Estado já possui alguma capacidade de se financiar nos mercados, mas o
MEE (Mecanismo de Estabilidade Europeu) pode conceder empréstimos e comprar até
50% da nova dívida emitida, possibilitando desse modo um acesso sustentado, mas
assistido, aos mercados de emissão da dívida; no segundo, existe o pressuposto
de que o país continua sem acesso aos mercados e, por isso, o MEE pode conceder
um empréstimo, ficando o Estado obrigado a adotar medidas corretivas que
possibilitem a alteração da situação em que se encontra. Tanto na versão leve,
como na versão pesada, o Estado fica obrigado a assinar um Memorando de Entendimento.
Tudo bem entendido, o país continuará sujeito à tutela
externa que visa, em primeiro lugar, o reembolso do capital e o pagamento dos
juros. Os recursos para esse efeito mobilizados vão tornar inviável qualquer ideia
de relançamento da economia. Por isso, a interrupção dos processos de
empobrecimento e de exaustão dos recursos do país exigirão que seja
incontornável a possibilidade de reestruturação da dívida, tanto em termos de
montantes, como de prazos.
Dir-se-á que deveremos pagar tudo o que devemos. Mas com
certeza! Teremos, no entanto, de determinar, primeiro, se devemos tudo o que
nos dizem que devemos.
Fica claro, agora, que “no acautelar é que está o ganho”,
mas que, contrariamente ao que tem sido voz corrente, quem ganha com as
cautelas são os credores e não os devedores. Por isso, as instâncias europeias tanto
têm insistido na ideia de que a seu tempo (e já não falta muito tempo) indicarão
o modelo de transição que consideram mais adequado para Portugal. Pouco importa,
que o Governo diga que é ele quem vai decidir; que o Sr. Draghi o contrarie
dizendo que são instâncias europeias a indicar o modelo mais adequado; que
meia dúzia de dias depois este se contradiga, vindo afirmar que, de fato, é o
Governo a decidir; e que, posteriormente, as instâncias internacionais continuem
a comportar-se como se nada tivesse acontecido.
“O que tem que ser tem muita força”, se e enquanto nós
deixarmos.
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