17 dezembro 2016

Acerca dos novos indicadores de pobreza

A publicação recente pelo INE de novos dados sobre a evolução dos indicadores de pobreza, de desigualdade e de privação material merecem uma reflexão tão aprofundada quanto possível sobre o que eles nos indicam sobre as transformações ocorridas nas condições de vida da população.

Um primeiro facto que gostaria de salientar respeita ao timing da publicação. Nos últimos anos o INE tem realizado um esforço notório para reduzir o hiato temporal entre a publicação destes importantes indicadores sociais e o período a que dizem respeito. Este é o primeiro ano em que os dados publicados sobre os indicadores de privação reportam ao próprio ano (2016) enquanto os índices de pobreza e de desigualdade tem como referência os rendimentos do ano anterior (2015). Não é ainda o que necessitamos para uma monitorização adequada das políticas sociais e para uma resposta eficaz e atempada das políticas públicas aos problemas sociais mais urgentes mas é um progresso. Parabéns ao INE pelo esforço desenvolvido.
Os dados agora apresentados evidenciam alguns aspectos positivos mas, simultaneamente, acentuam alguns factores de preocupação.

Os principais indicadores de pobreza para o conjunto da população evidenciam uma ligeira descida no ano de 2015. A taxa de pobreza diminui 0,5 pontos percentuais, passando de 19,5 para 19,0%. A taxa de intensidade da pobreza apresenta uma diminuição mais significativa, superior a 2 p.p. São dados positivos que, no entanto, ainda estão muito longe dos existentes antes do início da presente crise e da implementação das políticas de austeridade. Como se pode observar no gráfico seguinte, e apesar da pequena redução verificada em 2015, é necessário recuarmos ao ano de 2004 para encontrarmos valores de pobreza tão elevados no período pré-crise.  
 
                                                                Taxa de Pobreza 2003-2015
                                        INE, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, 2014 a 2016

A evolução dos principais indicadores de desigualdade revela uma descida ainda menos significativa que a ocorrida com a taxa de pobreza indiciando assim a permanência de elevados níveis de desigualdade verificados no ano de 2014. O coeficiente de Gini assume em 2015 um valor de 33.9% (era 34,0% em 2014) e o rácio que compara o montante auferido pelos 20% mais ricos com os 20% mais pobres mantem-se praticamente inalterado (6,0 em 2014, 5,9 em 2015).
Se a manutenção de elevados níveis de pobreza e de desigualdade constitui em si mesmo um elemento de forte preocupação social, que exige uma intervenção proactiva das políticas públicas, os dados agora publicados salientam dois outros factores que acentuam essa mesma preocupação.
O primeiro tem a ver com o agravamento da taxa de pobreza da população idosa. A taxa de pobreza dos idosos agravou-se entre 2014 e 2015 de 1,3 p.p. Esta evolução negativa da incidência dos idosos é tanto mais preocupante na medida em que após décadas de redução do seu valor. a partir de 2013 verificou-se uma forte inversão dessa tendência que conduziu a que entre 2012 e 2015 a taxa de pobreza dos idosos tenha subido 3,7 p.p.
Esta deterioração das condições de vida da população idosa exige um estudo mais aprofundado das suas causas mais profundas sendo, porém, possível avançar desde já algumas linhas explicativas. Em estudo recente demonstramos que existe uma larga proporção de idosos com rendimentos situados próximos do valor da linha de pobreza e portanto com uma incidência de pobreza muito dependente de pequenas oscilações do limiar de pobreza. A ligeira subida do valor da linha de pobreza ocorrida no período 2013-2015 conjugada com o congelamento das pensões situadas nesta zona da escala de rendimentos pode ter desempenhando um papel importante neste agravamento da pobreza dos idosos. Uma segunda explicação possível é o recuo da eficácia das políticas sociais de combate à pobreza dos idosos. Entre 2010 e 2015 o número de beneficiários do CSI reduziu-se de 247 mil para 177 mil, uma redução superior a 28%. O valor de referência do CSI, inicialmente concebido para ser idêntico ao valor do limiar de pobreza, em 2015 era somente cerca de 93% da linha de pobreza (o referencial do RSI era de 409€ e o valor da linha de pobreza agora publicada pelo INE de 435€). Uma outra explicação possível é o da eventual reconfiguração das famílias dos idosos que, no período de maior agravamento da crise e do desemprego, receberam no seu seio as famílias dos filhos em situações de elevada precariedade.

O segundo aspecto que gostaria de realçar é o da permanência em 2015 de uma elevada taxa de indivíduos empregados em situação de pobreza (10,9% em 2014 e 2015). O aumento da precariedade laboral, a manutenção de níveis salariais muito baixos conduz a que permaneçam em situação de pobreza uma proporção significativa dos trabalhadores empregados. Ainda que a relação entre emprego/desemprego e pobreza não seja directa, na medida em que a condição de pobre depende das características da família em que se está inserido, algo vai mal no funcionamento dum mercado de trabalho que gera uma tão elevada percentagem de working-poors.
 
Estas são apenas algumas reflexões iniciais suscitadas pela leitura dos novos dados sobre as condições de vida e os rendimentos esta semana publicadas pelo INE. Os números agora trazidos a público exigem uma análise mais extensiva e mais aprofundada. Mas os resultados já aqui analisados são suficientes para reafirmar que sem a vontade política de se inverter a actual situação, sem uma estratégia concertada e sustentada de combate à pobreza, Portugal continuará com níveis de pobreza que são incompatíveis com uma democracia plena, um travão ao crescimento e ao desenvolvimento económico e um factor de fragilização da coesão social.
Carlos Farinha Rodrigues
 
 
 

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