07 junho 2022

As lágrimas de crocodilo de Davos, a inflação e a ética dos lucros


Esta sensação de tempo suspenso em que a pandemia, primeiro, e a guerra na Ucrânia, a seguir, nos têm colocado não pode continuar a deixar-nos amodorrar perante o agravamento de problemas profundos na economia mundial. Qualquer que seja o desfecho da guerra e a evolução das pandemias, há que parar para pensar.

Estará a globalização em crise?

Poucas vezes se tem ouvido tanto esta pergunta como actualmente.  A propósito da reunião do Fórum Económico Mundial, Stiglitz reconhece que foram postas em cima da mesa uma série de interrogações sobre a evolução da globalização mas que não deixou de se perder uma grande oportunidade de discutir a fundo os problemas de base[1]. Questões como a da quebra das longas cadeias de abastecimento, a da subida acentuada dos preços da energia e dos bens alimentares e a dos direitos de propriedade relativamente às vacinas, que estão a deixar biliões por vacinar, não puderam deixar de ser referidas em Davos como exemplo de falhas gravíssimas desta globalização.

Ficou, pelo menos, clara a necessidade de maiores investimentos de proximidade e de reindustrialização, se não em espaços nacionalmente protegidos, pelo menos de modo a evitar as longas cadeias de abastecimento a que entretanto se chegou, com os perigos daí decorrentes, como a travagem na produção automóvel devido à escassez de micro-chips, por exemplo. Para já não falar de situações de dependência internacional difíceis de compreender como a que colocou a Alemanha face ao fornecimento de gás vindo da Federação Russa.

Mas não houve coragem para ir ao fundo dos problemas… Seria de admirar se tal tivesse sucedido…

Regras de há muito seguidas nos fluxos de comércio mundial, como por exemplo a da não discriminação, não houve coragem para as pôr em causa.  

Mas como Stiglitz avança, a globalização não é o único problema: “our entire market economy has shown a lack of resilience”, continua. O que nos leva à questão dos lucros e da sua análise.

Antes de mais, é fundamentalmente com o intuito de manter as proverbialmente elevadas taxas de lucro que a indústria farmacêutica tem reforçado o lobby que se opõe à liberalização das patentes das vacinas. E é pela mesma razão que neste momento escasseiam os alimentos para bebés no mercado americano e, a breve trecho, internacional: o monopólio da Abbott a isso conduziu.

E a questão dos lucros é fundamental para que melhor se perceba também o movimento inflacionista em curso. A visão dominante da economia defende a travagem dos salários nominais, como bem o sabemos, acusando-os de responsáveis pela inflação. No entanto, vários economistas não ortodoxos têm vindo a analisar a questão em profundidade e a constatar que o objectivo de manter as chorudas margens de lucro intactas, tem levado as grandes empresas multinacionais a repercutir os acréscimos de custos em aumentos dos preços ao consumidor…[2]

Assim sendo, deixar a economia arrefecer, com aumento do desemprego e deterioração crescente do poder de compra dos salários, de pouco valeria para combater a inflação… Já que a “ética” subjacente à política de lucros das grandes operadoras de energia, alimentos de primeira necessidade e outros bens essenciais, está a ser não a do reinvestimento produtivo nem a da justa remuneração do capital mas antes o fomento das concentrações e aquisições, a distribuição de dividendos cada vez mais elevados aos accionistas e, portanto, o reforço da já tão desigual repartição do rendimento a favor da concentração do grande capital.

 

 

 



[1] Stiglitz, J. (7 de Junho de 2022, “Getting deglobalization right. Social Europe  (https://socialeurope.eu/getting-deglobalisation-right).

[2] Ruccio, D. (, 7 de Junho de 2022. “Inflation, Wages and Profits. Real-World Economics Review Bloghttps://rwer.wordpress.com/2022/06/07/inflation-wages-and-profits/#more-42830

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