30 abril 2021

COVID-19 e Desigualdade de Género.

 

A pandemia de COVID-19 e os seus efeitos voltaram a dar ênfase aos estudos e análises sobre as desigualdades entre homens e mulheres. Trata-se de contributos com origem científica diversificada, tal a variedade de domínios que se preocupam com este tema, desde as Ciências da Saúde, à Psicologia e à Filosofia, à Sociologia e à Economia, por exemplo. Mas também instituições de referência internacional, como a ONU, a OCDE e algumas comunitárias, têm vindo a contribuir com trabalhos recentes sobre o tema. Pese embora esta variedade, a principal conclusão que retiram é comum: os efeitos da pandemia estão a afectar especialmente as mulheres e a aprofundar a desigualdade de género.

Os estudos que se centram mais nas áreas da Saúde, destacam os efeitos relacionados com a sobrecarga de actividades que pesa agora ainda mais sobre as mulheres: a “dupla” ou “tripla” tarefa, já tão estudada[1], é agora reforçada pelo facto de às actividades correntes acrescerem entretanto, com os confinamentos e o trabalho e escola à distância, as funções de explicadora dos filhos em casa, gestora do espaço doméstico, tantas vezes exíguo, que tem que ser agora partilhado simultaneamente entre vários utilizadores e… o seu próprio trabalho a partir de casa, enquanto profissional. Sobre este aspecto, e especialmente sobre a necessidade de se pensar numa “economia do cuidado” na qual o Estado deverá ter uma responsabilidade fundamental, Ana Sofia Fernandes, Presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres publicou um interessante depoimento no Público de 25 de Abril último[2]. Aqui chama a atenção para o facto de não poder continuar a admitir-se a invisibilidade daquele trabalho que, sendo socialmente indispensável, tem vindo a recair predominantemente sobre as mulheres como as estatísticas mostram.

E, já agora, uma vez que está em casa, torna-se mais “natural” a dupla carga anterior que já lhe cometia, na maior parte das vezes: o essencial do cozinhar, limpar, cuidar dos dependentes, e tantas outras. Este processo de “naturalização” do que já era excessivo e agora se agrava substancialmente, começa a ser objecto de análise por parte de psicólogos e outros profissionais das Ciências Humanas. Os efeitos analisados em termos de aumento do stress, da já chamada “fadiga do zoom”, de problemas de hipertensão, insónias e tantos outros, têm vindo a dar lugar a estudos importantes, como por exemplo, o de Tracy Bauer, desenvolvido para a Forbes e dado a conhecer em 21 de Abril último.

Também a violência doméstica, o tráfico de mulheres e outros crimes de que são vítimas, têm vindo a aumentar significativamente: separadas das famílias e amigos, quebradas com o isolamento as redes de possível apoio, aumentado exponencialmente o tempo de contacto, em casa, com o potencial agressor e, em muitos países mais pobres, retiradas da escola para apoiar nos cuidados com a pandemia, as mulheres e raparigas estão muito mais expostas àquelas diferentes formas de violência, como reporta Tom Tracey na revista Crux de 18 de Abril.

Uma reflexão especial há a fazer, no entanto, no que respeita aos efeitos da pandemia sobre a situação das mulheres perante o trabalho e o emprego e suas consequências não só a curto mas também a médio prazos. A primeira constatação geral é a de que, quando é necessário descontinuar ou interromper o emprego para prestar apoio e cuidados à família, as mulheres o estão a fazer em muito maior percentagem do que os homens. E isto sucede um pouco por toda a parte, especialmente nos países menos desenvolvidos mas não poupando os mais ricos, como é o caso do Canadá. Está mesmo a tender a generalizar-se, em muitos países, um efeito de diminuição da taxa de actividade feminina, em consequência da COVID-19, em nítido recuo face à evolução registada em praticamente todo o mundo, nas últimas décadas.

Há que saudar a iniciativa desenvolvida entre nós pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho Solidariedade e Segurança Social que, face à dureza dos efeitos da pandemia sobre o trabalho e o emprego, encetou, ainda em Abril de 2000, um processo de construção sistemática de Indicadores COVID-19, a que pode aceder-se através do link http://www.gep.mtsss.gov.pt/indicadores-covid-19-mtsss. Embora nem todos estes indicadores se encontrem ainda desagregados por sexo, alguns já o estão e falam por si: 84,7% das Baixas por Isolamento de Dependente, 81,2% do Número de Dias tirados ao abrigo do Apoio Excepcional à Família e mais de 54% dos beneficiários de medidas Apoio Extraordinário à Redução de Actividade – Trabalhadores Independentes, sempre em resultado da pandemia, foram mulheres (dados relativos a 27 de Janeiro de 2021). E se a reinserção no mercado de trabalho é quase sempre mais difícil e demorada para as mulheres, bem se percebe como estes valores apontam para dificuldades que se lhes colocarão a médio e longo prazos.

Aos resultados destes indicadores há que acrescentar os que decorrem da análise do mercado de trabalho por sectores de actividade. Assim, e por um lado, o trabalho e emprego das mulheres predomina em sectores especialmente afectados pela pandemia, como a restauração e hotelaria e o turismo, de onde um maior risco de layoff e de desemprego. Por outro, também os sectores da educação e da saúde têm elevadas taxas de feminização, o que significa que o esforço com o ensino à distância, por um lado, e o risco de doença, por outro, afectam também sobretudo o sexo feminino.

Mas também a igualdade salarial entre mulheres e homens, em Portugal, está ainda longe de se verificar, em muitos sectores e mesmo para níveis elevados de escolaridade. Quando, no início dos anos 80, Manuela Silva publicou o trabalho pioneiro sobre as desigualdades de género no mercado de trabalho em Portugal[3], as remunerações médias mensais de base das mulheres pouco ultrapassavam, em agregado, os 75% das dos homens e os ganhos médios mensais mal chegavam a 70% dos daqueles. Passaram 40 anos desde então, e muita água correu por debaixo das pontes, com melhorias significativas na situação das mulheres, face aos homens, naquele domínio. Mas ter-se-á atingido a igualdade? Longe disso: recalculando aqueles indicadores de diferencial de remuneração por sexos para 2018, último ano disponível para Portugal, obtemos 85,5% e 82,0%, respectivamente… o que corresponde a um dos cinco maiores diferenciais da U.E. no mesmo período.

Ou seja, a pandemia está a contribuir para agravar uma desigualdade entre mulheres e homens que já era significativa à partida. Exigem-se, portanto, medidas enérgicas e efectivas de promoção da igualdade de género também neste domínio, sob pena de se perpetuar esta forma de entorse persistente à democracia em Portugal.

 

 



[1] Sobre este aspecto, Heloísa Perista tem vindo a desenvolver inúmeros trabalhos relativos à realidade portuguesa, trabalhos que serviram de base ao Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e Mulheres, da responsabilidade do INE e que aquela cientista coordenou com uma equipa do CESIS. Ver

 https://www.cesis.org/pt/area-actividade/198/inquerito-nacional-aos-usos-do-tempo-de-homens-e-de-mulheres-(inut)/

 

[2] Ana Sofia Fernandes, “A Verdadeira Mão Invisível: as mulheres e a necessidade de uma economia do cuidado”, 25 de Abril de 2021, Público.

[3] SILVA, Manuela, (1983). O Emprego das Mulheres em Portugal – a mão invisível na discriminação sexual do emprego, Porto: Edições Afrontamento.

 

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