13 janeiro 2015

E então, agora, vocês não dizem nada?

Os (as) que poderão ter colocado esta questão estão, certamente, a referir-se ao facto de no “Areia dos Dias” ainda não ter sido feito nenhum comentário aos trágicos acontecimentos de Paris da semana passada, querendo subliminarmente fazer passar a mensagem de que poderíamos ter alguma contemporização com o comportamento dos autores dos atentados.
 
Os que assim possam pensar estão completamente enganados. Para estar com os que foram vítimas nas suas vidas, ou nas suas liberdades está longe de estar provado que a melhor maneira de o fazer é participar em manifestações de gritaria irrefletida. Foi importante que o tempo, até agora, fosse de silêncio, para melhor se poder refletir e pensar o futuro. A grande manifestação, em Paris, foi uma iniciativa de silêncio. Todos lá estivemos, física, emocional ou em partilha espiritual.
 
Os atentados de Paris foram crimes hediondos e não podem deixar de ser denunciados. As suas causas têm que ser combatidas por todos os meios. Perderam-se vidas humanas, vinte (parece que aqui não estão contabilizadas as dos terroristas) e atacou-se um dos fundamentos mais sagrados e mais estruturantes do nosso modo de viver: a liberdade de expressão.
 
Desaparecida a espuma das ondas, não importará dizer mais nada, para além do que tem sido dito?  Claro que sim. Antes de mais, é incontornável a necessidade de tomarmos consciência que a destruição da vida humana é o mais horrendo dos crimes  e dos ataques à dignidade da pessoa humana pela qual, nas suas múltiplas facetas, aqui, tanto nos temos batido. Tem-se esquecido, no entanto, com frequência, que a vida humana tem o mesmo valor, quer a cor da pele seja branca, preta, amarela ou vermelha; quer olhemos para Paris, para a Ucrânia, para o Afeganistão, para a Síria, para o Iraque ou para a Nigéria.
 
O que é que nos tolhe os passos para, como em Paris, reagirmos contra um atentado que usando uma menina-bomba provocou 20 mortos e um número indeterminado de feridos na Nigéria?; contra o ataque realizado no Paquistão contra uma escola de que resultou a morte de 141 inocentes, a quase totalidade crianças?; contra os massacres em massa a que vamos assistindo nos vários territórios da chamada república islâmica?; contra os bombardeamentos de escolas abrigando refugiados, na faixa de Gaza?; contra os massacres provocados, com frequência, nos EUA, em Escolas frequentadas por gente civilizada?, etc.
 
Perante este filme de horrores deveríamos ser capazes de nos mobilizarmos como o fizemos com Paris. Porque é que isso não acontece? Valeria a pena interrogarmo-nos sobre o porquê e procurarmos encontrar as razões e os enquadramentos, políticos, económicos, sociais e culturais que provocam tais massacres. Nunca é tarde para o fazermos, porque atrás destes outros virão e virão com mais força, se nada fizermos para o impedir.
 
Os acontecimentos em Paris foram, também, um ataque contra as liberdades, fundamento essencial da nossa civilização. Destruir esta liberdade é o princípio da destruição do nosso modo de viver.
 
Até há pouco, muitos pensavam, com frequência, que a superioridade da civilização ocidental se sobreporia às restantes, nos valores e modos de vida. Apesar deste sentimento de superioridade, os espíritos mais cultos sabiam que a existência de multiplicidade de civilizações deveria ser tomada como uma riqueza, um património comum e que daí só poderíamos vir a recolher vantagens. No entanto, a globalização também aqui implantou os seus malefícios: as integrações forçadas e mal digeridas não poderiam senão conduzir a violações de núcleos essenciais das várias civilizações e culturas.
 
 Continua a ser verdade a afirmação de que a nossa liberdade acaba onde começa a liberdade dos outros, onde começa a agressão aos valores culturais ou religiosos dos que connosco partilham a humanidade. Sabemos que o Islão considera como uma blasfémia a publicação de figurações do profeta Maomé. Os valores republicanos da sociedade, como já vi defender, consideram tal uma prática retrógrada e, por isso, invocam o direito à blasfémia, como parece poder vir a acontecer com a publicação do 1º número do Charlie, pós atentados. Não me parece que se possa dizer que temos direito à blasfémia, porque a prática da blasfémia é, sempre, uma agressão gratuita contra a dignidade do outro ou contra os valores de outros.
 
Com tudo o que atrás foi dito, fica claro que nenhuma violação da dignidade humana pode ser considerada como um meio de combate contra invocadas blasfémias, do mesmo modo que, a prática de blasfémias gratuitas, sobretudo se atingem valores religiosos de outras culturas, não pode ser tomada como um instrumento de promover a evolução de culturas ditas “obscurantistas” para a cultura dita da “luz”.
 
Os atentados de Paris têm que ser absolutamente condenados e tudo tem que ser feito para que outras tentativas semelhantes, onde quer que sejam promovidas, sejam evitadas.

1 comentário:

  1. Boaventura Sousa Santos (BSS) intitula o seu artigo hoje (14/01/15) no PÚBLICO assim: "Charlie Hebdo: uma reflexão difícil". Por isso, dou os parabéns ao MBA por este post.
    Dito isto, concordando com quase todo o conteúdo, é-me difícil acompanhá-lo quando no antepenúltimo parágrafo se refere a que o Islão considera blasfémia qualquer figuração de Maomé e retira como consequência não se poder dizer que temos direito à blasfémia, porque a sua prática "é...uma agressão...contra a dignidade ...ou...os valores de outros". Mas - e aqui os ofendidos sentirão uma contradição - mas a liberdade de expressão não pode impedir que se publique.
    BSS, às tantas, formula "várias perguntas sem resposta por agora". E logo a primeira é:" A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo?" . Mas eu também pergunto: e então para respeitar esse "não se reconhecerem" em tal valor da laicidade, teremos nós, sociedades europeias, que prescindir dele? Não me parece...

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