30 junho 2019

“Crise do capitalismo”, pós-desenvolvimento, decrescimento: apenas variações semânticas?


O período de crise em que vivem as nossas sociedades está a ser particularmente fértil no aparecimento de soluções e alternativas que visam enquadrar o futuro no após crise.  A antropologia social salienta este facto quando se refere à multiplicidade dos discursos da transição (DT) e à necessidade de se proceder a um profundo esclarecimento ontológico já que são as próprias categorias em que aqueles discursos se baseiam que estão em causa[1].

Do ponto de vista da economia e, muito especialmente da economia ecológica e da sustentabilidade, parece-nos que um tal trabalho de análise ontológica e epistemológica é também da maior oportunidade. Especialmente porque, como sabemos, o ensino da economia está a ser objecto de uma análise crítica sem precedentes e a abordagem da pluralidade e do conhecimento do real, que abertamente se defendem, devem ir ao fundo das questões, esclarecendo conceitos e categorias entre distintos pontos de vista.

Não, não estamos só perante variações semânticas: o paradigma do decrescimento exige uma mudança radical de modo de vida e de pensar.

Na edição de Abril de 2018 da revista Ecological Economics, um artigo de H. Buch-Hansen chama a atenção para os quatro requisitos básicos indispensáveis para uma mudança de paradigma socio-económico no sentido do decrescimento: uma crise profunda do capitalismo, a existência de um projecto político alternativo, uma ampla coligação de forças políticas e sociais que, abraçando tal projecto, o promovam através de acções de luta e um amplo consenso social. E conclui que os dois últimos requisitos estão longe ainda de se verificar[2].

Também Escobar, no já referido contributo, insiste que a Grande Transição (GT) terá necessariamente de se fazer fora dos actuais limites epistemológicos e institucionais do modelo de produção dos últimos séculos, chamemos-lhe capitalismo, modernidade, neo-liberalismo… Outros economistas da mesma linha vão mais longe e defendem que aquela transição exige uma mudança radical de valores e de instituições socio-económicas: The GT involves an alternative global vision that replaces ‘industrial capitalism’ with a ‘civilizing globalization’ (Buch-Hansen, op. cit). “Progresso” é redefinido in terms of non-material human fulfillment, pressupõe uma separação radical entre bem-estar e crescimento e consumo material bem como o desenvolvimento e a apropriação de novos valores sociais – solidariedade, ética, sentido da vida, vivência comunitária… Não admira que muitas destas perspectivas defendam a redeslocalização da economia e dos processos de produção a favor das comunidades locais e de uma forma mais próxima de articulação entre a propriedade dos meios e recursos e o controlo dos processos de produção.

Sendo o pós-desenvolvimento uma visão mais ampla e indefinida, onde cabem diversas propostas alternativas de superação da crise do capitalismo, o decrescimento constitui-se, assim, como uma categoria mais exigente: não chega defender o regresso à economia cooperativa e solidária, uma maior justiça económica e social, políticas fiscais e redistributivas mais progressistas, é antes toda uma nova concepção de vida que não corra o risco de se limitar a promover a “economia verde” e o post-desenvolvimento deixando intactas as bases do economicismo.

Autores de inspiração neo-marxista, como L. Vergara-Camus, da SOAS da Universidade de Londres[3] são de opinião que não é o crescimento em si que tem vindo a provocar a crise do capitalismo mas a forma como esse crescimento tem vindo a ocorrer neste modo de produção: com a separação entre trabalhadores e meios de produção, com o trabalho alienante, com os imperativos da competitividade[4] e as restrições inerentes à democracia liberal. E continua:
From this perspective, I argue that growth could be greened in a post-capitalist society if the institutions and dynamics that force capitalist accumulation and competition were abolish and full democracy was established [5]

Estaremos, assim, e no entanto, num exercício de pura especulação, como sugere o autor na sua introdução? Seja como for, o aprofundamento e o debate sobre o pós-capitalismo impõem-se como nunca.



[1] Ver, por exemplo, Escobar, A. (2015). Degrowth, post-development and transitions: a preliminary conversation. Sustain Sci, https://www.degrowth.org/wp-content/uploads/2015/07/ESCOBARDegrowth-postdevelopment-and-transitions_Escobar-2015.pdf

[2] Buch-Hansen, H. (2018). The Prerequisites for a Degrowth Paradigm Shift: Insights from Critical Political Economy. Ecological Economics, Volume 146, Abril 2018, Pp. 157-163, https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0921800916313726

[3] Onde se insere um dos programas do ensino da economia alternativos ao mainstream que constam da lista do Institute of New Economic Thinking (INET-Rethinking Economics), como se descreveu no estudo do GES Por Onde vai o Ensino da Economia?
[4] Que implica acumulação crescente de capital, que produz e exige nova acumulação, protegida e promovida pelos mercados e instituições do capitalismo… até que se verifique nova/a grande(?) crise despoletada pela “queda tendencial da taxa de lucro” descrita por Marx.
[5] Vergara-Camus, L. (no prelo). Capitalism, Democracy, and the De-growth Horizon.  Department of Development Studies SOAS University of London. Capitalism, Nature, Socialism, Taylor and Francis online.


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