O período de crise em que
vivem as nossas sociedades está a ser particularmente fértil no aparecimento de
soluções e alternativas que visam enquadrar o futuro no após crise. A antropologia social salienta este facto
quando se refere à multiplicidade dos discursos da transição (DT) e à
necessidade de se proceder a um profundo esclarecimento ontológico já que são
as próprias categorias em que aqueles discursos se baseiam que estão em causa[1].
Do ponto de vista da
economia e, muito especialmente da economia ecológica e da sustentabilidade,
parece-nos que um tal trabalho de análise ontológica e epistemológica é também
da maior oportunidade. Especialmente porque, como sabemos, o ensino da economia
está a ser objecto de uma análise crítica sem precedentes e a abordagem da
pluralidade e do conhecimento do real, que abertamente se defendem, devem ir ao
fundo das questões, esclarecendo conceitos e categorias entre distintos pontos
de vista.
Não, não estamos só perante
variações semânticas: o paradigma do decrescimento exige uma mudança radical de
modo de vida e de pensar.
Na edição de Abril de 2018
da revista Ecological Economics, um
artigo de H. Buch-Hansen chama a atenção para os quatro requisitos básicos
indispensáveis para uma mudança de paradigma socio-económico no sentido do
decrescimento: uma crise profunda do capitalismo, a existência de um projecto
político alternativo, uma ampla coligação de forças políticas e sociais que,
abraçando tal projecto, o promovam através de acções de luta e um amplo
consenso social. E conclui que os dois últimos requisitos estão longe ainda de
se verificar[2].
Também Escobar, no já
referido contributo, insiste que a Grande Transição (GT) terá necessariamente
de se fazer fora dos actuais limites epistemológicos e institucionais do modelo
de produção dos últimos séculos, chamemos-lhe capitalismo, modernidade,
neo-liberalismo… Outros economistas da mesma linha vão mais longe e defendem
que aquela transição exige uma mudança radical de valores e de instituições
socio-económicas: The GT involves an
alternative global vision that replaces ‘industrial capitalism’ with a
‘civilizing globalization’ (Buch-Hansen, op. cit). “Progresso” é redefinido
in terms of non-material human
fulfillment, pressupõe uma separação radical entre bem-estar e crescimento
e consumo material bem como o desenvolvimento e a apropriação de novos valores
sociais – solidariedade, ética, sentido da vida, vivência comunitária… Não
admira que muitas destas perspectivas defendam a redeslocalização da economia e
dos processos de produção a favor das comunidades locais e de uma forma mais
próxima de articulação entre a propriedade dos meios e recursos e o controlo
dos processos de produção.
Sendo o pós-desenvolvimento
uma visão mais ampla e indefinida, onde cabem diversas propostas alternativas
de superação da crise do capitalismo, o decrescimento constitui-se, assim, como
uma categoria mais exigente: não chega defender o regresso à economia
cooperativa e solidária, uma maior justiça económica e social, políticas fiscais
e redistributivas mais progressistas, é antes toda uma nova concepção de vida
que não corra o risco de se limitar a promover a “economia verde” e o
post-desenvolvimento deixando intactas as bases do economicismo.
Autores de inspiração
neo-marxista, como L. Vergara-Camus, da SOAS da Universidade de Londres[3] são de opinião que não é o
crescimento em si que tem vindo a provocar a crise do capitalismo mas a forma
como esse crescimento tem vindo a ocorrer neste modo de produção: com a
separação entre trabalhadores e meios de produção, com o trabalho alienante,
com os imperativos da competitividade[4] e as restrições inerentes
à democracia liberal. E
continua:
From this perspective, I argue
that growth could be greened in a post-capitalist society if the institutions
and dynamics that force capitalist accumulation and competition were abolish
and full democracy was established [5]…
Estaremos, assim, e no
entanto, num exercício de pura especulação, como sugere o autor na sua
introdução? Seja como for, o aprofundamento e o debate sobre o pós-capitalismo
impõem-se como nunca.
[1] Ver, por
exemplo, Escobar, A. (2015). Degrowth,
post-development and transitions: a preliminary conversation. Sustain Sci, https://www.degrowth.org/wp-content/uploads/2015/07/ESCOBARDegrowth-postdevelopment-and-transitions_Escobar-2015.pdf
[2] Buch-Hansen, H. (2018). The Prerequisites for a Degrowth Paradigm Shift:
Insights from Critical Political Economy. Ecological Economics, Volume 146, Abril 2018, Pp. 157-163, https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0921800916313726
[3]
Onde se insere um dos programas do ensino da
economia alternativos ao mainstream que
constam da lista do Institute of New Economic Thinking (INET-Rethinking
Economics), como se descreveu no estudo do GES Por Onde vai o Ensino da Economia?
[4] Que implica acumulação crescente de capital, que
produz e exige nova acumulação, protegida e promovida pelos mercados e
instituições do capitalismo… até que se verifique nova/a grande(?) crise
despoletada pela “queda tendencial da taxa de lucro” descrita por Marx.
[5]
Vergara-Camus, L. (no prelo). Capitalism,
Democracy, and the De-growth Horizon. Department of Development Studies SOAS
University of London. Capitalism, Nature,
Socialism, Taylor and Francis online.
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