01 março 2021

Vacinas contra o COVID – 19: um nicho de mercado em vez de bem público?

 A pandemia está a contribuir para agravar substancialmente as desigualdades entre as pessoas, famílias e povos, poucos não estarão conscientes disso.

Dentro de cada país, o nosso por exemplo, acentuam-se as desigualdades desde logo em função das idades, com os mais velhos a terem probabilidades de sobrevida muito menores, uma vez contagiados. Mas, também, desigualdades entre os que exercem actividades manuais e de prestação de cuidados, que não podem trabalhar à distância, e os que o podem fazer. Mesmo entre os que exercem trabalho online, as diferenças são abissais, como por exemplo entre um consultor e um operador de call center. Para não referir já o fosso enorme entre os desempregados pela pandemia e os que conseguem manter um emprego. As desigualdades entre países não são menores: assistimos à situação escandalosa de países terem a sua população já quase toda vacinada, como Israel, enquanto outros nem ideia fazem de quando começarão a receber vacinas em quantidade suficiente. A começar pela faixa de Gaza, condenada agora também à doença por Israel, e continuando pelos muitos países africanos com fracos meios e já a braços com outras pandemias, muitas vezes.

Seria, então, fundamental, que o acesso às vacinas não viesse a contribuir para agravar ainda mais estas desigualdades. E quando ouvimos hoje a Ministra da Saúde dizer que Portugal encomendou agora vacinas a mais para poder vir a ajudar também outros países, não podemos senão saudar esta decisão.

 Como sucede com a maior parte dos medicamentos inovadores, as vacinas estão a ser produzidas e comercializadas, sob patente, por grandes empresas multinacionais. São elas que dispõem de grandes laboratórios, capazes de produção em larga escala e que, além do mais, detêm o conhecimento das fórmulas e procedimentos, devidamente protegidos por patentes. Ora aqui reside, quase sempre, o busílis da questão.

Quando existe a expectativa, devidamente antecipada, de que determinado princípio activo ou medicamento venha a vender-se bem, num determinado prazo, são as próprias farmacêuticas que financiam, em grande medida, os centros de investigação capazes de o produzir bem como os investigadores que nisso se ocupam. A patente reserva, então, os direitos de propriedade e de produção para determinada farmacêutica ou laboratório que assim assegura o exclusivo e, com ele, importante volume de lucros. Casos existem em que, pelo contrário, as grandes farmacêuticas pouco ou nenhum interesse têm na produção de determinado medicamento ou vacina: se a doença estiver erradicada ou em vias disso, se ela só afectar um número relativamente reduzido de pessoas ou se, como no caso do COVID-19, a pandemia não tiver sido prevista com a necessária antecedência.

Nestes casos, os dinheiros públicos, constituídos em grande parte à custa dos impostos cobrados pelos Estados, têm de intervir para financiar a investigação mesmo quando a mesma é levada a cabo por empresas privadas. É o que está a suceder neste caso. E pouco importa se os dinheiros públicos que estão a contribuir para a investigação das vacinas foram canalizados directamente pelo governo de um dado país ou, conjuntamente, pelas instituições comunitárias a que o país pertença, como a União Europeia. Ora sucede que, mesmo havendo várias multinacionais farmacêuticas a produzir vacinas contra o SARS – COVID 19, a disponibilidade das mesmas não está a chegar para as encomendas. Aparentemente – é a versão oficial – porque nem mesmo as grandes farmacêuticas estarão a ter capacidade de produção suficiente para fazer face ao volume da procura. Por outro lado, o mercado internacional de saúde está segmentado, com reguladores diferentes por grupos de países: assim, uma vacina russa, por exemplo, homologada por um determinado regulador, só poderá ser válida nos Estados Unidos se homologada pela Food and Drug Administration e, na Europa, pelo organismo europeu do medicamento.

Será oportuno manter, na actual pandemia, esta segmentação internacional dos mercados de saúde?

Não deveriam os diversos organismos de regulação internacional estabelecer protocolos comuns, assentes em princípios de confiança recíproca que aparentemente não existem, para que ao menos neste caso o mercado não fosse segmentado?

Não se terá deixado a U.E. aprisionar em interesses semi-privados das tais multinacionais farmacêuticas quando é um facto que contribuíu com financiamento e com um mercado assegurado para as mesmas?

Por outro lado, algumas pequenas produtoras farmacêuticas, também portuguesas, manifestaram já por diversas vezes a sua disponibilidade para produzirem, elas mesmas, uma vacina: por que razão não conseguem aceder a uma patente? Que tipo de interesse poderá estar por detrás do desinteresse ou da demora na homologação dessa produção?

A saúde da população deveria, em qualquer caso, ser considerada um bem público, não me alargarei agora sobre este tema. Mas nem mesmo quando a sua protecção, através de vacinas, é financiada em grande parte por dinheiros públicos, se conseguem abandonar os desígnios dos negócios privados em nome do bem comum? Não haverá um mínimo de clarividência que chegue para ver que, num caso destes, o feitiço se voltará inevitavelmente contra o feiticeiro?

 

 

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